José António Abreu @ 05:59

Qua, 20/04/16

Polícia. Questões em tom de voz neutral. Como se lhes fosse indiferente. Mais questões em tom de voz pressionante, até mesmo ameaçador. Como se soubessem. Mas não sabiam. Ele não tocara no homem. Nem sequer abrira a janela.

Exigiram que os acompanhasse à esquadra, um edifício feio, com o ambiente de um velho hospital de província, excepto pelo cheiro, mais indefinível embora não mais agradável. Quase duas horas em torno das mesmas perguntas, de preenchimento de papéis, de assinaturas. Finalmente mandaram-no embora.

Devagar, por entre o tráfego agora esparso, conduziu até casa.

 

Lamentava? Sentia remorsos? Honestamente, não. Sabia que devia sentir. Sabia que aquele homem, ainda que podendo ser estúpido e desprovido de civismo, não deveria ter morrido naquele momento, daquela forma. Teria família, colegas de trabalho, até mesmo amigos que, em resultado de apreço genuíno ou de auto-piedade (a morte dos que nos estão próximos é sempre um golpe contra nós), chorariam o seu desaparecimento. Ainda assim, recusou-se a sentir remorsos. Na sua raiva quotidiana, nos seus contactos diários com vítimas de acidentes, ganhara consciência da fragilidade e irrelevância da vida – de qualquer vida, incluindo a sua própria. Apenas umas quantas pessoas tão irrelevantes como o homem da Toyota chorariam a morte dele. O mundo continuaria a girar. As pessoas continuariam a sair para o emprego de manhã e a regressar a casa à noite. As estradas continuariam sobrelotadas. Aquele homem era tão importante como qualquer dos milhares de outros que naquele dia haviam morrido, em casa ou em hospitais. Tão importante como as dezenas ou centenas que tinham certamente falecido num atentado bombista algures no planeta. Tão importante como a velha que Raskolnikov assassinava em Crime e Castigo – com a diferença de que ele não se deixaria submergir pelo remorso. Até mesmo pessoas famosas – que importância têm? Menos de 0,1% da população é verdadeiramente relevante – por boas ou más razões.

Claro que não ficara satisfeito. Nunca desejara verdadeiramente matar alguém. Mas talvez o que mais o incomodasse era ver-se forçado a admitir – e tinha de o fazer porque detestava hipocrisias - que aquela capacidade, ambicionada durante anos a fio, deixara tão rapidamente de lhe dar prazer.

 

No dia seguinte teve outro desentendimento com o chefe. Mais uma vez, o seu trabalho – talvez a única coisa que ele estava certo de fazer bem – era questionado, naquela forma aparentemente benigna que lhe dava volta ao estômago e o deixava com vontade de ver quão alto conseguiria gritar. Enquanto o chefe falava, debitando platitudes em tom seráfico, a raiva subia-lhe em ondas sucessivas das entranhas até à garganta e aos maxilares. A certa altura percebeu que evitava olhar o chefe de frente. Imaginou até os títulos das notícias: «Olhos Mortais», «Não deixe que este homem olhe para si», «O verdadeiro X-Men». Reprimiu um sorriso a custo e percebeu que a raiva quase desaparecera.

Mais tarde, regressando a casa, fez estoirar mais quatro pneus e sentiu-se bem.

 

Na rua, quatro homens jogavam futebol. Os veículos tinham de abrandar, por vezes de parar, enquanto os homens se desviavam. Numa dessas ocasiões, um dos jogadores fingiu ir pontapear a bola na direcção do carro. Pouco depois, um remate mal direccionado levou a bola a embater num veículo estacionado. Por trás do vidro, cerca de dez metros acima do nível da rua, ele ouviu o ruído do impacto – um som ressoante com uma componente metálica. Os jogadores continuaram como se nada tivesse sucedido. O carro dele estava a salvo mas, ainda assim, ele sentiu uma golfada de raiva. Imaginou-se a apontar um espingarda com silenciador à cabeça de cada um daqueles homens e a premir o gatilho. Plop. Plop. Plop. Plop. Viu Christopher Walken, n’O Caçador, com sangue esguichando da cabeça. Depois apercebeu-se de que não se podia autorizar pensamentos daqueles. Agora eram demasiado perigosos. Podiam tornar-se realidade. Virou costas à janela.

Ligou o televisor. No ecrã surgiu a imagem de um repórter de pé numa rua onde tinha ocorrido um atentado. O repórter não sabia grande coisa do que se passara mas falava ininterruptamente porque em televisão – e cada vez mais na vida real - o silêncio não pode ser autorizado. Manteve-se a assistir durante um par de minutos mas depois sentiu a incongruência de tudo aquilo – de estar em pé no seu apartamento, defronte do televisor, de chinelos e t-shirt manchada de café, vendo uma não-notícia sobre acontecimentos verdadeiramente importantes (ou será que já nem sequer o eram?) – e desligou o aparelho. Permaneceu imóvel durante algum tempo. Do exterior, subiu o ruído de uma buzina de automóvel, a que se seguiu um coro de assobios e insultos. Resistiu à tentação de espreitar. A imagem do homem da Toyota caído no pavimento, com a face deformada pela surpresa e pela dor, assaltou-o mais uma vez.

Escorraçou a imagem, fechando os olhos e abanando a cabeça. Tentou decidir o que fazer. Qualquer coisa faltava – mais ainda agora que a televisão estava desligada. Olhou em volta. Música, livros, filmes, acesso à internet — tinha tudo isso mas nada parecia adequar-se. Devagar, dirigiu-se à casa de banho. Tentou urinar mas o fluxo saiu num espasmo e extinguiu-se. Guardou o pénis, puxou o autoclismo e voltou-se para o lavatório. Enquanto esfregava as mãos uma na outra, examinou-se no espelho. A imagem reflectida era claramente ele e, todavia, era também uma pessoa desconhecida, que mantinha segredos, ilusões, desapontamentos, fúrias e vergonhas que lhe escapavam – pior, que o enojavam. Olhou para os olhos daquela pessoa e percebeu, com uma nitidez assustadora, como ela lhe desagradava. Fechou a torneira e limpou as mãos. Inclinou-se para a frente, as mãos no rebordo do lavatório, o nariz quase a tocar o espelho. Olhou para o lado direito da cabeça, para a zona ligeiramente atrás e acima do olho. A artéria via-se – à justa – mas não pulsava. Era um canal discreto e delicado que o fez pensar num embrião – naqueles tecidos translúcidos que se vêem nas fotos de seres em desenvolvimento dentro do útero. Desconhecia o nome daquela artéria. Após o incidente fizera menção de pesquisar mas esquecera-se. Continuou a olhar para ela, tão incongruentemente fina e vital. Tentou detectar a pulsação mas falhou. Os olhos começaram a arder-lhe mas resistiu ao desejo de pestanejar. Continuou a observar a artéria – anónima, indefesa – que insistia em desempenhar o seu papel com suave obstinação. A casa de banho começou a dissolver-se em torno dele. O lavatório a que as suas mãos se agarravam transformou-se numa mancha. Reais, nítidos, eram apenas os seus olhos, à beira da ignição, e a pequena artéria na sua têmpora – ainda e sempre plácida, ainda e sempre indiferente. Receoso de não conseguir aguentar durante muito mais tempo, de ser derrotado pelo próprio corpo, fechou os olhos, tentando mantê-los imóveis por trás das pálpebras. Duas lágrimas, grossas e pesadas, deslizaram-lhe pelas faces. Respirou fundo, cerrou os maxilares, cravou as mãos no rebordo do lavatório e, antes da ardência desaparecer por completo, abriu novamente os olhos.




José António Abreu @ 05:58

Ter, 19/04/16

Arredores de outra cidade, o mesmo problema. Era hora de almoço, devia ter acontecido um acidente mais à frente. Sentado no carro, ele reparava como o fumo dos escapes conferia ao ar uma tonalidade cinzento-azulada. Buzinadelas de protesto faziam ricochete no interior da sua cabeça como bolas numa máquina de flippers. Estava cansado. Passara a manhã a investigar um incêndio no pavilhão de uma fábrica de componentes plásticos para a indústria automóvel. O incêndio começara numa cabina de pintura que possuía um sistema automático de extinção. Como seria de esperar, este encontrava-se inactivo. Havia extintores no pavilhão mas, em vez de os usarem, os dois trabalhadores no local haviam fugido. E, muito embora a fábrica até desse ideia de estar bem organizada, a causa do incêndio resumia-se à justificação habitual: “Sabe como é, estas coisas acontecem.” O ponto positivo era todos os indícios apontarem para simples incompetência.

Não viu o Honda vermelho de imediato. Veio da direita, de uma rua secundária, no momento em que a fila começou a andar. Normalmente ele deixava entrar os veículos naquelas circunstâncias. Mas já se encontrava em movimento quando reparou no Honda. O seu aparecimento repentino até o assustou, fazendo-o guinar para a esquerda – mas não parar. O condutor do Honda apitou um protesto. Ignorou-o. Pelo retrovisor, viu o Honda entrar na fila imediatamente atrás do seu carro e, num movimento contínuo, sair dela para a desimpedida faixa da esquerda (algo natural para quem pretendesse virar à esquerda cem metros adiante). Quando o espelho retrovisor direito do Honda embateu com estrondo no espelho do lado esquerdo do carro dele, fazendo-o dobrar no sentido errado (mas, verificá-lo-ia depois, sem o partir), foi – outra vez – apanhado de surpresa. Era ilógico e irritante que ainda conseguissem surpreendê-lo mas a verdade é que ficou sem reacção durante um par de segundos. Depois rebentou o pneu traseiro direito do Honda vermelho, que já estava a mais de trinta metros e ainda ganhava velocidade.

O Honda guinou bruscamente para a esquerda e embateu na divisória de betão. A traseira subiu e rodou no ar. O Honda deslizou de marcha-atrás contra a divisória ao longo de vários metros e parou. Seguiu-se uma pausa durante a qual o tempo pareceu ficar suspenso e depois várias pessoas saíram dos carros e correram para o Honda.

Ele deixou-se estar. Viu o condutor do Honda – um tipo de vinte e poucos anos, baixo, magro, barba por fazer, envergando calças e blusão de ganga – sair do carro, aparentemente sem ferimentos. Viu como o outro olhava na sua direcção. Suportou o olhar mas não sorriu. Tão depressa quanto pôde, saiu dali.

 

Ter o poder de causar acidentes graves era uma realidade que o perturbava. Certos actos mereciam punição – isso mantinha-se claro. Mas devia a punição incluir o risco de vida? E quanto a inocentes que pudessem ser atingidos? Até ao momento, rebentara pneus em situações de velocidade reduzida: tentativas de entrada em filas, utilização da faixa bus, descrição de rotundas pelo exterior, paragem em cima de passadeiras, desprezo pelo semáforo vermelho...  Contudo, não era difícil imaginar um cenário de destruição numa auto-estrada: um automóvel (conduzido por uma daquelas pessoas que recusam usar as faixas da direita ou que começam a fazer sinais de luzes a duzentos metros de distância, por exemplo) descontrolado, guinchos de pneus em travagem, choques sucessivos – e, depois, corpos espalhados pelo asfalto, sirenes de ambulância, polícias tentando manter a ordem, bombeiros cortando chapa para retirar alguém preso dentro de um dos veículos…

Não desejava aquilo. Apenas que os filhos da puta sem civismo sofressem um pouco. Teria de ser cauteloso.

 

«Sentes-te bem?»

Por causa do papel que desempenhava, o chefe achava-se na obrigação de fazer perguntas como aquela regularmente. Mas fazia-as com convicção nula. Muitas vezes, nem esperava pela resposta.

«Ando cansado», respondeu ele, aceitando jogar a pequena charada. Poderia ter dito: «Estou óptimo», que o resultado seria o mesmo.

«Levas tudo demasiado a sério», disse o chefe. E depois: «Viste o Benfica?»

 

As duas faixas fundiam-se numa quarenta metros adiante. Toda a gente o sabia. Havia sinalização vertical. Havia marcações no pavimento, perfeitamente visíveis. E, todavia, muitos condutores ignoravam a fila já constituída – naquela altura, nem sequer muito comprida – e mantinham-se na faixa da direita até à zona da junção. Conseguiam ultrapassar quatros ou cinco carros, se tanto.

Ele parou no término da fila. Chegou ao ponto de aglutinação trinta segundos mais tarde. Havia um furgão Toyota na faixa da direita, meio carro à sua frente. Nem sequer tinha o pisca ligado. Ignorou-o e avançou. Ouviu uma buzinadela mas manteve os olhos no carro da frente. Naquele instante, não poderia dizer se o condutor da Toyota era novo ou velho, magro ou gordo, se tinha cabelo comprido ou era careca. Pelo retrovisor, viu a Toyota entrar na fila logo atrás do seu carro.

A fila parou. Instinto ou experiência fizeram-no consultar novamente o retrovisor. Viu um vulto a abandonar o volante da Toyota. Pelo espelho da porta viu o homem – não muito alto, careca, gordo – aproximar-se. Sentiu um instante de pânico. Atabalhoadamente, verificou que a luz indicativa do trancamento das portas estava acesa. Quando o homem bateu no vidro, manteve o olhar fixo em frente. Isso pareceu apenas irritá-lo mais. Berrando se não o tinha visto, bateu com força no vidro e tentou abrir a porta. Finalmente, ele rodou a cabeça e olhou para o homem. Tinha a cara vermelha mas não a cabeça. A cabeça era branca. Vestia calças de ganga e um pólo com os botões desabotoados. O pescoço e a zona do externo eram tão vermelhos como a cara. Tinha poucos pêlos, excepto no nariz, e suava profusamente.

«O que é que quer? Desapareça.»

Foi um erro. O homem aumentou o tom dos insultos e bateu ainda com mais força na janela. Depois deu um pontapé na porta.

A cabeça do homem tinha-o perturbado de imediato. Por causa da cor, da transpiração, dos pêlos no nariz e da artéria que pulsava na têmpora direita. Mais tarde, ele perguntar-se-ia se tinha mesmo sentido raiva suficiente para aquilo suceder. Se tinha – e claro que tinha; o resultado não deixava margem para dúvidas –, fora certamente mais difusa, menos consciente do que em qualquer outra situação anterior. Ter-se-á visto a sair do carro e a pregar um murro na cara do outro homem; ter-se-á visto a pontapeá-lo enquanto ele se encontrava no chão; nunca se imaginou a rebentar-lhe a artéria.

Não houve esguicho de sangue. Apenas dor súbita na cara do homem, que se agarrou à têmpora direita, emitiu um grito estranhamente agudo e tombou no pavimento.

Ele permaneceu dentro do carro, ouvindo o homem gritar. Após uma mão-cheia de segundos, viu-o levantar-se, agarrado aos rails de metal que delimitavam a via a partir daquela zona, e tentar correr na direcção da carrinha. Viu-o cair quase de imediato.

Abriu a porta e saiu. Evitando olhar para o homem, fazendo um esforço para se abstrair dos gritos, marcou 112 no telemóvel. O veículo do INEM demorou vinte minutos a chegar. O homem já estava morto.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 05:57

Seg, 18/04/16

Jantou uma lata de atum com meia lata de feijão frade. Misturou tudo, acrescentou azeite, levou dois minutos ao microondas. Lavou prato, copo e talheres, e sentou-se na sala, pequena e demasiado cheia, com o portátil e um livro pousados no sofá ao seu lado. Forçou-se a ver as notícias. Depois fez zapping. Encontrou novelas, reality-shows, talk-shows, debates sobre arbitragens e foras-de-jogo de jogos de futebol, séries, um ou outro filme. Pensou que nessa noite já ingerira enlatados suficientes (a ironia fê-lo sorrir) e desligou o televisor. Lembrou-se de um velho tema de Bruce Springsteen (57 channels and nothin’ on), lançado numa época em que a televisão portuguesa apenas tinha dois canais, e recordou a sua ingenuidade ao pensar que o Boss estava maluco: com 57 à disposição, como seria possível nada de interessante estar a dar? Ainda pensou em colocar o CD no leitor mas a ideia rapidamente lhe surgiu como pueril. Tentou trabalhar mas descobriu que não conseguia concentrar-se. A certa altura, começou a ouvir pancadas, risos e o som de uma televisão no apartamento de cima. Conhecia mal as pessoas que lá viviam. Um casal de trinta e tal anos, sem filhos – por enquanto. Tornou a ligar o televisor mas os sons provenientes do outro apartamento subsistiram. Ficou a ouvi-los, olhando para o ecrã sem tentar extrair sentido das imagens mas mudando frequentemente de canal. Foi deitar-se perto da meia noite.

 

Acordou com dor de cabeça. O mais pequeno movimento fazia o cérebro pulsar uma onda de dor. A descida para o nível das garagens, no elevador que arrancava e parava com safanões e um estoiro metálico, deixou-o nauseado. O ruído do motor do carro era suficientemente abafado para não o incomodar mas o rádio renasceu numa explosão sonora que o entonteceu. Desligou-o com uma pancada, manobrou por entre os pilares e pela rampa acima, avançou para o término da fila.

Progrediu no pára-arranca habitual durante dez minutos, vendo carros dar o golpe duzentos, depois cem, depois cinquenta metros à sua frente. Atingiu por fim a zona de combate. Como habitualmente, colou a frente do carro à traseira do que o precedia – uma carrinha Mitsubishu conduzida por uma mulher que passava a mão no cabelo a cada cinco segundos. A primeira tentativa surgiu de imediato. Resistiu. Suportou uma segunda. A terceira foi mais agressiva – como se o outro condutor estivesse disposto a causar um acidente para entrar na fila (e quem sabe? Talvez estivesse). Agarrou o volante com força, pressionou a buzina, resmungou “Filho da puta” e assestou o olhar no pneu dianteiro do lado direito do outro carro. O estoiro foi imediato. Como na véspera, a frente do veículo teve um breve movimento ziguezagueante – quase parecia uma reacção de surpresa – e depois imobilizou-se.

Desta feita não houve paz. Apenas júbilo selvagem – que demonstrou, rindo abertamente ao ultrapassar o outro carro.

 

Não podia ser coincidência. Não duas vezes. Depois de se acalmar, perguntou-se o que diabo estaria a acontecer. Sentiu-se mesmo – agora sim – um pouco assustado. Mas rapidamente decidiu que não havia forma de chegar a uma conclusão racional – e, por conseguinte, a atitude mais racional era nem sequer tentar encontrá-la. Iria apreciar – e utilizar plenamente – este poder durante tanto tempo quanto lhe fosse possível. Quando desaparecesse, encolheria os ombros e seguiria em frente. Até lá, obrigaria aqueles filhos da puta a pagar caro todas as tentativas de fazerem dele um idiota. Raiva era a resposta – bruta, não diluída, honesta. Era isso que tinha de sentir ao olhar para aqueles pneus.

 

A facilidade era desconcertante. Na manhã seguinte deixou quatro carros com pneus rebentados no acesso à via rápida. Os condutores faziam perguntas uns aos outros e pesquisavam o pavimento em busca de objectos cortantes. Ele tinha vontade de rir e, por momentos, não foi capaz de o evitar. Apenas os condutores à sua frente na fila, que haviam abrandado para ver o que se passava, lhe estragavam ligeiramente a disposição.

 

Aprendeu depressa a controlar a raiva. Em poucos dias, funcionava quase sempre. Cerrava os dentes, assestava os olhos no pneu e apertava o volante como se este fosse o pescoço do outro condutor. A tensão no maxilar originava uma pressão nas têmporas que se desvanecia logo após o rebentamento.

 

Disseminada pelos boletins radiofónicos de informações de trânsito, na semana seguinte a estranheza começara a instalar-se Não passava um dia útil sem que rebentassem pneus naquele acesso. Na quarta-feira, havia polícia no local. Mas, com a presença da polícia (dois motociclistas entroncados com o olhar duro de quem deseja fazer jus ao uniforme), menos condutores tentaram dar o golpe e nenhum o fez perto dele. Todos os pneus passaram incólumes nessa manhã. Na seguinte, porém, cinco condutores tiveram de parar, perder tempo e sujar as mãos.

 

«Sentes-te bem?», perguntou Sara, parando junto à secretária dele.

Clicou no ícone save e ergueu os olhos para ela. Rodou o pulso, que desde há um par de anos lhe doía sempre que passava uns minutos a utilizar o rato. O estalo não fez abrandar a dor.

«Tão bem como noutros dias. Porquê?»

Sara vestia uma saia que terminava acima dos joelhos. Era uma má escolha para alguém com a idade - e especialmente o peso – dela.

«Tens andado... não sei, quase feliz. Ainda mais maníaco do que o habitual mas quase feliz.»

«E isso é mau?»

«Não. Não. Não sei.»

Ele tentou olhar para ela como se fosse a primeira vez que a via. (Era um exercício a que se entregava com frequência. Tentar re-adquirir uma primeira impressão de pessoas que conhecia há muito. Era também um exercício que, pela inutilidade, o irritava ligeiramente.) Perguntou-se se ela ainda lhe era atractiva, não obstante tudo o que sucedera entre ambos. Surpreendentemente, a resposta era positiva e gerava nele sentimentos de vergonha e desprezo – por ela mas ainda mais por ele.

«Tenho de acabar este relatório. Mas obrigado pela preocupação.»

«Não estou preocupada contigo.»

«OK.»

«Até pareces mais bem disposto.»

«Impressão tua.»

Ela hesitou. Depois moveu o corpo todo para encolher os ombros e foi-se embora.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 05:56

Dom, 17/04/16

Trabalhava numa empresa de investigação de causas e avaliação de danos de acidentes, quase sempre contratada por companhias de seguros. Diariamente, visitava locais afectados por incêndios, inundações, acidentes de trabalho graves, roubos. Falava com as vítimas – pessoas sem um braço, queimadas ou paralisadas –, com os colegas delas, com os patrões e com os familiares. Para todos eles, representava o inimigo. O indivíduo que, na sequência de uma infelicidade, vinha procurar formas de lhes recusar aquilo a que julgavam ter direito. Enfrentava essas situações com a mesma predisposição com que enfrentava o trânsito. Tinha uma tarefa a desempenhar e desempenhá-la-ia bem. Com cortesia e firmeza. Buscando factos. Recusando ser afectado por emoções. Este modo de conduta não tornava o processo indolor mas, no início da carreira, aprendera que estabelecer outro tipo de relação só dificultava o processo. Nem mesmo quando procurava levar as pessoas a dizerem-lhe o que provavelmente deveriam calar fingia amizade. Certas formas de actuação pareciam-lhe indignas. Pelo contrário, insistir, apontar contradições, ameaçar com as consequências de teimar numa mentira, esses constituíam procedimentos aceitáveis - e ele usava-os melhor do que ninguém.

Estava consciente de que era um trabalho de merda. Mas, nos cinquenta e dois anos que levava de vida, ganhara experiência suficiente para saber que quase todos são.

 

O chefe queria discutir o último relatório dele. Não porque tivesse erros (umas quantas acções de formação e pelo menos outros tantos livros sobre gestão de recursos humanos faziam o chefe começar todas as críticas com paliativos) mas porque desejava estar bem preparado ao apresentá-lo ao cliente. E porque achava que ele fora demasiado taxativo nas conclusões. «Estamos basicamente a chamar aldrabão ao sinistrado.»

«É o que ele é.»

O sinistrado era um empresário com três empresas do sector da cortiça, que andara a retirar material de uma delas antes da ocorrência de um incêndio. Não fora possível provar a natureza fraudulenta do incêndio mas ficara imediatamente óbvio que as quantidades de cortiça, de rolhas e até mesmo de equipamento (quão estúpido era preciso ser para retirar do local duas máquinas de escolha de rolhas e depois exigir que a seguradora as pagasse?) eram muito inferiores às reclamadas.

«Ele devia ser preso.»

«Talvez. Mas uma coisa é fornecer dados que permitam à seguradora decidir, outra é praticamente decidir por ela.»

«Ninguém está a decidir por ela. No relatório só se referem as inconsistências nas quantidades e as declarações de testemunhas que viram veículos levar cortiça das instalações no fim-de-semana anterior.»

Os olhos do chefe mostraram resignação por ter que lhe explicar novamente certas evidências. «É demasiado taxativo. Não deixa margem à seguradora…»

«E porque devia deixar? Há lá alguém com interesse em que o sinistro seja pago rapidamente, sem ondas?»

Nos olhos do chefe, a resignação passou a irritação.

«Sabes bem que não é isso. Fazê-los levar para tribunal um caso que lhes vai custar dinheiro e que acabarão por perder só vai levá-los a confiar menos em nós no futuro. E depois há as idas a tribunal que isto vai implicar. Não ganhamos dinheiro por ir a tribunal.»

Sentiu-se insultado, depois relaxou. Não valia a pena. «OK, amanhã trato disso.»

«Prometi entregar o relatório hoje.»

Levantou-se da cadeira. «Vai ter de adiar. Tenho pouco mais de três horas para fazer duzentos quilómetros – e comer qualquer coisa.»

«Dá tempo. Fazes as alterações em dez minutos.»

«Não num relatório desta importância, quando posso ter de ir a tribunal defender o que escrevi. Trato do assunto amanhã de manhã. »

Era sempre assim: resistia apenas para adiar o inevitável. Saiu, deixando o chefe a remoer o compromisso. Sara fê-lo parar. «Tens um minuto?»

Sara era a administrativa da empresa. Dava apoio ao chefe, aos três técnicos permanentes e a quaisquer outros contratados a recibo verde. Quarenta e poucos anos de idade, um metro e sessenta e cinco, divorciada, sem filhos. Uma dezena de quilos em excesso agrupados no tronco e nas ancas (a cara era surpreendentemente magra), cabelo pintado num tom de castanho que a embalagem juraria ser louro. Prolongava a última palavra de cada frase, fazendo tudo o que dizia soar a queixumes.

Dois anos antes, haviam tido uma relação. Em menos de um mês, estavam fartos um do outro. Sara descobrira nele os aspectos que ele sempre julgara estarem bem à vista (a intransigência, a falta de sociabilidade), ele surpreendera-se com quão desinteressante, carente e desorganizada ela era. A relação deixara um efeito de estranheza e ressentimento, que se manifestava sempre que a conversa se desviava do plano estritamente profissional.

«Não posso, estou atrasado. Tem que ser agora?»

Ela hesitou.

«Não, deixa estar. Conduz com cuidado.»

«Sempre. Até amanhã.»

Recolheu a pasta que deixara junto à secretária e saiu.

 

No final da tarde, ao regressar a casa, não resistiu e tentou de novo. O dia acabava tão cinzento como começara mas já não chovia. Nas três faixas da auto-estrada, o trânsito avançava cem metros de cada vez e depois parava repentinamente. Quando um miúdo num Focus com jantes pretas e ponteira de escape sobredimensionada fez uma diagonal da faixa da direita para a da esquerda, acabando dez ou quinze metros adiante do carro dele, parado na faixa do meio, fez o que fizera de manhã: olhou para o pneu traseiro direito do outro automóvel e desejou que rebentasse. Nada aconteceu. Verificou que a sua faixa continuava parada e tentou novamente, obtendo o mesmo resultado. Sentiu-se ridículo e zangado. Quando a faixa central avançou, o rapaz no Focus saltou para ela e, depois de ultrapassar um monovolume, regressou à da esquerda. Ele resistiu à vontade de fazer uma terceira tentativa e conduziu até casa com a raiva borbulhando-lhe na garganta.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 05:55

Sab, 16/04/16

Ficou estupefacto, da primeira vez que aconteceu. Não se assustou, ou pelo menos não muito; ficou apenas estupefacto. Como acreditava em explicações lógicas — como dependia de explicações lógicas — disse a si mesmo que fora uma coincidência. Mas não conseguiu evitar um sorriso de vitória ao passar pelo quarentão engravatado que olhava para os restos do pneu do carro com ar de surpresa e irritação.

 

Acordava todas as manhãs para um mundo de filhos da puta. Pior: levantava-se da cama e ia juntar-se-lhes. Trinta segundos após sair de casa estava mergulhado no trânsito, enfrentando picos de violência que normalmente apenas no final do dia eram igualados — mas nunca ultrapassados. Pensava: as pessoas fazem questão de começar o dia da pior forma possível. Depois: talvez seja uma estratégia; a aberração do trânsito matinal imuniza para o que quer que possa correr mal durante o resto do dia. Mas claro que não imunizava e ele sabia-o por experiência própria: com o emprego que tinha, algo corria sempre mal.

Vivia na periferia, num prédio de cinco andares. Se o carro não lhe fosse indispensável para o trabalho, deixá-lo-ia em casa – muito embora a ideia de passar três quartos de hora no interior de um autocarro, entalado entre guarda-chuvas molhados e sovacos mal-cheirosos, todas as manhãs e todas as tardes, ter força suficiente lhe causar vómitos. Ponderara deixá-lo estacionado junto à sede da empresa – um espaço de pouco mais de cem metros quadrados num prédio velho do centro da cidade – mas o risco de roubo ou de vandalismo era-lhe inaceitável. Apesar do cuidado que tinha na escolha dos locais onde o estacionava, a pintura já sofrera vários riscos e pancadas. O carro constituía uma das poucas âncoras que possuía – funcionava quase sempre do modo esperado; pedia pouco; tinha avarias que, como um osso partido no corpo humano, eram fáceis de entender – e não merecia ser abandonado à sorte.

Todas as manhãs, a selvajaria começava a poucas centenas de metros de casa, no acesso àquilo que apenas total inconsciência ou improvável humor negro permitira baptizar “via rápida”. Ele posicionava-se na faixa da direita, no término de uma fila com cerca de trezentos metros de comprimento. Soluçava em frente, tentando manter uma distância mínima para o veículo que o precedia – e a calma. Não era fácil, especialmente ao chegar à zona onde numerosos condutores procuravam forçar a entrada na fila. Ele nunca — nunca — deixava entrar alguém. Também nunca forçava a entrada em fila alguma. Nos cinquenta mil quilómetros que fazia anualmente, apenas erro ou distracção o poderiam levar a realizar um acto condenável. Naquela primeira fila do dia, como em muitas outras subsequentes, quem agia daquele modo estava a tentar ganhar dez minutos à custa dos restantes. Isso era-lhe inaceitável. Homens, mulheres, gordos, magros, bonitos, feios, conduzindo veículos caros ou baratos — ninguém entrava. Por vezes, fazia questão de olhar os condutores nos olhos, num esforço (que sabia inglório) de tentar fazer passar a sua posição — de intransigência mas, acima de tudo, de justiça. Gestos ou sorrisos pedindo um favor já não resultavam — sinais de hipocrisia, nada mais.

 

Chovia ligeiramente, naquele final de Março. Uma morrinha tão suave que era quase nevoeiro. O pisca do BMW preto lembrava uma sequência de fósforos apagados pela chuva logo após o clarão inicial. O BMW permaneceu ao lado e ligeiramente à frente do carro dele até a fila avançar e depois começou também a mover-se — mas ele foi mais rápido e não permitiu a criação de espaço suficiente. O homem no BMW percebeu que não valia a pena insistir — na estrada, certos sinais são inconfundíveis, mesmo sem contacto visual ou troca de palavras — e avançou alguns metros para tentar a sorte junto do condutor do veículo seguinte — um homem gordo, que momentos antes atirara uma ponta de cigarro pela janela da carrinha de caixa aberta que conduzia. Quando a fila avançou novamente, o homem da carrinha de caixa aberta esperou até o BMW se colocar à sua frente — e depois já não avançou, por falta de espaço.

Com frequência, apitava um protesto. Naquela manhã nem o fez. Mas, quando os veículos à frente dele avançaram, começando a descrever a longa curva à direita de acesso à via rápida, o olhar dele pousou na parte lateral esquerda do BMW – a única que conseguia ver. Pensou como seria agradável arrastar o condutor para fora do carro, atirá-lo ao asfalto, pontapeá-lo um par de vezes. Fixou os olhos no pneu traseiro direito do BMW e, de dentes cerrados, apertando o volante, pensou como seria adequado que ele explodisse naquele preciso instante, forçando o filho da puta a parar, sair do carro, molhar-se, perder a vez na fila, sujar as mãos.

Lembrar-se-ia de um estrondo surpreendentemente abafado — distorção da memória ou talvez efeito da chuva. Porém, encontrando-se a olhar para o pneu, teria dispensado o som. A traseira do BMW estremeceu e depois decaiu um pouco, como se alguém tivesse baixado um macaco pneumático. A parte inferior do pneu, dobrada e presa sob a jante, parecia ter sofrido um processo de fusão. Mas até mesmo a zona que não estava em contacto com o asfalto suscitava estranheza: a flacidez, o ligeiro afastamento entre o rebordo e a jante realçavam a incongruência decorrente da perda súbita de função (um objecto artificial que perde a função perde o sentido) e faziam do pneu rebentado não tanto um objecto real e prosaico mas algo mais imaterial – um conceito, uma experiência, um castigo.

Primeiro sentiu surpresa e choque, depois satisfação. Era perfeito. Exactamente o que desejara. Tão exactamente o que desejara, de facto, tão no preciso instante em que o desejara, que classificar o acontecimento como coincidência parecia forçado. Mas ele tivera fantasias similares antes e nada acontecera. Era uma coincidência. Uma fantástica e justa coincidência.

Quando passou pelo BMW, a visão do homem a olhar para os restos do pneu fê-lo sorrir e respirar fundo. Foi invadido por uma sensação de calma. Era uma sensação que não experimentava com frequência durante aquelas manhãs. Era uma sensação que — estava certo disso — se dissiparia rapidamente. Mas era uma excelente sensação.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 16:46

Sab, 23/01/16

Certa vez um cliente chamou-lhe «salão» e tanto Mário como Octávio pararam de cortar e olharam um para o outro com ar aparvalhado. «Isto é uma barbearia», resmungou Mário enquanto recomeçava a dar aos dedos. 

Trata-se de um espaço rectangular com cerca de cinco metros de comprimento por menos de três de largura. Quem entra pela porta dupla de metal e vidro, colocada numa das paredes mais curtas, depara-se com duas cadeiras de barbeiro voltadas para a esquerda, na direcção de um espelho que ocupa quase toda a área de parede acima de aproximadamente meio metro de altura. Ao lado da porta existe um bengaleiro e, ao lado deste, uma mesinha onde um rádio portátil sintonizado para a estação local debita canções pedidas por ouvintes que as dedicam a familiares e amigos. O espaço por trás das cadeiras de barbeiro é limitado, pelo que, das seis cadeiras de metal com assento e encosto forrados a napa verde-azeitona que aí se encontram, apenas as duas das pontas podem ser usadas sem que as pernas dos ocupantes compliquem a vida a Mário ou Octávio nas suas deambulações em torno dos clientes. Ao fundo, junto à porta de acesso a uma área reservada (onde presumo existir uma casa de banho), há um lavatório no qual é lavada a cabeça dos raros clientes que o desejam.

Mário é baixo, magro e usa bigode à treinador de futebol dos anos 70. Octávio é alto, tem cabelo branco em ondas que flutuam em torno da sua cabeça e uma dezena de quilos a mais. Mário é o patrão e essa circunstância está sempre implícita. Fala mais e de forma mais categórica. Octávio é o filósofo, embora um filósofo de tiradas curtas e frequentemente irónicas. Eu prefiro que seja ele a cortar-me o cabelo e ambos o sabem. Se é Mário que está disponível quando chega a minha vez, ele resmunga para o cliente seguinte: «Pode vir», o que deixa o homem indeciso, olhando dele para mim, tentando perceber se sou eu que não quero ser atendido por Mário, se é este que recusa atender-me. E, em qualquer dos casos, porquê. Contudo, apanhados de surpresa, ninguém tem coragem para expressar a dúvida em voz alta.

Apesar de lá cortar o cabelo há mais de trinta anos, sempre de dois em dois meses, sempre ao sábado de manhã, e de nunca ter mudado o estilo de corte, Octávio faz questão de perguntar: «Então como vai ser hoje?» Às vezes brinco com a ideia de lhe dizer para estar à vontade e cortar como lhe apetecer mas refreio-mo: por um lado, sou conservador, pelo menos no que respeita ao meu aspecto; por outro, julgo que os únicos estilos alternativos que Octávio e Mário conhecem são os permitidos pelos pentes das máquinas de corte.

A barbearia fica no largo municipal, vendo-se o edifício da Câmara quase em frente. No passeio estão sempre a passar pessoas. Quando no interior falta assunto de conversa, Mário (nunca Octávio) usa-as para evitar silêncios demasiado prolongados, de acordo com critérios que nunca percebi mas presumo estarem ligados ao seu estado de espírito (por vezes suporta longos períodos sem necessidade de falar, de outras parece incapaz de estar calado mais do que alguns segundos).

Hoje Mário apara os poucos cabelos existentes na cabeça de um idoso cujas feições me recordam alguém – seria funcionário na escola secundária nos tempos em que a frequentei? – enquanto Octávio me faz o corte do costume. À espera, encontra-se apenas mais um cliente, um homem franzino, com barba que parece não ser cortada há uma semana e cabelo que parece não ser lavado há três. Mário esteve a protestar contra o dinheiro injectado nos bancos, «que ainda por cima cobram cada vez mais comissões». Mas o filão esgotou-se e nos últimos trinta segundos só se ouviu Tony Carreira e o som das tesouras.

«O Antunes passa mais tempo na rua do que talho», diz Mário.

«Deve ir aos correios», diz Octávio. «Agora que deixou de receber cartas em casa.»

Octávio está entre mim e a porta e, de qualquer modo, está a dar os últimos retoques no corte do meu cabelo, pelo que não posso rodar a cabeça para ver quem passa na rua.

«O Magalhães continua a lá ir.»

«Acho que não foi, durante uns tempos.»

«Foi. Às escondidas, noutro horário.»

«Ah. Ele vai estar nas mesas de voto, desta vez?»

«Não sei. Deve estar.»

«E se acontece outra vez?»

«Pois, só a hipótese devia fazê-lo ficar em casa. Mas deve estar. Olha quem.»

Octávio pergunta-me se já chega. Digo-lhe que sim. Ele desaperta o pano branco que evita que o cabelo cortado entre para dentro da minha roupa (desconfio que os fazem a partir de lençóis velhos). Saio da cadeira.

«O que aconteceu?, pergunto.

«Não sabe?»

Digo-lhe que não faço ideia enquanto retiro uma nota de dez euros da carteira.

Naquele espaço é Mário quem conta as histórias mas, não gostando particularmente de mim, hesita. Depois decide-se.

«Toda a gente de cá conhece a história», resmunga. «Não se falou de outra coisa.» Ignoro o remoque. Ele mordisca o bigode e continua: «O Antunes está sempre numa mesa de voto. Nas últimas eleições estavam a contar os votos, tudo a correr como de costume, quando apareceu um em que alguém tinha escrito em letras grandes: 'A mulher do Antunes do talho anda metida com o carteiro'.»

Fica à espera da minha reacção. Rio-me. Por causa da história e da formulação da mensagem anónima: só numa terra destas alguém escreveria “anda metida”. Mantenha-se a decência, mesmo quando o tema são indecências.

O cliente seguinte intervém subitamente, enquanto se levanta da cadeira: «Ele chegou a ir a casa do Magalhães pedir satisfações mas não o encontrou e ainda foi insultado pela mulher. Pela mulher do Magalhães.»

«Isso é só gente a falar», diz Octávio. Estende-me quatro euros de troco, na mão aberta.

«Não», garante o homem. «A minha cunhada assistiu.»

Deixo dois euros na palma da mão de Octávio. Pergunto: «E era verdade, o que o escreveram no boletim?»

Mário funga. «Se fosse só com o carteiro…»

«Se calhar até foi ciúme», diz Octávio.

«Ele não reconheceu a letra?»

«Estava em maiúsculas», responde Mário.

«E ainda bem que não conheceu», diz Octávio. «O voto é secreto.»

Claramente, o tema já originou muitas piadas.

Mário sorri, demonstrando alegria genuína pela primeira vez. «A denúncia quase nem foi o pior. O Antunes é do PS. Sofre mais pelo PS do que pelo Benfica. E, como o boletim tinha a cruz no PS, queria que fosse válido.»

Octávio abana a cabeça, em sinal de respeito. «Pôr lá a cruz foi de mestre. Quem fez a coisa dava-se a requintes de malvadez.» Indica ao cliente seguinte que suba para a cadeira.

Despeço-me e saio. O céu está carregado mas não chove. Vou caminhando pelo passeio, em direcção a um dos cantos da praça. Ao passar junto ao talho, espreito lá para dentro. Não vejo o tal Antunes. Apenas uma mulher baixa e gorducha, com mais de cinquenta anos. Deve ser uma funcionária.




José António Abreu @ 16:47

Qui, 31/12/15

As dores começaram a sério na manhã do dia 31 de Dezembro. Para Susana, não constituíram uma surpresa. Há meses que as esperava a qualquer instante. Sentira-as até muitas vezes, em parte reais, em parte por antecipação. Fez uma tentativa débil para se convencer de que ainda não seria agora, de que não passava de um falso alarme, mas desistiu de imediato. Para quê fingir optimismo nesta fase?

Vítor estava a trabalhar. Pensou telefonar-lhe mas desistiu também dessa ideia. Fá-lo-ia mais tarde. Ou não. Os esforços que ele fazia para lidar com a situação deviam agradar-lhe (sabia-o perfeitamente) mas, em vez disso, irritavam-na.

Deitou-se no sofá da sala e recordou os dias do diagnóstico. A preocupação do médico, cuja confiança profissional se esvaiu ao perceber o grau do pessimismo dela. «Precisa de ânimo. Uma visão positiva é essencial.» As garantias de Vítor de que tudo correria bem: «Não há verdadeiras razões para ficares assim. As taxas de sobrevivência são altíssimas, hoje em dia.» (Evitava sempre dizer «taxas de mortalidade», em mais uma demonstração de tacto que a irritava profundamente.)

Ela sabia que era verdade. Mas também conhecia os factores de risco, que, honra lhe fosse feita, o médico nunca suavizara. E, acima de tudo, conhecia a história da sua família. Pesquisara. Por entre um mar de imprecisões e contradições, os familiares mais idosos recordavam pelo menos cinco mortes, todas pelo mesmo motivo. A penúltima, claro, fora a da mãe dela. A última, a de uma tia, irmã da mãe. Era a única de que Susana se lembrava, embora vagamente. Tinha seis anos. Haviam-na poupado ao funeral mas recordava a viagem até à Guarda, onde a tia residia com o marido. No final da década de 1970, as viagens ainda eram difíceis e, talvez por isso, memoráveis.

 

As dores não desapareceram. Pelo contrário, foram aumentando ao longo da manhã, como ela sabia que aconteceria. Almoçou uma maçã, voltou para o sofá. Perto do final da tarde, desistiu. Ligou para o telemóvel de Vítor. O som de chamada prolongou-se tanto que ela desligou num espasmo. Deu um par de minutos e ligou o número do médico. Dia 31 de Dezembro à tarde. Seria possível apanhá-lo? Foi. Atendeu, disse-lhe que seguiria de imediato para o hospital, profissional até na forma como escondeu a mais do que natural desilusão pela noite de passagem de ano estragada. Perguntou-lhe se tinha quem a levasse. Susana hesitou e depois respondeu que sim. «OK, encontramo-nos lá. Anime-se. Vai correr tudo bem.»

Ela sabia que as pessoas estranhavam. Que, no íntimo, a consideravam egoísta. Não era suposto reagir daquele modo. Tornava tudo mais difícil para toda a gente. Devia facilitar-lhes a vida, aceitando o desafio com estoicismo; não, com mais do que isso (estoicismo tinha ela) : com ânimo, talvez mesmo entusiasmo. Era incapaz de o fazer. Percebia a inutilidade do seu comportamento, a injustiça que cometia e pela qual, se tudo acabasse mesmo por correr bem, teria de se penitenciar, mas as coisas eram como eram.

À segunda tentativa, Vítor atendeu. O tom de pânico na voz dele devia tê-la enternecido. Não o fez. Ele prometeu estar em casa em menos de um quarto de hora. Susana disse-lhe para não exagerar no trânsito. Só faltava ter um acidente. Depois de desligar, lembrou-se do comportamento dele nos primeiros tempos. De como parecia sentir mais medo do medo dela do que do risco que ela corria. Susana acabara por lhe garantir: «Sossega. Não vou fazer nada de irreflectido. Não condiz comigo.» Mas nem por isso ele ficou mais tranquilo.

Sabia que correra riscos. Perguntou-se várias vezes porquê. Um desafio à sorte? Mas então por que não conseguira assumi-lo até ao fim? Porquê o negativismo, a sensação de que o trajecto era inexorável e ela (como na viagem para a Guarda, há cerca de trinta e cinco anos) uma simples passageira?

As dores regressaram, tão fortes que a atiraram ao chão. Ao longo dos últimos meses, a sogra, especialista numa mistura de encorajamento e crítica, dissera-lhe várias vezes para rezar. Susana nem sequer sabia uma oração.

 

A filha tinha testa ampla como o pai mas os olhos eram os dela. E o nariz. Susana perguntou-se que efeitos negativos teria programado o seu pessimismo naquele corpo minúsculo. Desconhecia se, há quarenta e um anos, a mãe a chegara a ver e não conseguia decidir qual a melhor hipótese: morrer depois de verificar a sobrevivência de uma filha ou antes de confirmar a existência de um ente que se abandona no mundo. Mas Susana sobreviveria. Pelo menos isso.

O médico entrou no quarto. Já vestia roupa normal, tinha um ar cansado.

«Deu luta, hã? Mas está de parabéns. Tem uma bela rapariga. E sortuda, ainda por cima. Vai começar já a ter presentes. Foi o primeiro parto do ano aqui no hospital e provavelmente em todo o país.»

Mas logo a seguir explicou-lhe que, agora, talvez fosse mesmo preferível evitar nova gravidez. «Não estou a dizer taxativamente que não possa. Digamos que é algo a avaliar com cuidado, dependendo da evolução da situação, OK?» Tocou-lhe no braço, desejou-lhe um bom ano e saiu.

Vítor começou a falar. Dizia o que devia dizer (tudo correria bem; era cedo para ter certezas; mesmo que não pudessem ter outros filhos, isso não constituiria uma tragédia) mas ela não sentia vontade de o ouvir. Olhou para a filha, que ainda nem tinha nome. Alegria e renovação do medo, pensou. Talvez a única forma adequada de entrar num ano novo.

 




José António Abreu @ 14:52

Sab, 04/07/15

«Só tu é que me vens visitar.»

Há seis camas na enfermaria. Desde a primeira visita de Jorge, há cerca de dois meses, o número das ocupadas variou. Hoje são quatro. A tia encontra-se na primeira à esquerda da porta de entrada. Ao lado tem uma senhora com mais de setenta anos, rodeada pela filha e por duas netas. A terceira cama encontra-se vazia. Na outra fila de três, a vazia é a do meio. Já lá teve uma rapariga, vinte e cinco anos, talvez nem tanto. Morreu há uma semana. Nas outras encontram-se duas senhoras de idade. Apenas uma tem companhia – do marido, pelo aspecto.

Jorge tem dificuldade em perceber as palavras da tia. A voz dela é fraca e arquejante. Não admira. Basta ver como está magra e fraca. De tal forma que lhe custa a acreditar que se trata mesmo da sua tia Helena, irmã mais nova da mãe dele. O elemento da família que, em criança, ele preferia. Simpática e sempre disponível mas cuidadosa para não o sufocar com beijos e abraços, como faziam outras mulheres da família. Uma vez (lembra-se sempre daquilo, quando pensa nela), estando Jorge doente (já não recorda qual a doença), passou horas na cama ao lado dele, jogando às cartas e às damas (a cama é um péssimo sítio para jogar damas: a maioria das partidas terminara com peças deslizando pelo tabuleiro e perdendo-se nos lençóis, por entre risos e acusações de batota). A tia era muito mais nova, então (teria pouco mais de vinte anos) e bastante mais atraente. Ainda se pode detectar parte dessa beleza na cara dela, hoje emagrecida pela doença. Desapareceu, contudo, toda a vivacidade que possuía, bem como toda a inconsequência que advém da juventude, de raramente se sentir dor física, do conceito de morte ser tão estranho e distante como a composição da atmosfera de outro planeta (em miúdo, os planetas e as estrelas eram um dos temas favoritos de Jorge). Hoje, a expressão da tia mostra não apenas desespero – expectável – mas um grau de surpresa que deixa Jorge perturbado e lhe torna difícil encará-la.

Sabe que ela fala verdade e que só ele a visita regularmente. Isso sucede porque outros elementos da família já morreram (a mãe dele, por exemplo), porque alguns emigraram (o enteado que ela criou desde muito novo), porque, encontrando-se no país, estão suficientemente longe para que a distância possa servir como desculpa (o ex-marido, o irmão, vários sobrinhos).

«Não precisas de vir tantas vezes. Tens a tua vida.»

«Não me custa nada. Faço-o com prazer.»

Prazer? Jorge fica envergonhado assim que a palavra lhe sai dos lábios.

Como sempre, tem dificuldade em manter a conversa. Esgotadas as frases ocas e, em alguns casos, falsas («Como se sente hoje?»; «Está com melhor aspecto.»; «Não tarda nada sai daqui.»), é-lhe complicado pensar em temas sobre os quais possam conversar. O passado, evidentemente, constitui a excepção. A tia parece apreciar relembrá-lo (até mesmo aquelas épocas nas quais Jorge mal a via e que – pensa ele – não devem ter sido particularmente felizes) mas ele fica desconfortável. Parece-lhe uma solução fácil, cobarde, que implica o reconhecimento de que ela morrerá em breve.

Mas morrerá. É uma questão de semanas, dois meses no máximo. Até já resistiu mais tempo do que os médicos previam no início.

«Cada vez tenho menos razões para permanecer viva.»

Não é a primeira vez que ela diz aquilo. A frase perturba-o. Coloca-lhe sobre os ombros uma responsabilidade à altura da qual teme não se encontrar. Já em várias ocasiões pensou em não vir com tanta frequência. As visitas deixam-no esgotado e, para mais, reside a uma centena de quilómetros, o combustível e as portagens não ficam baratos. Mas como pode fazê-lo? Sabe constituir uma dessas poucas razões – à medida que se torna evidente o desinteresse de outros membros da família, talvez a única. Se estivesse outra pessoa naquela cama, se não soubesse que, de facto, quase mais ninguém a visita, a frase poderia irritá-lo. Fazê-lo sentir-se chantageado. Mas aquela é a tia Lena. A sua tia preferida. Que sempre esteve disponível para ele. Que talvez apenas se mantenha viva para ele. (Valerá a pena? Deverá sentir-se mal por isso?)

Fica com ela até ao fim do horário para visitas. Faz-lhe perguntas sobre as companheiras de enfermaria mas descrever as doenças das outras mulheres e como várias já morreram também é deprimente. Torna claro que daquelas camas apenas se sai para o cemitério. Procura outros assuntos. Inevitavelmente, regressa ao passado.

No final, diz-lhe: «Volto em breve.»

A tia responde que não é preciso mas Jorge sabe que mente. Quando lho disse, perpassou-lhe pelos olhos um indício da antiga vitalidade. Um sinal de prazer.

«Faço-o porque quero.»

Inclina-se e beija-a. As faces encovadas perturbam-no. Difusamente, pensa que já devia estar habituado.

Olha para trás à saída e diz-lhe adeus. Segue pelos corredores e desce as escadas tentando não olhar para os outros visitantes. Não se quer rever neles. Na rua, inspira fundo. Mas o ar está quente e cheira a asfalto e gases de escape.

Estacionara o carro fora do perímetro do hospital. O horário das visitas terminou mas os passeios ainda estão atravancados com veículos. Passa entre uma carrinha branca e um furgão e começa a atravessar a rua. Apercebe-se de uma comoção difícil de definir, depois ouve um ruído de travagem e logo a seguir o automóvel atinge-o do lado esquerdo. Voa meia dúzia de metros. Ao cair, bate com a cabeça no asfalto. Sente o sabor do sangue. Antes da escuridão o envolver, pensa que a tia acabou de morrer.




José António Abreu @ 17:07

Qua, 13/05/15

 

Há um tema proibido em qualquer reunião da minha família: as peregrinações a Fátima. Inevitavelmente, com a insídia que caracteriza a maioria dos seus membros – provavelmente similar à que caracteriza a maioria dos membros da maioria das famílias – alguém acaba sempre por aproveitar um instante mais calmo nas conversas cruzadas para o abordar, desde que a tia Amélia e a tia Natalina estejam na sala. A discussão teológica que se segue tem tanto de novo como as cenas mais conhecidas dos velhos filmes portugueses mas, como elas, permite o conforto de verificar a constância de certos comportamentos e, ocasionalmente, que se atinjam momentos de surpreendente profundeza (se alguém parasse um pouco para reflectir sobre eles, o que está longe de ser o caso).

Irmãs do meu pai, a tia Amélia e tia Natalina aproximam-se dos setenta anos de idade. Nasceram ambas na velha casa de Vila Verde, vendida depois da morte dos pais. A tia Amélia é a mais velha. Casou há perto de cinquenta anos com um vendedor de tractores e alfaias agrícolas e mudou-se para Vinhais, distante de sete quilómetros. O meu pai, cinco anos mais novo, acabou por segui-la mas a tia Natalina foi parar mais longe. No casamento de um tio encontrou um rapaz da Marinha Grande e, após muitos lamentos da mãe (o rapaz era simpático e parecia de boas famílias mas a Marinha Grande ficava tão longe), casou-se com ele e mudou-se para lá. Apesar da distância, as duas irmãs mantiveram contacto, nas primeiras décadas através de cartas frequentes e telefonemas raros (as chamadas ficavam caras), ultimamente recorrendo ao telemóvel e ao Facebook, de que são fãs incondicionais.

A tia Amélia teve dois filhos, que – refere-o com um sorriso de orgulho, como se nada na vida ficasse a cargo da sorte e, por conseguinte, o mérito fosse todo seu – nunca lhe causaram preocupações. Já a tia Natalina deu à luz três crianças. Até hoje, duas tiveram apenas as doenças normais para qualquer pessoa mas à outra – a minha prima Cristina – foi diagnosticado um cancro há cerca de doze anos. Desesperada, a tia Natalina prometeu ir a Fátima se o tratamento resultasse. Cristina sobreviveu e a mãe cumpriu a promessa logo no mês de Maio seguinte.

A polémica começou num dia de Natal em que a tia Natalina descrevia novamente o quão andara preocupada e como, apesar de ter ficado com os músculos doridos e os pés cheios de bolhas, sentira uma paz imensa ao chegar ao santuário. Pouco impressionada, a tia Amélia resmungou: «Até parece que fizeste um grande esforço.»

Foi o bastante para iniciar uma discussão que se prolongou durante um par de horas, destruindo completamente o espírito natalício, a qual ainda hoje tem sequelas que seguem um guião mais ou menos fixo: a tia Amélia diz que ir da Marinha Grande a Fátima – «São o quê? Quarenta quilómetros?» – não é grande feito; a tia Natalina responde que lá sabe ela, que nunca andou mais de quinhentos metros de cada vez; a tia Amélia diz que andou, sim senhora, e por caminhos bem mais irregulares, além do que pode não ter ido a pé a Fátima mas conhece muita gente que já foi e dali mesmo, de Vinhais, que fica a uns quatrocentos, e que como todos sabem há pessoas que vão de Bragança e do Minho inteiro e certamente também do Algarve, e que essas é que são peregrinações difíceis; a tia Natalina replica que cada um vai de onde mora, que não tem culpa de morar relativamente perto do santuário, que há pessoas que ainda moram mais perto e não merecem ser apoucadas daquela forma, e que, no fundo, o que conta é a intenção; a tia Amélia responde que se contasse apenas a intenção não era preciso fazer a viagem, que também é necessário algum sacrifício concreto para a promessa valer alguma coisa e que, acima de tudo, é um descaramento e um pecado uma pessoa andar depois a gabar-se de ter feito um grande esforço quando na verdade não fez. Esta acusação tira a tia Natalina do sério e, se ninguém as parar (nesta fase é difícil) ficam para ali durante horas a discutir a importância da distância no valor da promessa enquanto os maridos continuam a jogar sueca ou dominó, fingindo não ouvir. Os restantes elementos da família primeiro divertem-se, depois tentam pará-las, por fim desinteressam-se e iniciam conversas paralelas.

É isto uma e outra vez. Entretanto, a minha prima Cristina confidenciou-me que a mãe, recusando embora admiti-lo para não dar o braço a torcer perante a irmã, já percorreu a pé os trinta e tal quilómetros até Fátima mais duas vezes. Para que a Deus não restem dúvidas acerca do seu empenho. Prometi a Cristina manter o segredo mas, a cada nova reunião de família, pergunto-me se não seria mais caridoso - mais cristão, até - deixar escapar a verdade.

 




José António Abreu @ 13:27

Sab, 14/02/15

 

Bate à porta duas vezes, com pouca força, e depois entreabre-a.

«Dá licença?»

«Ah, entre, João. Como está?»

«Bem, obrigado.»

Ela não se levanta. A mão que lhe estende é longa e magra e tem um anel com uma pedra azul no dedo médio. João aperta-a com cuidado. O toque é firme e suave, exactamente como esperava que fosse, mas ainda assim deixa-o perturbado. A mão dela está fria. Pensa em retê-la um pouco no interior da sua, para a aquecer, mas ela puxa-a. Ele segue a mancha azul com os olhos.

«Sente-se, João.»

Obedece. A cadeira é dura e baixa. João sabe ser quase dez centímetros mais alto do que ela mas naquele gabinete, sentados ela atrás da secretária e ele à frente, são da mesma altura. Repara no pequeno sinal castanho que ela tem junto ao olho esquerdo – e depois desvia o olhar.

«Anda tudo bem consigo, João?»

O tom de voz é neutro, impessoal, mas ainda assim ele sente um frémito. Hesita. Ela fez a pergunta a olhar para baixo, para os papéis em cima da secretária. Não estará verdadeiramente interessada na resposta, pensa João. Diz: «Dentro do possível.»

«Ainda bem, João.»

«A minha mulher morreu.»

Ela nem sequer ergue os olhos.

«Mas já foi há uns tempos, não foi?»

A reacção dela fá-lo arrepender-se de ter mencionado o assunto. Claro que ela tinha de saber. É directora de pessoal.

«Há oito meses. Quase nove.»

Ela levanta finalmente a cabeça. João repara que tem outro sinal, mais pequeno, do lado direito da testa, quase na têmpora. Não se vê bem porque às vezes o cabelo tapa-o.

«Ainda lhe sente a falta?»

Ele não sabe que resposta dar. Não quer mentir mas dizer que quase já não pensa na mulher, ainda por cima depois de ter puxado o assunto, vai parecer mal.

«Tento não pensar nisso.»

Ela continua a olhá-lo durante mais um instante. Depois diz: «É capaz de ser o melhor» e volta a baixar os olhos para os papéis. João sente desvanecer-se o orgulho de ter conseguido uma resposta inteligente.

João não apenas pensa pouco na falecida mulher como já nem se lembra bem dela. Houve um par de ocasiões em que tentou recordar-se das suas feições e não conseguiu obter uma imagem precisa. Mas recorda-se de muitas outras coisas. Recorda-se, por exemplo, de quando a directora de pessoal chegou à empresa, três anos antes, tinha ele já vinte e seis de casa. Disse-se que vinha de outra empresa do mesmo sector. Que nessa outra empresa liderara um processo de despedimento colectivo e depois fora também mandada embora. Claro que pode não ter passado de um boato. Uma forma de a diminuir e fragilizar logo à partida. João também trabalhara noutra empresa antes – mas há uma eternidade, entre os quinze e os vinte e um. Depois viera para esta. A constatação de que haviam decorrido vinte e nove anos (quase trinta, na verdade) deixa-o confuso e indisposto. Especialmente por isso o lembrar de que está a chegar aos cinquenta anos de idade. E sente-os. Gostaria de não sentir, por vezes tenta convencer-se de que não sente, mas sente.

A directora de pessoal deve ter trabalhado em mais empresas, não apenas na anterior e nesta. Ou então passou muitos anos na anterior. No início, quando ela chegara, João tivera dificuldades em determinar-lhe a idade. Magra, elegante, bem vestida, quase sempre de saltos altos, parecia não ter mais de trinta e cinco. Mas depois observava-se-lhe a cara e ficava-se na dúvida se a maquilhagem não servia para disfarçar os efeitos de um número de anos mais elevado. João perguntara a alguns colegas e fora gozado por isso mas acabara por descobrir: quarenta e um. Isto há três anos. Agora andará pelos quarenta e quatro. João pensa que ela não os parece. E depois, como em inúmeras ocasiões nos três anos anteriores, que é apenas seis anos mais nova do que ele.

Ao chegar à empresa era casada mas entretanto divorciara-se. Tinha um filho, que João vira apenas uma vez, logo no primeiro Natal. Nessa altura a empresa ainda fazia uma festa, com distribuição de presentes às crianças dos trabalhadores. O filho dela andaria agora pelos oito ou nove anos, o que significava que ela o tivera por volta dos trinta e cinco. João sabe que hoje em dia poucas mulheres têm filhos antes dos trinta e cinco. A carreira é mais importante. Ele também tem um filho. E uma filha. Mas ambos já acima dos vinte. Haviam nascido, com menos de dois anos de intervalo, numa época em que tanto João como a mulher andavam pelos vinte e cinco – praticamente a idade que o filho tem agora. Estão fora de casa, ele numa empresa de metalomecânica na Alemanha, ela a acabar o curso de assistente social no Porto. Espera-a o desemprego, é o que todos dizem, mas João tenta não pensar nisso. Desde que ficou sozinho em casa esforça-se por não pensar no futuro. A mulher é que fazia questão de estar sempre antecipar o futuro – constantemente cheio ameaças.

Ela fala de novo: «João, não sei se desconfia da razão por que quis falar consigo.»

No decurso daqueles três anos João vira-a poucas vezes. Apesar de ser directora de recursos humanos, raramente vai à fábrica. Mas ele lembra-se de que houve uma época em que andava abatida. Foi antes e logo depois do divórcio que – João ouviu-o não sabe a quem – coincidiu com a morte da mãe. Um dia, por volta das três e meia da tarde, João ia a sair, depois de concluir o turno, quando a viu dirigir-se para o carro. Parou. Trabalhando em horários desencontrados, nunca tinha oportunidade de falar com ela. Mas agora ali estava, saindo mais cedo por qualquer razão. Começou a caminhar na direcção do carro dela, tentando lá chegar ao mesmo tempo que ela. Estavam ambos a cerca de dez metros quando ela o viu. João notou as olheiras e o ar cansado e ficou sem coragem para meter conversa. Disse «Boa tarde» ao passar por ela e continuou a caminhar. Que se lembre, ela não falou. João só olhou para trás quando ouviu o carro arrancar. Depois foi para casa.

Apercebe-se de que ela disse qualquer coisa que lhe escapou.

«Desculpe, o quê?»

Ela olha-o rapidamente e depois desvia os olhos.

«A empresa não faz isto com agrado, João, mas os tempos estão complicados e é necessário reduzir os custos.»

«Vou ser despedido?»

«Não tome isto como uma questão pessoal, João. A empresa precisa de reduzir o pessoal. Vai ser cortado um turno e vão ser dispensados alguns elementos da área administrativa.»

João consegue agora perceber que o sinal mais pequeno não é bem preto. É escuro mas ligeiramente rosado. Ou talvez fique assim quando ela está nervosa.

«Evidentemente, serão pagas todas as indemnizações devidas. Tenho aqui o valor da sua.»

Mas é difícil ter certeza de que está nervosa. Parece mais cansada do que nervosa. E aborrecida - ou talvez farta. João pensa que não deve ser fácil ter de dar aquelas notícias. Pega no papel que ela lhe estende.

«Porquê eu?»

«Você está no sector onde temos mais excesso de capacidade. E depois não tem família a seu cargo.»

«A minha filha ainda está a estudar. Sou eu que lhe pago os estudos.»

Ela olha para os papéis.

«Deve estar a acabar o curso, não deve? E você vai ter subsídio de desemprego. De qualquer forma, a maioria dos seus colegas tem filhos mais novos.»

É verdade. Não obstante a empresa ter muitos trabalhadores com idade parecida com a dele, raros foram pais antes dos trinta ou trinta e cinco anos. Toda a gente tem filhos mais tarde, hoje em dia.

João não tem vontade de discutir a situação. Olha para o papel. Ela diz: «Não é um valor baixo. Você já cá trabalha há muitos anos.»

Ele não sabe o que dizer. Não lhe apetece discutir. Não com ela, pelo menos. Ficam assim, em silêncio, durante vários segundos que parecem acabar por ser mais desconfortáveis para ela.

«Quer fazer alguma pergunta, João, ou dizer alguma coisa?»

Está a olhar para ele, agora. Mas neste momento é a João que apetece desviar os olhos. Perpassa-lhe pela mente a ideia de que a comunicação dela e o papel que tem na mão são provas do seu falhanço. Em vinte e nove anos de serviço (falhará os trinta por dois meses) não conseguira tornar-se importante para a empresa. Pelo contrário: é dos menos importantes. E é ela quem lhe comunica o facto.

«Não.»

«Não leve isto pessoalmente. Não deixe que o afecte. E, se precisar de falar comigo outra vez, esteja à vontade.»

Estende-lhe a mão. João levanta-se da cadeira e aperta-a. Continua fria.

«Boa sorte, João», diz ela.

«Obrigado.»

João roda e dirige-se para a porta. Pára junto dela e roda outra vez.

«Talvez volte. Vou pensar no assunto e depois talvez volte.»

«Claro, João. Mas marque primeiro, está bem? Se aparecer sem avisar pode estar cá alguém e eu não o poder atender.»

João faz que sim com a cabeça. Abre a porta e sai. Enquanto a fecha, aproveita para a olhar uma última vez. Está de novo a prestar atenção aos papéis.




José António Abreu @ 10:44

Sab, 15/11/14

 

Era racista mas uma doença deixara-o cego. Depois disso tinha imensos problemas em manifestar o racismo às pessoas certas. Fazia-o por ouvido. Quando alguém lhe soava a negro – ou amarelo, pois era um racista abrangente – fazia comentários depreciativos, trejeitos de desagrado ou, nos dias de maior comedimento, afastava-se. Normalmente os alvos suportavam a atitude com estoicismo. De resto, que poderiam fazer? Esmurrar um cego?

Enganava-se imensas vezes – não apenas porque os círculos em que se movimentava eram quase exclusivamente caucasianos mas também porque as pessoas o evitavam ou então se divertiam às suas custas, imitando sotaques africanos ou orientais. Chegaram a trocar-lhe a bengala branca por uma pintada de preto. Andou com ela vários dias, gerando hilaredade nos que o conheciam mas correndo riscos sérios de ser derrubado num passeio ou atropelado ao atravessar a rua, uma vez que muitos transeuntes e automobilistas  não se apercebiam da sua condição de cego.

Como seria de esperar, a dada altura ele começou a aperceber-se das partidas. Isso não o tornou mais prudente. Pelo contrário: aumentou-lhe a paranóia. Recusou um cão-guia com medo que lhe arranjassem um com pêlo preto ou de raça estranha (ninguém chegou a perceber que raças eram aceitáveis mas ficou evidente que abominaria ser guiado por um cão de água). Justificando-se com a premissa de que «quem apoia a perda da identidade branca não merece respeito» insultava toda a gente. Como nem sequer conhecia outros racistas assumidos, não abria excepções. Alguém afirmou um dia: «É uma besta mas, desde que perdeu a visão, bastante igualitária.» Vai-se a ver e descobre-se aqui uma lição de moral.




José António Abreu @ 15:44

Ter, 01/01/13

Imaginem um robot. Um robot qualquer, com a aparência que mais vos agradar. Humanóide como o C3PO, apenas um braço articulado como os das linhas de montagem de automóveis, até mesmo com o formato de um daqueles aspiradores que se movem sozinhos pela sala. Qualquer um serve, embora humanóide talvez torne as coisas mais fáceis. O robot que imaginaram, como qualquer robot, funciona de acordo com um conjunto de algoritmos: faz B se acontecer A, opta por D se ocorrer C. Tem uma lógica, segue um conjunto de regras definidas e compreensíveis. Pode, em alguns casos, aprender novas regras mas parte sempre das existentes. Agora imaginem que, em resultado de uma sobrecarga eléctrica, de um vírus informático ou de outro motivo qualquer, se dá uma reprogramação aleatória. O robot deixa de fazer B quando acontece A e passa a fazer D. Ou X. Ou F seguido de R. Para um observador, o robot enlouqueceu. Mas ele continua a fazer o que sempre fez: seguir a programação. Não tem forma de saber que um acontecimento inesperado, e talvez até desconhecido para as pessoas que o rodeiam, lhe alterou os algoritmos. Para ele, tudo está normal – ainda que, em vez de trazer uma bebida ao dono, o tente matar.

A loucura dela era assim. Julgo que a loucura das outras pessoas, a loucura 'normal', tende a ser diferente, mais desordenada e imprevisível, mais parecida com o comportamento que se obteria se os circuitos do robot ficassem parcialmente queimados. Mas a dela era assim. Uma loucura constante, digamos. De confiança, até. Uma loucura que se manifestava nos actos (depois de usar um copo rodava-o entre as palmas das mãos cinco vezes para cada lado; antes de vestir as cuecas alisava-as primeiro sobre a cama; depois de se espreguiçar dava sempre três pulinhos, pondo-se em pé se antes estivesse sentada) e especialmente nas palavras: quando alguém na televisão dizia «Boa noite» (no início dos noticiários, por exemplo) levantava-se de um salto e, com um sorriso, gritava: «Filho da puta!», após o que se sentava com a perna direita dobrada sob o corpo. Está bem de ver que  nem «boa noite» nem «filho da puta» tinham para ela o mesmo significado que têm para a maioria de nós. «Filho da puta» era a forma de ela retribuir o que entendia como um piropo. Se quando estávamos sozinhos em casa este comportamento não gerava quaisquer problemas (eu estava habituado, o José Rodrigues dos Santos não a ouvia), quando estávamos na rua ou num restaurante a situação era mais delicada. Bastava-lhe ouvir «boa noite» para responder de imediato. Apesar do sorriso que ela mantinha na face, nem toda a gente reagia bem.

Para mim, o mais difícil foi perceber que não havia uma relação lógica entre os termos normais e os termos que ela utilizava. Por exemplo: se a «boa noite» correspondia «és lindo» (ou «és linda»), a «bom dia» correspondia «fazes sombra». «Não» era «direita», «sim» era «verdade», «vermelho» era «esquerda». E, já agora,  a «filho da puta» correspondia, acreditem ou não, «maçaroca de milho». Ela tanto usava substitutos para expressões como para palavras individuais, o que tornava ainda mais difícil decorar-lhe o léxico. Se, em «maçaroca de milho», «maçaroca» significava «filho» (ou «filha»), usada só por si queria dizer «marmelada». Ouvi-a centenas de vezes pedir, durante os pequenos-almoços («barcos à vela») que tomávamos na nossa pequena («três») cozinha («camisa») empoleirados («regatear») em bancos («camiões») estreitos e altos («sorvetes»), parecidos com os que se podem encontrar junto aos balcões («agrafadores») de alguns bares («espirros»): «festinhas maçaroca» («passa-me a marmelada») e «roçar maçaroca na trave» («põe-me marmelada no pão»).

O mais extraordinário é que, embora com significados diferentes, ela usava as mesmas palavras das outras pessoas. Apenas em meia dúzia de casos, vá-se lá saber porquê, inventara termos: «crotético», por exemplo, significava «amarelo»; e «bruntanetilíaco», «talvez».

E, como o robot, nunca variava. O dicionário no interior da cabeça dela podia ser diferente do das outras pessoas mas era constante. Talvez com duas ligeiras excepções: o uso dos artigos e os tempos verbais. Nestes campos, as regras não pareciam cem por cento fixas. Em «festinhas maçaroca», por exemplo (relembre-se: «passa-me a marmelada»), dispensava o artigo definido; mas em «maçaroca na trave» («marmelada no pão») o artigo encontrava-se lá, embora tivesse mudado de género. E, se em alguns casos trocara verbos por outros verbos e mantinha os tempos verbais, noutros trocara-os por substantivos, adjectivos ou advérbios e usava uma única expressão para todos os tempos verbais: «festinhas» significava «passa-me» mas também «passar», «passou», «passarei», etc. Quaisquer associações lógicas funcionavam apenas no cérebro dela.

Já era assim quando a conheci. Eu tinha trinta e quatro anos e ela vinte e cinco. Encontrámo-nos pela primeira vez na casa de uma das minhas tias, que estava ligada a uma associação qualquer de solidariedade social. Já não me lembro por que a fui visitar mas lembro-me – oh, quão me lembro – de ter sido uma rapariga minha desconhecida a abrir-me a porta. Tinha cabelo castanho liso que lhe chegava pouco abaixo dos ombros, olhos verdes, nariz pequeno e lábios um tudo-nada finos. Após um instante de surpresa, eu disse: «Olá.»

A expressão dela fechou-se. Perguntei-me se estaria à espera de outra pessoa e ficara desiludida ao ver-me. «Posso entrar? Sou o sobrinho da D. Amélia». Pareceu vacilar um instante e depois perguntou: «Boa trotinete?»

Hesitei, olhei para trás. Não vi qualquer trotinete. Voltei a encará-la.

«Er... não. Vim a pé.»

Pareceu confusa, algo que acontecia frequentemente: de facto, se, para as outras pessoas, o que ela dizia não fazia sentido, ela tinha o mesmo problema com as frases alheias. Ficámos em silêncio durante vários segundos. Tentei sorrir. Disse: «Posso entrar?»

Ela animou-se. Respondeu: «Balão.»

Continuava na minha frente, a impedir-me a passagem. Tentava decidir o que fazer quando a cabeça da minha tia surgiu por cima do ombro esquerdo dela. Sem falar, puxou a rapariga pelo braço e, sem dificuldade, fê-la recuar. Depois soltou-lhe o braço, agarrou o meu e arrastou-me até à cozinha. Disse: «Não quis ir para a sala porque está lá gente e era mais difícil explicar. Em especial porque ela se vai intrometendo e é uma confusão.»

«O que é que ela tem?»

Abanou a cabeça com ar pesaroso. «Ela não é normal.»

«Não é normal em que sentido?»

«Chama-se Cristina e é adorável. Mas o cérebro dela não funciona bem. Não diz coisa com coisa.»

«Como a maior parte das pessoas que conheço. Incluindo eu – e, às vezes, a tia.»

Ignorou-me. «Tem uma linguagem própria. Para ela, as palavras significam outra coisa.»

Se alguém me perguntasse, eu diria que a minha expressão devia ser aparvalhada mas, considerando a inquietação da minha tia, se calhar já revelava essencialmente fascínio.

«Deixa a rapariga em paz», pediu. «Não te metas em problemas.»

Mas a minha curiosidade havia sido despertada. Só larguei a rapariga quando as duas mulheres com quem ela estava, ambas amigas da minha tia, uma delas tia de Cristina (a mãe, soube-o mais tarde, falecera há meia dúzia de anos e o pai desaparecera pouco depois de ela nascer), saíram, levando-a com elas. Tendo percebido o meu interesse, a minha tia passou dez minutos a avisar-me para não me meter com «a rapariga». Não resultou, claro. Fui visitá-la no dia seguinte e quase todos os dias que se seguiram a esse. Para além da beleza dela, fascinava-me aquele mundo próprio, aquela lógica intransigente, aquela capacidade de criar uma linguagem que mais ninguém entendia. As nossas conversas – durante muito tempo, vigiadas pela tia desconfiada – pareciam jogos de palavras aleatórias, em que ela entrava com um prazer infantil e eu hesitava, erguia as mãos e mordia os lábios, tentando, mais intensamente do que em qualquer outra ocasião no passado, compreender o que me diziam. Cristina ensinou-me a ouvir; a, pela primeira vez na vida, escutar verdadeiramente o que alguém me dizia e a aplicar todas as minhas capacidades na descodificação do que me era dito. Nenhuma conversa com ela permitia distracções ou desinteresse.

Evidentemente, não foi fácil. Foi muito mais difícil do que aprender uma língua estrangeira porque não havia associações possíveis nem qualquer lógica subjacente. Eu limitava-me a anotar todos os seus termos e a decorá-los. De início, cometi erro atrás de erro. (Na verdade – e estremeço ao escrever isto –, nunca deixei de os cometer.) Mas ela mostrou-se sempre simpática e relaxada, pronta a ajudar-me: parecia ver os meus erros como simples tontice, como os de uma criança que ainda troca palavras ou não as consegue pronunciar correctamente.

Também não foi fácil lidar com os outros. Com as nossas famílias, desde logo. Cristina vivia mais ou menos resguardada do mundo, contactando apenas familiares e amigas da tia, para além dos médicos a que ia duas vezes por mês. Houvera um tempo em que a medicina se interessara seriamente por ela. Tinham sido efectuadas dezenas de testes ao seu cérebro, tivera de submeter-se a consultas com os mais variados «especialistas», haviam-se discutido viagens ao estrangeiro e tratamentos alternativos – tudo para nada, pelo menos no que lhe dizia respeito (desconheço se a medicina evoluiu alguma coisa com todo esse estudo). Às vezes eu perguntava-me se teria sido melhor que algum dos especialistas tivesse encontrado a cura. Chegava à conclusão de que, para ela, provavelmente teria sido. (Agora – como poderia ser de outra forma? – já não tenho dúvidas.) Para mim, todavia, achava que não. Fosse ela uma rapariga 'normal', é possível que não me tivesse despertado tanto interesse. Provavelmente nem nos teríamos conhecido, pois não haveria razão para ela acompanhar a tia com tanta frequência. Enfim, de que vale perder tempo a pensar nisto? A medicina ainda não soluciona (nem sequer percebe) todos os problemas do ser humano e Cristina era como era. Tal como os membros das nossas famílias – incluindo os meus pais – que viam com apreensão o nosso relacionamento.

Depois de passarmos a viver juntos, eu fazia questão de que tivéssemos uma vida tão normal quanto possível. Arrendámos um apartamento perto do meu emprego, o que nos permitia almoçar juntos todos os dias. A princípio, receando deixá-la andar sozinha pelas ruas, era eu que ia almoçar com ela mas depois percebi que não a podia manter presa em casa e, tendo-me certificado de que conhecia bem o curto trajecto, aceitei que por vezes viesse ter comigo. Ao fim-de-semana saíamos e dávamos passeios no parque e sentávamos em esplanadas a observar as outras pessoas. A nossa conversa era sempre motivo de interesse para os ocupantes das mesas mais próximas, que nos olhavam de soslaio, uns divertidos, outros ligeiramente incomodados, como se receassem que a qualquer momento pudéssemos revelar-nos maníacos assassinos. Ao princípio, eu próprio ficava incomodado, percebendo estar a ser classificado como louco, mas depois habituei-me. No fundo, que me importava a reacção alheia?

Nunca casámos. Cheguei a pensar nisso mas não conseguia ver como a poderia levar a dizer «sim» («verdade») no momento certo quando ela nem sequer entenderia a pergunta. Sendo que não bastaria ela compreender a pergunta: seria ainda preciso convencer as autoridades de que ela casava voluntariamente, apesar de não responder «sim» mas «verdade». De qualquer modo, casar não me era fundamental e, se cheguei a sondá-la acerca do assunto, foi por receio de que ela o desejasse e a minha falta de proposta a desiludisse. Afinal, não deu grande importância à questão.

Mas houve momentos difíceis, claro, temas que, esses sim, ela considerava importantes. Por exemplo, Cristina gostava de crianças e desejava ser mãe. Mas ter filhos com ela era um passo que eu não me atrevia a dar. Os médicos que a acompanhavam (inúteis, uma vez que nem sequer se davam ao trabalho de tentar comunicar verdadeiramente com ela) garantiam existir sérias hipóteses do problema dela ser geneticamente transmissível. Tal possibilidade era já bastante assustadora mas eu tinha ainda outros receios. Mesmo que os nossos filhos nascessem 'normais', que língua aprenderiam? A normal ou a nossa (minha e dela)? Como poderia uma criança crescer numa casa em que se falava de modo totalmente diferente da usada pelas restantes pessoas? Como poderia eu ensinar-lhes o significado habitual das palavras enquanto Cristina falava com eles usando outro? Por tudo isto, sempre que ela abordava o assunto, eu fugia cobardemente e dava desculpas esfarrapadas.

Apesar dos problemas, das ocasionais incompreensões e discussões, vivemos juntos três anos e meio de quase total felicidade. Sim, apenas três anos e meio. Um instante na vida de qualquer pessoa.

Foi numa tarde de sábado, por volta das quatro da tarde. Quando Cristina me largou a mão e começou a atravessar a rua, eu vi a carrinha. Em pânico, gritei: «Cuidado!» Ela parou e rodou com um sorriso amplo na face. Antes de poder falar, a carrinha atropelou-a. Foi projectada vários metros e ficou estendida no asfalto, inconsciente, com sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. Corri para ela, agarrei-a, gritei-lhe, mas não voltou a recuperar os sentidos.

Passaram semanas e sinto-lhe a falta. Houve muitos períodos em que não foi fácil viver com ela. Em que tive vontade de desistir. Ao pensar nesses momentos, sinto vergonha. Parece-me que fui muitas vezes fraco, que não estive à altura. Mas pior, incomensuravelmente pior, é não conseguir deixar de pensar que o meu erro pode ter sido intencional. Minutos antes do acidente, tínhamos discutido. Foi por causa da discussão que ela me largou a mão e começou a atravessar a rua sozinha. Disse-me: «Sopra» («larga» ou «larga-me») e saiu disparada. E, desde esse instante, não tenho parado de me questionar se, quando gritei «cuidado!», o fiz verdadeiramente em pânico, recorrendo à linguagem que me ensinaram desde criança, ou com perfeita consciência de que, para ela, «cuidado» significava todas as variações de «amar», incluindo «amo-te».




José António Abreu @ 12:55

Sex, 07/12/12

Genial compositor de música contemporânea, atingiu a fama através de obras como a Sinfonia Contrapuntística, em que metade dos trezentos executantes entrechocava garrafas de Coca-Cola enquanto, de forma assíncrona, a outra metade fazia o mesmo com latas de Pepsi, a cantata Sons da Exclusão, para soprano gaga, tenor fanhoso, barítono com dislalia, um coro de mudos, outro de pessoas afectadas por síndrome de tourette e uma orquestra de deficientes motores, e a sequência Ruídos Corporais, que inclui peças tão diversas como a Sinfonia de Tosses (composta após a morte do pai com tuberculose), o Concerto para Pigarreio e Três Espirros (Um dos Quais Contido) e o divertimento Arrotos e Manifestações de Gases. Maníaco da perfeição, discordava frequentemente da forma como as suas obras eram apresentadas, tendo mantido polémicas com vários maestros. Gostava de marcar presença nos concertos. Detestava ouvir o público tossir ou arrastar os pés.




José António Abreu @ 00:14

Dom, 12/08/12

Ele era médico legista e ela não conseguia deixar de pensar nisso enquanto faziam amor. Ele tocava-lhe de uma forma tão precisa, tão leve, tão cirúrgica que ela se sentia mais exposta do que alguma vez no passado. Sabia que ele conhecia em pormenor todos os músculos, todos os tendões, todas as artérias e todas as veias do seu corpo. Sentia-lhe os dedos deslizando pelos braços, em redor do peito, através do abdómen e não conseguia evitar um arrepio de temor. Como se, a qualquer instante, com um gesto suave e preciso, usando uma unha como bisturi, ele pudesse abrir-lhe um golpe na carne e entrar-lhe verdadeiramente no corpo. Estava consciente de que era uma estupidez pensar tal coisa: ele era amável, atencioso, até um pouco tímido (e trazia sempre as unhas bem curtas). Mas não conseguia evitá-lo. Na realidade, era forçada a admitir que não desejava evitá-lo. Que procurava a sensação. Que a transformara numa parte essencial do acto amoroso. As capacidades dele para ler o corpo humano, para identificar zonas frágeis, para o desmembrar, se fosse preciso, haviam-se tornado num elemento de excitação adicional.

Meses depois do início da relação abordou finalmente o assunto. Perguntou-lhe: «O meu corpo é muito diferente dos corpos com que lidas no trabalho?» Os olhos dele arregalaram-se de surpresa. Ela ponderou se teria sido a primeira mulher a colocar-lhe a pergunta. Depois pensou que talvez a surpresa dele resultasse não de ser a primeira vez que lhe faziam a pergunta mas de, tanto tempo decorrido após o início da relação, já não a esperar. Antes de ele responder, acrescentou: «O que quero dizer é: quando acaricias o meu corpo notas as semelhanças com os corpos que autopsias? No fundo, é só carne, não é?» As palavras soaram-lhe inadequadas e brutais e ela arrependeu-se de ter iniciado aquele diálogo. Mas ele recuperara a expressão de beatitude. Quase sorria, na verdade. Disse: «Não, não noto as semelhanças. Noto as diferenças.»

Foi nesse momento que a relação deles entrou numa nova fase.




José António Abreu @ 23:31

Sab, 11/08/12

Em parte, também mato pessoas porque não posso – nem quero – fazer outras coisas que me permitiriam desafiar os limites do que é considerado normal. Abomino a conformidade mas também o espalhafato e a falta de inteligência. Se sabotasse o resultado do meu trabalho seria despedido após umas quantas advertências. Se me juntasse a uma claque de futebol para poder usar de violência de forma mais ou menos irrestrita teria de suportar a companhia de energúmenos – e de fingir ser um deles. Roubar não é opção – não desejo fazer algo apenas por ser ilegal. Na verdade, todos estes actos são ainda normais. Ninguém estranha que se torpedeie o trabalho ou que se roubem objectos. Ninguém estranha, ainda que procure convencer-se do contrário, que se exorcizem tensões destruindo o se apanha à frente. Não – já o escrevi: se um dia for apanhado, ninguém poderá dizer que fiz o que fiz por qualquer razão normal, mesquinha, compreensível. Hão-de coçar a cabeça, tentando perceber. E falharão, claro, porque as tentativas permanecerão tímidas, confinadas ao lugar-comum, balizadas pelo medo de entrar em áreas de onde talvez não se saia com facilidade. As pessoas não estão interessadas em chegar à verdade. Ouço-as até perguntando: que verdade? E sinto-me forçado a sorrir.




José António Abreu @ 13:44

Qui, 09/08/12

«No fundo, não és assim tão diferente de outras pessoas. Também sonhas com uma relação perfeita.»

«Não.»

«Então?»

«Não existe tal coisa. Foi o que te acabei de dizer. Pelo menos entre duas pessoas de carne e osso.»

«Sim, já sei: só entre uma pessoa e coisas

«Pelo menos estiveste a ouvir. Mas não só. Também é possível entre uma pessoa e uma imagem. Pensa na Charlize Theron. Agora pensa que estás na cama com ela. Que fantasia fantástica, hã? E podes tê-la milhares de vezes, durante anos, sempre perfeita. Sabes porquê? Porque não conheces a Charlize Theron.»




José António Abreu @ 22:20

Sex, 15/06/12

«Pára com isso.»

«Não consigo. É uma sensação horrível. É como borbulhas, aquelas que ficam com crostas e dão vontade de arrancar, sabes?»

E Manuel escarafunchava o interior do nariz com a ponta do dedo mindinho e tirava de lá pedaços de muco seco que rodava entre a ponta do indicador e do polegar até formar bolinhas e depois atirava para o chão, a menos que estivesse em casa e Filomena, a mulher, andasse por perto, caso em que as ia pôr no balde do lixo ou colocava em pedaços de papel que dobrava cuidadosamente e deixava em cima da mesinha em frente ao televisor, de onde por vezes se esquecia de os retirar, tendo que ser Filomena a fazê-lo. Para além de remexer no interior do nariz, Manuel também se esforçava por retirar cera dos ouvidos com a ponta dos indicadores ou dos mindinhos mas menos amiúde e quase sempre com fracos resultados. Tanto fazia estas coisas distraidamente, sentado dentro do seu velho Fiat Uno ou no sofá a ver o Benfica, como outras pessoas acariciam o lóbulo da orelha ou fazem rodar os polegares um em torno do outro, como de modo consciente, mergulhado numa mistura de desespero (por a sensação se lhe ter tornado intolerável) e irritação (por não ter forças suficientes para o evitar). Filomena detestava vê-lo de dedo enfiado no nariz e fartava-se de lhe pedir para se controlar. «Nem à frente dos meus pais páras com isso e sabes como o meu pai fica…» Ele respondia que lhe era impossível, que o impulso depressa se tornava insuportável. «Quando tento controlar-me não fico bem. Fico com uma impressão horrível. Uma comichão no nariz, a sensação de que lá tenho uma coisa estranha, às vezes até parece viva.» Filomena comprou-lhe lenços de papel e cotonetes mas, por muitos esforços que Manuel fizesse para os usar, voltava sempre ao uso dos dedos. «O hábito vem-me desde criança», justificava-se. «Não consigo parar.» Filomena amava-o e ia aguentando. Tentava nem reparar mas quanto mais esforços fazia para não reparar, mais impressão aquilo lhe fazia também a ela. Curiosamente, os períodos em que Manuel estava constipado eram os melhores pois o ranho ficava demasiado líquido para, por um lado, provocar a tal sensação que tanto o incomodava, e por outro, permitir o uso da ponta dos dedos. Quando estava constipado, Manuel era mesmo forçado a utilizar os lenços de papel, que se amontoavam então na mesinha em frente do televisor até Filomena os levar para o lixo.

Estavam casados há três anos e meio e – mais um factor que não ajudava a que o pai dela encarasse Manuel com bons olhos – ainda não tinham filhos quando Manuel perdeu quatro dedos da mão direita na prensa de fabrico de tabuleiros metálicos que operava no emprego. Ele tinha que colocar a chapa na prensa, carregar num pedal para fazer descer a parte móvel e, depois de ela subir novamente, retirar a chapa já com o formato do tabuleiro. Era um trabalho perigoso que Manuel fazia há anos, sempre com imenso cuidado. Prometera a Filomena nunca facilitar. Mas naquele dia distraiu-se e carregou no pedal cedo demais. Da mão direita, só lhe restou o polegar.

Nem assim o hábito desapareceu mas, durante uns tempos, foi-lhe mais difícil extrair cera da orelha direita. Até ao acidente, apenas usava a mão esquerda na orelha do mesmo lado e, se não teve dificuldades em habituar-se a usá-la também no nariz, empregá-la na orelha direita constituiu um desafio muito maior. Porém, não havia escolha: o polegar, único dedo que lhe restava na mão direita, era demasiado grosso para o canal auditivo. Com esforço e perseverança (duas das suas melhores qualidades, todos o reconheciam), lá conseguiu habituar-se. Filomena, que parecera ficar mais perturbada com o acidente do que ele, dizia: «Nem assim deixas de fazer isso...» Mas dizia-o com resignação, não de forma agressiva. Como se, depois do acidente, aquele acto tivesse passado a ser uma coisa sem grande importância. Já o sogro de Manuel, dono de uma pequena e escura oficina de automóveis, passara a encará-lo ainda com mais desprezo: para além de ser pobre, ter aquele hábito asqueroso e não lhe dar um neto, Manuel nem sequer era capaz de evitar perder os dedos numa máquina que, sendo perigosa, era tão fácil de operar.

Regressou ao trabalho dois meses após o acidente, a mão direita transformada num coto espalmado e arredondado, a que o polegar, espetado na parte lateral, parecia nem pertencer. Filomena não queria que ele voltasse a trabalhar na prensa mas Manuel explicou-lhe que, depois da Inspecção do Trabalho e da Seguradora terem levantado imensos problemas ao patrão por causa das questões de falta de segurança (parece que a lei não permitia que as prensas fossem accionadas por pedal sem que existissem meios de protecção da zona perigosa), todas as prensas da empresa haviam sido modificadas e agora eram comandadas através de dois botões que tinham de ser premidos em simultâneo. «Chama-se comando bimanual», explicou Manuel a Filomena. E havia ainda uma barreira fotoeléctrica para garantir que as mãos do operador não estavam na zona perigosa «Se estiverem, a prensa não fecha». As explicações não sossegaram Filomena mas o que podia ela fazer? Os empregos eram escassos e necessitavam do dinheiro do salário dele, uma vez que o dela, funcionária no refeitório da escola secundária da vila, mal chegava para pagar o empréstimo do apartamento.

Passou-se cerca de um ano. Manuel habituou-se a colocar e a retirar a chapa com a mão esquerda e a premir o botão direito do comando bimanual com o polegar. A princípio, o patrão, um homem gorducho de cinquenta e tal anos que também era dono de um dos quatro cafés e do único talho da vila, não gostara da solução dos dois botões porque a cadência de produção revelava-se ligeiramente mais baixa do que com o pedal. Ainda por cima, do acidente resultara uma multa para a empresa e isso trazia-o irritado. Fora uma batelada de dinheiro, «um roubo», queixava-se a quem encontrava pela frente. Fazia até questão de o dizer repetidamente ao próprio Manuel, dando a entender que Manuel estava obrigado a compensá-lo. Uma vez perguntou-lhe: «Então agora como é que fazes para tirar macacos do nariz, Manel? Usas o dedo mindinho da mão esquerda para os dois buracos? Aposto que também demoras mais…» E riu-se com gosto, enquanto Manuel permanecia em silêncio. Todavia, decorrido um par de meses as coisas voltaram a entrar na rotina.

E então, um dia depois da prensa ter estado desligada para operações de manutenção, Manuel ficou sem quatro dedos e meio da mão esquerda: os quatro correspondentes aos que perdera na mão direita e ainda a extremidade do polegar. Como fora possível, quis saber Filomena depois de ele sair do tratamento. A máquina não era segura? Não parava se a mão estivesse lá dentro? Manuel explicou-lhe que os colegas da manutenção tinham deixado os sistemas desactivados. Um esquecimento ou talvez preguiça de ligar tudo outra vez. «Devíamos arranjar um advogado», disse Filomena. Mas não o fizeram. Não tinham dinheiro para isso e o patrão nunca perdoaria a Manuel se o fizesse. Far-lhe-ia a vida negra.

Apesar das perguntas e das referências ao advogado, Filomena encaixou o acontecido como se já o esperasse. Tornou-se mais calada, mais triste, mais resignada. Manuel detestava vê-la assim mas não sabia o que fazer para a animar. Poucos dias depois de sair do hospital percebeu que ela tinha ainda mais razões do que ele pensava para estar assustada, quando se sentou no sofá ao lado dele e, sem rodeios, lhe comunicou que estava grávida. Então Manuel ficou pelo menos tão assustado como ela.

Mas, inesperadamente, o acidente acabou por ter consequências positivas. Manuel, que, na sequência do primeiro, já recebia uma pequena pensão por incapacidade, foi considerado inapto para o trabalho (o que lhe permitiu evitar o ex-patrão, outra vez às voltas com a Inspecção e mais irritado do que nunca) e passou a receber uma pensão quase igual ao salário. Apesar disso, ainda tentou arranjar outro emprego, de modo a aumentar o rendimento agora que a família ia crescer, mas ninguém se dispôs a aceitar um trabalhador com apenas um polegar e meio no conjunto das duas mãos. Assim, ficava em casa, sentado a ver televisão enquanto Filomena ia para o emprego. O sogro não gostava de o saber inactivo enquanto a filha, grávida, continuava a trabalhar («Lá por não ter dedos, não quer dizer que não possa fazer qualquer coisa; prefere é ficar de papo para o ar a coçar os tomates», ouviu-o dizer uma vez) mas, de forma geral, a gravidez da filha deixara-o menos agressivo. Pelo que o maior problema de Manuel, o problema que lhe ocupava os dias e o desesperava, era ser-lhe agora quase impossível escarafunchar nariz e ouvidos. De facto, sem acessórios era mesmo totalmente impossível. E as cotonetes, que já antes não resultavam, haviam-se tornado ainda mais inúteis, devido à dificuldade que ele tinha em manejá-las. Experimentou segurá-las de todas as maneiras possíveis (entre o polegar direito e palma da mão direita, entre o polegar direito e o coto do polegar esquerdo, entre o polegar direito e a palma da mão esquerda, entre o coto do polegar esquerdo e a palma da mão direita com o polegar direito arqueado por cima do coto do polegar esquerdo de modo a providenciar um acréscimo de estabilidade, entre ambas as palmas) mas nenhuma resultava. Quando, no final do dia, Filomena chegava, cansada, corada e cada vez mais redonda, Manuel encontrava-se sempre à beira do desespero. E então, porque o amava e não suportava vê-lo sofrer, Filomena sentava-se junto dele e, com os seus dedos finos terminados em unhas que fazia questão de arranjar pelo menos todos os domingos à noite, antes da hora de dormir, passava vários minutos a extrair-lhe burriés do nariz e cera dos ouvidos. Depois ia lavar as mãos e fazer o jantar.




José António Abreu @ 08:43

Sex, 11/05/12

O moralista disléxico chamava-se Erasmo Coina de Carvalho e não conseguia evitar enganar-se ao dizer ou escrever o nome.




José António Abreu @ 20:20

Qui, 10/05/12

Pergunto-lhe: «Posso ser sincero?»

«Pensei que estávamos a ser sinceros.»

«Isso tudo, essas tuas teorias, são só fachada.»

Desta vez sorri abertamente. «Fachada? Lá no fundo, sou um romântico, é isso que queres dizer»

«Nem mais

«Sabes o que é o romantismo?»

Suspiro. «Nem vou tentar responder. O que é?»

«Querer o impossível. A perfeição, eternamente. Ora eu quero a perfeição. Mas sei que a perfeição é frágil. Que é impossível mantê-la eternamente.»

«Então és um quê? Um mezzo-romântico?»

Solta uma gargalhada. Diz: «Boa.» Mas depois fica sério e parece considerar seriamente a questão. «Não se deixa de ser romântico por saber que o impossível é, por definição, impossível. Ponhamos as coisas da seguinte maneira:  não acreditando que seja possível amar para sempre, acredito que é sempre possível amar.»

«Vai-te foder.»

Ri-se.




José António Abreu @ 08:41

Ter, 08/05/12

«Repara no coveiro.»

Laura olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita. Descobriu o coveiro ligeiramente afastado do grupo, apoiado na pá. Olhava o caixão fixamente e parecia alheado do que o padre dizia.

«Não! Ele está…?»

«Hum-hum.»

Filipe e Laura estavam na parte de trás do aglomerado de pessoas rodeando a cova sobre a qual, assente em dois barrotes de madeira, se encontrava o caixão. A terra era escura. Parecia molhada apesar de não estar a chover.

Filipe sussurrou: «Ele conhecia-a?»

Laura rodou a cabeça apenas um tudo-nada na direcção de Filipe: «Aqui toda a gente se conhece. Mas que eu saiba não o suficiente para chorar no funeral dela. Nem o João está a chorar.»

João era o filho mais velho de D. Lurdes, a falecida. Filipe procurou-o com os olhos. Não, não estava a chorar. Parecia triste mas também um pouco farto daquilo tudo. Filipe conhecia-o mal e não gostava dele.

«Então a que propósito vem aquilo?»

Falara demasiado alto. Um homem à frente deles olhou para trás. Filipe esboçou um sorriso apologético e Laura susteve a resposta. Filipe aproveitou a pausa para tentar perceber o que o padre dizia (qualquer coisa sobre D. Lurdes ter vivido nesta vida sabendo que devia preparar-se para a próxima) e depois para dar nova olhadela ao coveiro. Parecia já ter passado os setenta anos de idade mas talvez isso se devesse ao aspecto desmazelado: vestia uma camisola bege suja de terra e umas calças de uma tonalidade tão parecida com a cor da terra que era difícil saber se não estavam apenas imundas. Quando às botas, não havia dúvidas: manchadas e com rasgões, ameaçavam desintegrar-se a qualquer momento. Não era alto, tinha meia dúzia de quilos em excesso concentrados em torno da cintura, uma barba mal feita e cabelo que não devia ser lavado há semanas. Mas a particularidade mais estranha era a forma como a pálpebra direita pendia sobre o globo ocular: fazia com que, visto do ponto em que Filipe se encontrava, parecesse estar sempre a olhar para o chão ou a pedir desculpa. Continuava a chorar. Fazia-o em silêncio, sem qualquer trejeito ou movimento, como se nem percebesse que chorava.

«Mas que raio é que um tipo assim podia ter em comum com a velha? Estaria apaixonado por ela desde miúdo?»

Laura hesitou. «Uma vez a Sandra disse-me que o velho Firmino teve desaguisados com muita gente. O coveiro é capaz de ter sido uma dessas pessoas.»

Sandra era a melhor amiga de Laura e esposa de João. Por instantes, o cérebro de Filipe entreteve-se a analisar a estranheza do uso do termo “desaguisados” por parte de Laura e não conseguiu perceber o que ela efectivamente dissera.

«Hã?»

«O Firmino era um mulherengo.»

«E?»

«E meteu-se com mulheres casadas. Entre as quais a do coveiro.»

«Não estou a perceber onde queres chegar. O Firmino não morreu há uns cinco anos? Por que é que o coveiro havia de estar a chorar no funeral da viúva do homem que lhe comeu a mulher?»

O homem que antes se virara voltou a fazê-lo. Vestia um fato cinzento-rato de mau corte, uma camisa branca e a inevitável gravata preta. Tinha ar de presidente da junta ou qualquer coisa assim. A irritação no seu olhar era agora indubitável. Filipe concedeu-lhe um trejeito breve mas nada mais; estava demasiado interessado na história para se dar ao trabalho de voltar a fingir contrição.

Sem o olhar, Laura teve um sorriso fugaz. Disse: «Pode ter havido qualquer coisa depois disso.» Estava deslumbrante, de vestido preto. Houvera um par de ocasiões durante a cerimónia na igreja em que Filipe sentira vontade de fazer amor com ela. De uma das vezes, tivera mesmo que disfarçar uma erecção. E não era a primeira vez que algo do género acontecia. Filipe começava a suspeitar que situações inconvenientes despoletavam nele desejos sexuais. Laura disse: «Eles podem ter sido amantes desde aí. Os amantes traídos, entretanto tornados viúvos.»

Filipe voltou a olhar para o coveiro. Era difícil ver nele o amante de alguém. Mas não era menos difícil imaginar a velha D. Lurdes, que Filipe conhecera apenas na capela mortuária, já estendida dentro do caixão, tendo sexo com alguém. De repente, Filipe percebeu que nem conseguia imaginar pessoas de idade avançada tendo sexo. Isso perturbou-o durante alguns segundos. Era a primeira vez que pensava no assunto e pareceu-lhe simultaneamente lógico – porque é que havia de desejar visualizar velhos tendo sexo? – mas também deprimente – como se constituísse uma falha dele, um indício de falta de imaginação e, ao mesmo tempo, um desrespeito para com a sexualidade dos idosos. Como penitência, prometeu a si mesmo procurar vídeos de sexo na terceira idade em sites porno na internet logo que tivesse oportunidade.

Nem de propósito, o padre dizia qualquer coisa acerca de respeitar os outros, coisa que D. Lurdes sempre fizera. Filipe prestou-lhe atenção durante um par de segundos antes de se inclinar de novo para Laura.

«Não seriam eles os amantes logo desde o início, em vez do Firmino e da mulher dele?»

Laura rodou a cabeça para lhe atirar um olhar de censura.

«Tu e a tua mente suja…»

«Se o Firmino era mulherengo, até merecia. E parece-me uma hipótese mais lógica do que a tua versão romântica de duas almas solitárias e feridas encontrando-se na velhice.»

Laura voltou a olhar em frente. O padre parecia estar a terminar.

«A Sandra disse-me uma vez que o caso do Firmino com a mulher do coveiro aconteceu mesmo. O coveiro apanhou-os e deu uma sova na mulher.»

«Hã?» Filipe olhou de novo para o sítio onde o velho continuava apoiado na pá. Parecia não se ter mexido um milímetro. «Estás a falar a sério?»

«Era coisa corrente, por aqui.»

«Fico satisfeito… quer dizer, satisfeito não, fico… sei lá, fico banzado que encares a coisa de forma tão natural.»

Laura encolheu os ombros e disse «Ámen» em coro com o resto das pessoas. O final da cerimónia fez com que toda a gente se descontraísse – que trocasse a perna de apoio, se movimentasse ligeiramente ou falasse com a pessoa do lado. Filipe perguntou: «E o Firmino?»

«O Firmino o quê?»

«Quando o coveiro os apanhou. O que é que fez?»

«Fugiu.»

«Foda-se, não me digas!»

As palavras haviam-lhe saído demasiado altas. Embora o nível de ruído fosse agora superior, várias pessoas voltaram-se e dirigiram-lhe olhares de censura. O tipo que parecia presidente da junta resmungou qualquer coisa para uma mulher baixinha e rechonchuda que dava ideia de ter apenas uma expressão facial, algures entre a resignação e a bovinidade. Se era casada com aquele tipo, pensou Filipe, não se podia estranhar o facto.

Laura deu-lhe uma pancada no braço e puxou-o para trás. «Fala baixo. Só me fazes passar vergonhas!»

Recuaram três ou quatro metros enquanto o pessoal da funerária começava a tratar de descer o caixão para dentro da cova.

«E depois?» perguntou Filipe.

«Depois o quê?» Agora Laura já se permitia encará-lo. Tinha aquele ar de quem lida com uma criancinha que Filipe às vezes achava delicioso, outras insultuoso. Teve vontade de a beijar. Isso sim, havia de dar motivo de conversa pelas terrinhas das redondezas.

«O que aconteceu? O coveiro foi atrás dele ou assim?»

«Não sei, acho que não.»

«Mas logo que teve hipóteses, vingou-se e foi para a cama com a mulher dele.»

«Se tivesse sido apenas vingança achas que o coveiro estaria a chorar?»

Filipe olhou de novo para o homem. Tinha mudado ligeiramente de posição, segurando a pá ao lado do corpo mas já não se apoiando nela, e encontrava-se demasiado longe e quase de costas para Filipe conseguir perceber se ainda chorava. Provavelmente não.

Sandra aproximou-se. Estava quase tão atraente como Laura, apesar de ter umas olheiras profundas. Filipe afastou a velha ideia do ménage à trois. Não era momento para fantasias daquelas.

«Obrigado por terem vindo. Hoje o João está um bocado alheio a tudo mas sei que aprecia que tenham feito a deslocação.»

Enquanto Laura dava uma resposta qualquer, Filipe pensou que João raramente apreciava o que quer que fosse que tivesse a ver com ele, Filipe. Será que se apercebia das fantasias que ele tinha com Sandra? Ou – e Filipe quase deu um salto ao pensar na hipótese – será que tinha fantasias similares com Laura e via Filipe como obstáculo? Ou ainda, considerando que Filipe conhecera Laura e Sandra muito antes de João o fazer, desconfiaria que já fora para a cama com Sandra? (Não fora mas tinha pena. A questão surgia-lhe até como uma falha no seu passado; uma oportunidade perdida.)

«Filipe?»

«Hã? Desculpa.»

Laura suspirou, ligeiramente irritada. «Às vezes parece que desapareces para parte incerta.»

«Desculpa.»

Sandra disse: «Tenho de voltar para junto do João.»

Filipe disse: «Só uma coisa. Reparaste no coveiro?»

«O que é que tem?»

«Estava… hum… parecia muito combalido.»

Sandra encolheu os ombros.

«Não reparei. Mas não digam ao João. Com a disposição com que ele está hoje, mais vale não lhe meter ideias na cabeça.»

E afastou-se. Laura passou o braço esquerdo em torno da cintura de Filipe.

«O que é que se passa contigo?»

«Nada.»

«Vamos andando?»

A maior parte das pessoas já se dirigia para a saída. Apenas João, Sandra e mais três ou quatro pessoas ainda estavam junto à sepultura. O coveiro enterrou a pá na terra solta e começou a atirá-la lá para dentro. Filipe não conseguia ver-lhe a cara.

«Vamos.»

Caminharam até à saída. O cemitério ficava junto a uma pequena capela e a um terreno onde anualmente se realizava uma festa em honra de um santo qualquer. Quando havia casamentos ou funerais, servia de parque de estacionamento.

«Sabes», disse Filipe de repente, «sinto-me como um peixe fora de água nestes meios pequenos. Parece-me que as pessoas seguem uma lógica diferente.»

Susana olhou-o de lado e sorriu. «Tadinho. Um menino citadino, é o que tu és. Só estás habituado a lidar com pessoas no metro. Ou em discotecas.»

«Não gozes.»

«Filipe: as pessoas, sejam novas ou velhas, odeiam-se, apaixonam-se e fodem em todo o lado. Mesmo nos meios pequenos.»

Filipe estremeceu ligeiramente. Destrancou o carro. Contornava-o quando viu João e Sandra sair do cemitério. Hesitou. Disse: «Eu venho já.»

Ignorou o aviso no olhar de Laura. Em passo rápido, voltou a entrar no cemitério, decidido a falar com o coveiro.

Encontrou-o de costas para o corredor de acesso, a atirar pazadas de terra para o buraco. Em poucos minutos, enchera-o quase por completo. Filipe parou a cerca de dois metros. Abriu a boca para falar mas percebeu que não sabia o que dizer. A certeza que o fizera voltar a entrar no cemitério esvaíra-se numa fracção de segundo. O que raio ia perguntar? «Olhe, desculpe, por que é que estava a chorar?» E o que faria se o homem reagisse mal?

Permaneceu ali dez ou quinze segundos, meio esperançado de que o velho notasse a sua presença e o encarasse, e depois, pensando que Laura tinha razão (grande  merda, era mesmo um citadino), deu meia volta e reencaminhou-se para a saída.

 

No carro, Laura manteve o silêncio durante vários minutos antes de perguntar: «Então?»

Filipe já desistira de tentar arranjar uma boa desculpa.

«Não cheguei a falar com ele.»

Laura não fez comentários. Mexeu as pernas. O vestido subiu, expondo-lhe os joelhos. Filipe pensou que era uma merda que ainda faltasse mais de uma hora para chegarem a casa.




José António Abreu @ 20:49

Ter, 01/05/12

As pessoas horrorizam-se com o particular, com o específico. Se enviasse para os jornais estas considerações, poucas pessoas as leriam. Talvez nem fossem publicadas. Mas se descrevesse uma morte concreta, fornecendo pormenores sobre como tudo acontecera (as súplicas, os gritos, os familiares ou o Deus por quem a vítima – que termo impróprio – havia clamado, o pequeno sinal que tinha sob o seio esquerdo e o prazer que me dera cortá-lo, logo antes de lhe fazer o mesmo ao mamilo), nesse caso as pessoas leriam com fascínio. Duzentas mil mortes num tsunami no Extremo Oriente seriam nada sem imagens. Uma morte, com as imagens certas, ou até mesmo só com as palavras certas, causa mais horror. Imagino objecções: o tsunami tem causas naturais, não há maldade envolvida. Bom, talvez (a menos que se acredite em Deus, caso em que todo o horror devia ser dirigido para Ele, porque afinal mata muito mais e de formas mais variadas e criativas do que eu alguma vez terei hipótese de fazer). Mas uma pessoa que fica entalada sob os escombros de uma casa, que tem as pernas esmagadas e demora dias a morrer, passa por níveis de sofrimento tão intensos e bastante mais prolongados do que aqueles que eu tenho possibilidade de infligir (não por falta de esforço da minha parte, note-se). E nem sequer chega a ver o rosto do responsável pela sua morte. Eu mostro-me. As minhas vítimas (que termo irritante) vêem-me. Sabem sempre quem as mata. Como escrevi antes, as mais inteligentes chegam a perceber por que morrem.

Mas é possível que ainda venha a descrever alguns casos. Afinal, dizem que recordar é viver. Como, de resto, matar também o é. DeLillo escreveu-o em Ruído Branco (sim, gosto de ler): matar é uma forma de afastar o medo da morte. Quando é outro que morre, comprova-se a própria vida. Inteligente, apesar de ligeiramente presunçoso. E um tudo-nada teórico. Mas que experiência prática tem DeLillo?




José António Abreu @ 08:40

Sex, 20/04/12

Vamos tomar um café à hora de saída do emprego. Eu proponho e César aceita após um instante de hesitação. Ficamos na mesa do canto, como fazemos sempre que ela está livre. A empregada cumprimenta-nos. Sorrio-lhe, digo-lhe boa tarde, trato-a pelo nome, Anabela. César limita-se a dizer boa tarde. Observo as ancas dela enquanto se afasta. Digo: «Está cada vez melhor. Andar de um lado para o outro com a bandeja na mão deve fazer bem aos glúteos.» César esboça um sorriso mas mal roda a cabeça.

«O que se passa contigo?», pergunto.

«O que queres dizer?»

«Pareces em baixo.»

Encolhe os ombros. Hesita. «É demasiado ridículo para contar.»

«Bom, agora não tens alternativa. Até porque eu adoro histórias ridículas. E sou especialista nelas, embora normalmente como personagem principal.»

Ele deixa passar uns segundos. Não me olha; é como se avaliasse as minhas palavras, tentando separar a parte verdadeira da parte falsa, o humor introduzido apenas para efeito cómico da sinceridade. Ou se calhar nem as ouviu. Se calhar nem é relevante ser eu quem ali está e a questão que analisa prende-se com ele próprio. Prende-se com saber se deve contar a alguém a tal coisa ridícula.

Acaba por dizer: «Sabes que costumo ir correr à beira-rio, entre a Afurada e Lavadores?»

«Hum, acho que já mo tinhas dito.»

A empregada regressa com os cafés e permanecemos em silêncio enquanto ela os coloca sobre a mesa. Desta vez faço um esforço para não a observar enquanto se afasta. César rasga o pacote da açúcar, despeja-o na chávena, mexe o café. Só então recomeça a falar: «Lembras-te de eu te contar que uma ou duas vezes por semana vou correr junto ao rio, do lado de Gaia?»

«Talvez.»

«Tu até me disseste que correr é das coisas que mais detestas.»

«Sim, já me lembro. E então?»

Pára de mexer o café e pousa a colher no pires. Ergue os olhos.

«Sabes como no Inverno anoitece cedo, às cinco e tal é de noite? E mesmo em Fevereiro ou no início de Março, antes da mudança da hora, às seis e meia, sete, já pouco se vê?» Faço que sim com a cabeça, mais para o incentivar a continuar do que por ser necessário responder a algo tão evidente. «Na zona da Cabedelo, ali junto ao areal, há uma série de candeeiros ao longo do percurso destinado a pedestres e ciclistas. Às vezes, não sei porquê, alguns apagam-se. Não costuma acontecer a todos, apenas a alguns. Às vezes só ficam apagados dois ou três segundos, outras vezes parece que nem chegam a acender.» Bebe um gole de café. Mastiga o gosto que lhe fica na boca e depois continua: «Costumo deixar o carro naquele parque mesmo ao lado da Afurada, de onde há uns anos tiraram as barracas dos pescadores e agora estão a acabar de construir a marina. Numa tarde do final de Fevereiro vinha a regressar, depois de ter ido dar a volta na zona das praias, a seguir ao hotel Casa Branca. Eram sete e tal, para aí umas sete e meia, já estava bastante escuro. Fiz aquela curva à direita, a descer, que separa a zona do mar da zona do rio, e apercebi-me de que os candeeiros estavam apagados. Quando entrei na zona escura fiquei quase sem ver. Um gajo qualquer passou por mim, a correr na direcção oposta, e só lhe vi o vulto quando ficou para aí a um metro de distância. Por acaso apercebera-me antes mas só por causa do som dos passos e da respiração ofegante. Em parte, deve ter sido o barulho que ele fazia que provocou o que aconteceu a seguir. Nem segundos depois de ele passar, apercebi-me de um vulto mesmo à minha frente, a correr na minha direcção. Travei mas era tarde demais e chocámos de frente. Ela (era uma mulher) deu um grito (eu nem me lembro se cheguei a gritar) e, instintivamente, agarrámo-nos um ao outro. Nem sei como mas conseguimos não cair. E então vem a parte verdadeiramente estranha. Em vez de nos largarmos de imediato, sabes como é, pedirmos desculpa, perguntarmos se estava tudo bem, em vez disso, quando nos conseguimos equilibrar continuámos abraçados mais um instante, como se quiséssemos ter a certeza de que não íamos mesmo cair. Eu não a via mas sentia que era magra, que tinha o corpo firme, e não me parecia muito alta. Lembro-me de sentir as mamas dela encostadas ao estômago e a transpiração dela nos meus braços, e de notar o cheiro e a respiração a bater-me no pescoço. Foram só dois ou três segundos, sabes, e talvez eu agora até imagine mais do que realmente aconteceu, mas é como se tivéssemos passado uma barreira, como se aquele tempo tivesse tornado impossível separarmo-nos e pedirmos desculpa, como seria normal, e seguirmos cada um para seu lado. Isto se calhar não faz sentido nenhum...»

«Faz. Continua.»

Dou uma olhadela à sala do café. Felizmente, as mesas mais próximas estão vazias.

«Beijámo-nos. Não sei como aconteceu. Mas, caramba, beijámo-nos a sério. Estávamos os dois sem fôlego por causa da corrida e precisávamos de respirar com frequência mas voltávamos a beijar-nos logo a seguir, como se não pudéssemos deixar passar muito tempo ou aquilo ia tudo por água abaixo. Empurrei-a para o lado da encosta, ou se calhar foi ela que me puxou, meti-lhe as mãos por baixo da camisola e tirei-lhe o soutien. Entretanto ela já tinha as mãos dentro dos meus calções e continuávamos a beijar-nos, e eu só sabia que ela tinha um hálito quente mas não desagradável, também naquela altura tudo me pareceria excitante, nada me faria parar, e então tirei-lhe as calças e ela baixou-me os calções e... bom, e fodemos. Não durou muito tempo, estávamos demasiado excitados – quer dizer, eu estava demasiado excitado – mas foi de loucos. Tínhamos os corpos tão transpirados e eu tinha tanto calor e continuávamos com dificuldades para conseguir respirar que... enfim, já ficaste com a ideia.» 

«Foda-se, fiquei com mais do que uma ideia, fiquei com tesão.»

O sorriso dele é fugaz.

«Desculpa.»

«Não há problema. Acho que já não ficava assim só por causa de um relato desde o primeiro ano da universidade. Tinha um colega de apartamento, mais velho – acho que já te falei dele – que fazia questão de nos contar as suas aventuras amorosas. Eram fantásticas mas descobrimos passado uns tempos que ele as ia buscar às cartas da Penthouse americana.»

César cora ligeiramente. Baixa os olhos para a chávena de café.

«Tudo o que te disse é verdade.»

«Eu sei, eu sei. Não estou a dizer o contrário. Não passou ninguém enquanto vocês fodiam?»

«Achas que reparei?»

«Ok, foi uma pergunta estúpida. E depois? Quando acabaram.»

«Depois foi super rápido. Separámo-nos e eu estava a puxar os calções para cima e a tentar pensar no que dizer quando ela se antecipou e desatou outra vez a correr na direcção do mar.»

«E tu o que fizeste?»

«Eu fiquei parado feito parvo, pá. Lembro-me de pensar que devia ir atrás dela mas não fui. Acho que, subconscientemente, pensei que era melhor deixar as coisas assim. Vim-me embora.»

«Voltaste a vê-la?»

«Não.»

«Tens vontade?»

Ergue os olhos.

«Ouve, isto não tem lógica nenhuma. A gaja pode ser casada, pode ser feia, pode gostar de música pimba, pode ter mil e um defeitos. Pode ser demasiado velha para mim, ou demasiado nova. Mas, ainda assim, sempre que vou correr ponho-me a olhar para todas as mulheres por quem passo, tentando perceber se é aquela e se por acaso não anda também a tentar encontrar-me.»

«A vida nem sempre é lógica», digo, e durante um par de segundos fico a pensar como me irrita não conseguir evitar os lugares comuns. «Mas acho que deves encarar o que se passou como uma experiência. Uma experiência do caraças, diga-se de passagem. Eu não me importaria de que uma coisa assim me acontecesse. Acho que nenhum gajo heterossexual se importaria. No fundo, isso é uma fantasia masculina concretizada. Podia estar mesmo nas cartas da Penthouse»

Sorri. Empurra a chávena.

«Até é um bocadinho pirosa», diz.

«Não me parece.»

Encolhe os ombros.

«Seja como for, às vezes penso que não passou mesmo disso. De uma fantasia. Um sonho.»

«Não seria um mau sonho.»

«Porque, estás a ver, se tivesse sido verdade já a devia ter encontrado outra vez, não achas? Apesar de não sabermos bem o aspecto um do outro, já devíamos ter-nos cruzado e como é possível que não percebêssemos de imediato? Quer dizer, eu agora passo a vida a examinar as mulheres que correm naquela zona. Honestamente, acho que chego a assustar algumas. E já nem olho só para aquelas que me parece terem a estatura e a configuração física certa. Começo a duvidar das minhas próprias recordações, percebes?, e olho para quase todas, agora. Tento perceber se é possível que tenha sido aquele cabelo que agarrei (ela estava de rabo de cavalo, sabes) e aqueles lábios que beijei e aquele corpo... fiquei com a sensação de que ela tinha um rabo – não gordo, mas cheiinho. Assim um bocadinho para o largo. Mas entretanto comecei a pensar que quando estamos na cama com uma gaja magra – enfim, tirando aquelas mesmo muito, muito magras – e lhe apalpamos o rabo, ele acaba sempre por surpreender um bocadinho, por ter mais carne do que parecia, sabes?»

«Hã-hã.»

«E então olho para as gajas todas, e para os rabos todos, e para os cabelos todos, e para gajas que me parecem mais baixas do que ela e mais altas do que ela. Enfim, olho para as gajas todas. E elas percebem, claro, e às vezes, quando estão gajos com elas, eles também percebem. Qualquer dia partem-me a cara.»

«Desiste.»

«Não consigo. Pelo menos para já.»

«Ouve, tu próprio o disseste: ela pode ser casada, ou ter cá estado pouco tempo, ou... sei lá, deve haver milhares de razões para não ter voltado a aparecer ou para andar a tentar passar despercebida. Pode ser freira. Pode ter engravidado.»

«Obrigadinho.»

«Desculpa. Sabes como eu sou. Mas acho que não deves fazer grandes filmes à volta dela. Tu próprio o disseste: não a conheces. Apenas fizeste sexo com ela.»

«Nem mais.»

Faz sinal à empregada. Tira moedas do bolso enquanto ela se aproxima.

«É para pagar», diz. «Pode ser os dois.»

«Ei, não me vais pagar o café.»

«Esquece.»

Coloca uma moeda de dois euros no tabuleiro. Enquanto a rapariga faz o troco, pergunto-lhe: «Diga-me uma coisa, Anabela, costuma fazer jogging

César deita-me um olhar de advertência mas ignoro-o. Ela responde: «Não, não gosto de correr. Mas às vezes vou ao ginásio. Porquê?»

«Era só para saber. Tinha de haver uma razão para estar em tão boa forma.»

Ela olha-me, desconfiada, mas acaba por sorrir. Um elogio é um elogio.

César recolhe o troco e saímos para o passeio. A temperatura está amena mas a luz do Sol já só ilumina o topo dos prédios. Pergunto: «Vais-te embora ou ainda voltas ao escritório?»

«Vou-me embora», diz. Sorri, encolhe ligeiramente os ombros. «Vou correr à beira-rio.»




José António Abreu @ 08:33

Sex, 13/04/12

Sempre o achei um tipo estranho. Na universidade tinha um quarto na mesma casa que eu mas era uma espécie de roda sobresselente no grupo em que eu me inseria. Teve um par de relações que não duraram. Fartava-se de falar no cão que os pais lhe haviam oferecido quando fizera doze anos – o canídeo mais inteligente do mundo, a acreditar nos relatos que nos impingia.

Depois da universidade passei a vê-lo mais raramente. Ainda assim, morando na mesma cidade, encontramo-nos de vez em quando. Casou há menos de um ano. Contou-me que conheceu a mulher, Paula, quando o cão dele, filho do que mencionava na universidade, se interessou pela cadela dela. Paula era simpática mas tão estranha quanto ele. Parecia viver para a cadela. Na realidade, apesar de casados, ambos pareciam continuar a viver para os respectivos cães. Demorei algum tempo a perceber que apenas o entusiasmo dos cães um pelo outro os unira. Fora uma espécie de osmose. A atracção dos cães fizera com que se sentissem atraídos. Percebê-los excitados provocara a sua própria excitação. Observá-los a ter relações sexuais levara-os a tomar consciência de que também o desejavam fazer. Evidentemente, durou pouco. O cão dele engravidou uma cadela do prédio em frente e Paula reagiu mal. Disse-lhe: «Isto já não faz sentido.» Não constituiu um grande choque para ele. No fundo, estava de acordo.

Agora encontra-se todos os dias com o dono da cadela (passam imenso tempo a debater com quantos cachorrinhos cada um ficará e o que fazer com os restantes) e começa a sentir-se atraído por ele. «A verdade é que Paula nunca me completou. Bom, talvez no início. Mas depois… Sabes, começo seriamente a pensar que sou gay.»




José António Abreu @ 13:42

Qui, 29/03/12

O Sr. Marques aprecia centros comerciais. Raramente lá compra alguma coisa mas gosta de deambular pelos corredores e de sentar-se nas zonas de restauração, observando as pessoas. Na verdade, é mais as mulheres mas ele considera que está a observar «as pessoas». Às vezes pensa que o interior dos centros comerciais é o local onde melhor se analisa a vida moderna. Um local onde toda a gente se encontra no mesmo plano e pode cobiçar e tocar em milhares de coisas. A vida actual é feita de cobiça, pensa o Sr. Marques enquanto suspira perante a visão de uma mulher de traseiro empinado parada em frente à montra de uma sapataria, e os centros comerciais são o local onde ela pode ser expressa de forma mais subtil e democrática. São também um local onde exemplares díspares do ser humano podem ser vistos sem parecerem assim tão diferentes entre si. Hoje, por exemplo, o Sr. Marques ficou igualmente encantado ao ver uma quarentona de fato justo, saltos altos e colar de pérolas movendo-se em passo saracoteado e uma rapariga mal saída da adolescência com um vestido leve, umas botas pesadas e três piercings no nariz esparramada num dos sofás. Há ambientes em que tanto uma como outra pareceriam deslocadas. Num centro comercial, ambas se podem sentir à vontade.

O Sr. Marques encontra-se agora sentado na zona dos restaurantes, cansado de tanto raciocínio – mas não de observar as pessoas. Numa mesa próxima, uma pessoa do sexo feminino com cerca de vinte e cinco anos de idade troca mensagens no telemóvel. Veste uma blusa fina e decotada e um soutien que deve ser de um número abaixo do adequado porque lhe deixa um mamilo quase inteiramente à vista. O Sr. Marques olha e pondera se deve tentar não olhar. Procura também imaginar a reacção dela se, simpaticamente, a avisar do descuido. Está absorto a elaborar uma lista mental de prós e contras quando uma segunda mulher chega junto da primeira, se inclina para a beijar e, enquanto se senta, diz: «Tens a mama à mostra.» A outra encolhe os ombros. «Ora, sempre alegra a vida a alguns coitados.» Primeiro o Sr. Marques sente-se ofendido. Chega mesmo a pensar: «Cabra!» Mas depois percebe que a rapariga acaba de lhe dar autorização para continuar a olhar. E assim, já sem disfarces, o Sr. Marques deixa-se ficar entretido a olhar para o mamilo, que é largo e pouco saliente e está rodeado por uma auréola rosada e ligeiramente granulosa. A certa altura, o olhar dele cruza-se com o da rapariga e o Sr. Marques permite-se mesmo sorrir com descontracção. Só então ela parece incomodada. Empurra a mama para dentro do soutien, pega na mala com a mão que o telemóvel deixa livre e diz para a outra: «Olha, vamos mas é andando.» O Sr. Marques observa-lhe o movimento das ancas enquanto ela se afasta e depois fica lá, sorrindo de vez em quando ao relembrar o acontecimento.




José António Abreu @ 08:47

Sab, 17/03/12

Não sei se sou um mentiroso excepcional, se as pessoas não prestam tanta atenção aos outros como estes julgam (ou, quando têm algo a esconder, receiam), se tivemos apenas imensa sorte. Ninguém pareceu suspeitar de nada. Apresentei a minha demissão três dias depois da morte de Patrícia. Houve esforços para me convencer a ficar, se não naquela unidade, pelo menos noutra fábrica do grupo, mas eu sabia não poder aceitar. Demasiadas pessoas, em Espanha e em Portugal, sabiam da existência de Patrícia. Mais cedo ou mais tarde, haveria perguntas. Por isso recusei permanecer na empresa e recusei dizer quem me tinha feito uma proposta melhor e no processo destruí todo o respeito que conquistara ao longo dos anos.

Os momentos de tensão foram demasiado frequentes para que os descreva a todos. De certa forma, é mais correcto afirmar que existiu apenas um, contínuo, em que a intensidade do nosso medo flutuou mas nunca desapareceu. Era-nos impossível pensar noutra coisa — sei que posso falar por Susana — e quando o cérebro procurava escapar obrigávamo-lo a recentrar-se, a lembrar o que se passara e a situação em que nos encontrávamos. Permitir outros pensamentos parecia uma saída fácil, uma traição à memória de Patrícia.

E, todavia, parece-me hoje que a maioria desses momentos de tensão nasceu dos nossos temores e não de ameaças reais.  O medo era real, a sensação de falsidade constante mas o nosso planeamento e a nossa execução acabaram por se revelar quase perfeitos. Tivemos sorte, logo de início, quando a mulher-a-dias telefonou a dizer que estava doente e não podia vir no dia em que estava previsto. Isso deu-nos um fim-de-semana. Queimámos parte da roupa de Patrícia na lareira e, na Segunda-Feira seguinte, dissemos-lhe que ela estava em Portugal, em casa dos avós. Quando os meus colegas de trabalho organizaram um jantar de despedida, decidimos que eu iria mas que Susana ficaria em casa (de qualquer modo, ela recusava-se a ir), o que permitiria evitar chamar a atenção para a ausência de Patrícia. Quando o meu pai fez sessenta anos, telefonei-lhe tarde (por muito que ele me achasse distante, seria estranho não lhe ligar) e, quando pediu para falar com Patrícia, expliquei-lhe que já estava a dormir. Dúzias de ocasiões como estas foram enfrentadas da melhor forma que conseguimos, sempre à espera de que algo corresse mal, sempre surpreendidos (mais eu, Susana pouco falava) quando, uma e outra vez, isso não sucedia. Podia descrevê-las em pormenor. Tornar aquelas duas semanas num filme de suspense barato. Mas não o farei. Não tenho qualquer desejo de relembrar aqueles momentos. Foram – acabaram por ser – irrelevantes. Porém, sinto necessidade de salientar quão forte Susana teve de ser. Procurava não sair de casa e ter de enfrentar outras pessoas mas algum contacto era inevitável. As conversas com a empregada, por exemplo, exigiam-lhe um esforço titânico: lembro-me do sorriso desesperado que afixava quando um dia cheguei a casa e a mulher não parava de falar acerca da neta. Aproveitei para lhe dizer que não precisava de voltar, uma vez que estávamos a dias de regressar a Portugal. «Mas ainda falta uma semana», contrapôs. Expliquei-lhe que não valia a pena porque a casa iria estar uma confusão assim como assim e garanti-lhe que o mês lhe seria pago na totalidade. Passei os restantes dias temendo que ela houvesse desconfiado de alguma coisa mas, mais uma vez, nada aconteceu. As pessoas gostam de falar e estou convencido de que contou a muita gente como nós éramos estranhos mas não terá feito mais do que isso.

No fim-de-semana antes de regressarmos a Portugal grelhei quase vinte quilos de carne de porco, cortada como se fosse fiambre. Permiti que as fatias ficassem bem esturricadas e desfi-las para dentro de um tupperware. Foram estas cinzas que apresentámos às nossas famílias como sendo as de Patrícia (dentro de uma urna comprada numa funerária de Oviedo aquando do regresso).

Fui verificar a sepultura todos os dias. Normalmente fazia-o depois de anoitecer mas, por vezes, também durante as horas de luz. Chegava junto do muro num passeio que tentava que parecesse casual, saltava para o lado de lá e subia a encosta como se estivesse a dar um passeio – como se estivesse a aproveitar os últimos dias para fixar os encantos do local na memória. Quando saltava do muro abaixo e, mais tarde, quando descia a encosta de regresso a casa, aproveitava para verificar se a zona de terra revolvida se notava muito. Notava-se imenso. Para tentar disfarçá-la, na terceira noite após o enterro cavei ao longo do muro, quatro ou cinco metros para cada lado da cova. Tinha esperanças de que cerca de uma dezena de metros de terra revolvida fizesse pensar que tinham andado ali a introduzir um tubo ou qualquer coisa do género mas, na realidade, não fazia. Não dando já ideia de uma sepultura, continuava a parecer estranho.

Susana nunca me perguntou onde enterrara Patrícia mas um dia, ao regressar da empresa, encontrei-a do lado de fora do muro, olhando para a zona de terra solta e escura. Tentei evitar pensar há quanto tempo lá estaria e se alguém a teria visto e levei-a para casa, caminhando ao longo do muro até à estrada com o meu braço direito em torno da cintura dela – como se passeássemos, esperava eu. Não falámos. Nessa época falávamos pouco. Todas as palavras se haviam tornado inadequadas.

Vinte e três dias após a morte de Patrícia deixámos Espanha.

 

Não sei o que vai acontecer. Não sei se alguma vez o corpo será descoberto. Mesmo que não seja, há pontas soltas: por exemplo, não temos certidão de óbito. De cada vez que ligo a televisão, folheio um jornal, respondo à campainha da porta ou abro a caixa do correio espero o pior. O mesmo acontece com Susana. Nos últimos dois anos a nossa vida tem sido tão confinada que é quase como estarmos na prisão. Mas estamos presos juntos e isso tem um valor inestimável. Dependemos um do outro mais que nunca. A nossa relação está indelevelmente marcada pela morte de Patrícia. Antes, havia uma componente de desespero mas agora essa componente é tão forte que chega a ser uma dor física. De cada vez que fazemos amor, dói-nos olhar nos olhos do outro. De certa forma, o nosso amor nunca esteve tão forte. Mas depender tanto dele esgota-nos, deixa-nos exaustos.

Susana nunca se perdoou e suspeito que às vezes julga que a culpo pelo que aconteceu. A dor nos olhos dela durante o acto sexual é tanto expressão dos seus sentimentos por mim quanto um pedido de desculpa. Mas eu perdoei-a. Totalmente. Sem restrições. É em mim que encontro razões para culpa. Por um lado, sinto que me alheei do crescimento de Patrícia e que recusei ver os indícios de que nem tudo estava bem (ou, pelo menos, agir sobre eles). Por outro, devido ao que sucedeu, às vezes sinto que tenho um ascendente sobre Susana. Que a consigo controlar. Não desejo isso. Somos iguais, como sempre no passado. A bofetada, demo-la juntos. O encobrimento, fizemo-lo juntos. Se alguma vez formos acusados do crime, somos ambos culpados.

Não tenho a certeza de estar arrependido do que fiz. Às vezes penso que sim, noutras acho que procedi da melhor forma possível. Julgo que a ideia de enterrar Patrícia me surgiu por acreditar – ou desejar acreditar – que, fazendo-o, poderíamos rapidamente passar por cima do que sucedera e seguir em frente. Foi um erro. O que fizemos, do início ao fim, é um fardo muito mais pesado. Devíamos ter chamado a polícia, explicado que fora um acidente, arcar com as consequências. Desta forma, ficou tudo dentro de nós – dentro de Susana, em particular. A exposição pública e um castigo – se chegasse a existir: a morte de Patrícia foi um acidente – poderiam ter permitido uma expiação menos interior e mais eficaz. Mas, claro, o castigo poderia ter sido a prisão e a possibilidade de ser afastado de Susana, para mais sabendo-a a sofrer, continua a revelar-se-me insuportável.

Enfrentar famílias e conhecidos foi mais difícil do que esperávamos. Por muito que proclamassem não quererem forçar-nos a reviver o que acontecera, assaltaram-nos com pergunta após pergunta. Sempre que nos foi possível, evitámos responder. Isso desagradava-lhes. Deixava-os irritados. Como se tivéssemos que satisfazer curiosidades mórbidas. Como se tivéssemos uma qualquer espécie de dívida para com eles. Felizmente, o passado jogava a nosso favor. Sempre estivéramos à parte, sempre fôramos outsiders que nunca haviam cedido a desejos de terceiros. Porque nos conheciam, todos acabavam por encolher os ombros e, por entre resmungos, deixar o assunto cair.

Encontrei um novo emprego menos de um mês após o regresso. Susana dizia-se incapaz de se concentrar e apenas retomou a actividade meio ano depois. Numa coincidência irónica e perturbadora, o primeiro livro que a editora lhe enviou para tradução era sobre como lidar com crianças.

Temos estado à espera. Podemos ter dias, podemos ter o resto das nossas vidas. Não dizer que tenhamos a vida em pausa porque, fora dos nossos cérebros, tudo está como gostaríamos que estivesse. Dispusemos de dois anos para nos habituarmos a viver de acordo com estas premissas e julgo que estávamos a conseguir fazê-lo. Esta nova mudança no rumo dos acontecimentos é totalmente inesperada.

Pouco depois de regressarmos sugeri fazer uma vasectomia. Discutimos o assunto e chegámos à conclusão de que era melhor mantermo-nos tão discretos quanto possível. Talvez mais tarde. Afinal, Susana tomava a pílula. Toma a pílula. Algo correu terrivelmente mal.

Susana continua a agarrar-me as mãos. Olha-me em silêncio. Olho-a também, tentando perceber se já tomou uma decisão. Apenas detecto medo e tristeza. Mudo a posição das nossas mãos, de modo a ser eu a segurar as delas. Inclino-me para a frente e beijo-a nos lábios. Estão frios e secos. Digo: «Amo-te» porque, independentemente do que viermos a dizer e a fazer, quero que isso fique claro.




José António Abreu @ 08:43

Qui, 15/03/12

Vira-as de imediato. Ficara junto à porta, sem saber como agir, sentindo que acabara de entrar numa realidade alternativa, num palco onde se representava uma peça na qual era suposto eu desempenhar um papel que nunca me fora enviado para decorar. Haviam passado alguns segundos, não mais do que alguns segundos, e depois eu avançara para Susana. Ela recusara os meus cuidados, estendendo os braços, deslizando no chão, e eu desviara a minha atenção para Patrícia.

Agora, na sala, eu disse: «Temos de chamar uma ambulância. E a polícia.»

Susana permaneceu em silêncio, sem discordar, aguardando apenas que eu tratasse do assunto. Mas eu não peguei no telefone. No interior da minha cabeça, vozes gritavam que chamar as autoridades era a coisa correcta a fazer, a única coisa a fazer. E, no entanto, hesitei. A marca na face de Patrícia, o relato de Susana, o tempo que havíamos demorado – algo me dizia que iríamos enfrentar imensos problemas e que nenhuma vantagem existia em chamar quem quer que fosse. Patrícia estava morta, nada a traria de volta. Havia uma culpa a remir mas não resultava de qualquer crime público, muito menos de homicídio. Susana e eu éramos culpados de outro crime, mais íntimo, pouco adequado a debates legais, à frieza dos tribunais e à exposição mediática. Mas a polícia não veria as coisas dessa forma. Investigaria, faria perguntas, duvidaria. Com a comunicação social a pressionar, não me custava imaginar Susana sendo presa. E para quê? De que forma seria a prisão melhor forma de expiação do que o arrependimento que ela já sentia?

Pensei em chamar uma ambulância e não a polícia. Mas os paramédicos perceberiam que Patrícia morrera horas antes. E chamariam a polícia.

 Não sei quanto tempo demorei a dizer as palavras. Sempre que penso naquele dia (e há constantemente no meu cérebro imagens do corpo de Patrícia tombado ao fundo das escadas), o tempo parece-me ter seguido regras diferentes das habituais. A conversa na sala não pode ter durado mais do que alguns minutos – um quarto de hora, talvez – mas surge-me como tendo sido extremamente longa. De qualquer modo, tenham decorrido dez segundos ou dez minutos, eu disse: «Podemos não avisar ninguém.»

Susana encarou-me finalmente mas somente por um instante. Fez a pergunta já a olhar em frente: «O que queres dizer?»

Expliquei-lhe, delineando o plano enquanto falava. Podíamos regressar a Portugal. Havíamos levado uma vida isolada, afastada dos habitantes da região. Talvez ninguém reparasse na ausência de Patrícia durante as semanas seguintes. E, ainda que notassem, podíamos dizer que ela estava em Portugal, com os avós. Às nossas famílias teríamos de admitir que morrera. Diríamos que acontecera na sequência de uma doença ou de um acidente (uma doença era melhor) e que fora enterrada (não, cremada) em Espanha. Recomeçaríamos a nossa vida em Portugal e deixaríamos este acontecimento para trás.

À medida que falava, eu sentia-me cada vez mais assustado mas também cada vez mais desejoso de começar a pôr o plano em marcha, de começar a fazer qualquer coisa. Susana ouviu a minha proposta com a inexpressividade com que efectuara o relato da morte de Patrícia e depois perguntou: «Estás a falar a sério?»

Estava? Sim e não. Havia uma parte de mim que apenas desejava que tudo seguisse os trâmites normais. Mas respondi: «Por que não? Tu… não cometemos qualquer crime mas vai ser como se tivéssemos cometido.»

Não sei se Susana chegou a concordar. Explicitamente, nunca o fez e interrogo-me com frequência se lhe terei tornado as coisas mais difíceis ao evitar que tivesse de assumir publicamente o acto que cometera. Mas trata-se apenas de mais uma entre a miríade de dúvidas com que desde então me debato e não posso permitir-me arrependimentos inúteis. O que fiz, fi-lo por ambos. Para proteger Susana mas também por mim, que não consigo imaginar-me a viver sozinho. No fundo, as minhas decisões decorreram de puro egoísmo.

Deixei Susana na sala e fui em busca de algo com que abrir uma sepultura.

 

Às vezes as coisas combinam-se de forma tão perfeita que toda a lógica parece apontar numa determinada direcção – por muito questionáveis que direcção e lógica venham a parecer mais tarde. Desconheço o que teria sucedido se na casa não existissem utensílios que me permitissem abrir a cova. Seria, aliás, natural: a casa nunca fora ocupada de forma permanente, o mobiliário não ia além do indispensável para a tornar confortável, nas traseiras não existiam campos de cultivo, apenas um espaço de terra seca à espera de uma família que lá aplicasse relva ou instalasse um grelhador para churrascos ou construísse uma piscina (depois do nascimento de Patrícia, Susana e eu faláramos de aproveitar melhor o terreno mas nunca de forma séria; ainda que nos sentíssemos bem vivendo nela, aquela casa não era nossa). A que propósito haveria de existir uma pá ou uma enxada por ali? E, claro, se não existisse, o meu plano teria entrado em colapso, uma vez que não poderia abrir a sepultura com as mãos ou com uma colher de cozinha. Poderia ter ido comprar uma pá mas era demasiado tarde para encontrar as lojas abertas. E sair, deixando novamente Susana sozinha com o cadáver de Patrícia, estava fora de questão. Para mais, a ideia de enfrentar outras pessoas assustava-me. Receava não conseguir agir naturalmente e deixar pistas óbvias que a polícia viesse a seguir. Duas semanas mais tarde, perante a notícia da nossa partida, perante a ausência de Patrícia, alguém poderia questionar-se sobre o motivo que levara o director da fábrica de aglomerados a comprar uma pá à hora de jantar. Estranhamente, penso que uma parte de mim desejava não encontrar com que abrir a cova. Desejava ver a realidade impor-se, expor o meu plano como o produto de um cérebro perturbado que certamente era, tirar-me o controlo das mãos. É algo que iria perdurar: durante os dias que se seguiram e em todos os dias que decorreram desde então, a sensação, assustadora e atraente em igual medida, de que o curso dos acontecimentos está prestes a sair-nos das mãos nunca me abandonou. Isto não é um relato de suspense e posso admiti-lo já: até hoje, tal não aconteceu. Naquela noite, o primeiro local a que me dirigi foi ao compartimento das traseiras junto à porta da cozinha. Numa das prateleiras que nunca usáramos, por entre lixo e sacos de serapilheira, encontrei um ancinho, uma enxada e uma pá. Reafirmo que não sou crente mas foi quase um sinal divino.

Demorei muito mais tempo a decidir o local onde abrir a cova. Nenhum me parecia seguro. Demasiado perto da casa e os próximos ocupantes (o meu substituto e família) poderiam estranhar o rectângulo de terra revolvido ou expor o corpo por outro motivo qualquer – na construção da tal piscina, por exemplo. Demasiado longe, já do lado exterior do muro, e, para além de não ter o edifício a proteger-me de olhares indiscretos enquanto cavasse, aumentariam as probabilidades do corpo ser desenterrado por cães ou por pessoas abrindo as fundações para uma nova casa ou escavando um poço ou levando a cabo qualquer outra actividade igualmente ridícula. Tive pena de que nas proximidades não existissem árvores – poderiam ter ajudado a esconder o que fazia e, ao mesmo tempo, servirem como uma espécie de memorial, um sinal de que Patrícia não fora esquecida. Mas apenas vegetação rasteira forrava a encosta. Enquanto a luz do dia se desvanecia num pôr-do-sol nebuloso, caminhei para trás e para a frente, achando defeitos em todas as hipóteses que avaliava. Acabei por escolher um ponto do lado de fora do muro, quase encostado a ele, onde a terra era mais escura (e, esperava eu, mais mole) e a cova apenas se veria subindo para cima do muro ou descendo a encosta em direcção à casa. Era praticamente noite cerrada quando cravei a lâmina da enxada no terreno.

Cavei durante horas, mergulhado numa escuridão quase completa. Havia uma luz por cima da porta da cozinha mas era fraca e o muro bloqueava-lhe o efeito. Eu tinha uma lanterna mas mostrava-se inútil e, de qualquer modo, eu temia usá-la. De início, o progresso pareceu-me nulo. Contrariando as minhas expectativas, a terra estava dura e seca, emitindo um ruído áspero de cada vez que entrava em contacto com uma das lâminas. Primeiro cavei de fora, com a enxada, depois do interior da cova, com a pá. Depressa enfrentei problemas com a colocação da terra solta. Ao decidir abrir o buraco mesmo junto ao muro, eliminara um dos lados onde, em terreno aberto, poderia colocar terra. Para agravar a situação, a inclinação do terreno, apesar de ligeira naquele ponto, fazia com que a terra colocada do outro lado depressa começasse a deslizar novamente para dentro do buraco. De cinco em cinco minutos, eu era forçado a arrastá-la para mais longe, o que atrasava tudo. Felizmente, protegido pelo muro e pela casa umas dezenas de metros mais à frente, devia ser praticamente invisível a partir da estrada – onde, de resto e como de costume, o trânsito era reduzido (ainda assim, obsessivo como sou mas também para evitar pensar no que fazia, cheguei a contar os segundos entre veículos). De cada vez que ouvia um carro aproximando-se, baixava-me e permanecia imóvel até o ruído se extinguir. A partir de certa altura, a lâmina da enxada começou a oscilar em torno do cabo, dificultando ainda mais as coisas. De alguma forma, esperara que se a terra se fosse tornando mais mole com a profundidade mas isso não aconteceu. Senti um desapontamento estupidamente intenso ao percebê-lo. Também não fazia ideia da profundidade conveniente. Quanto mais fundo, melhor, dizia-me. Por isso (e talvez por receio da fase seguinte) fui cavando e cavando e cavando mais um pouco até já só conseguir sair do buraco apoiando os braços na sua borda e usando pés e pernas nas paredes laterais para me impulsionar. Quando finalmente parei, a cova tinha quase a minha altura – de pé lá dentro, apenas a minha cabeça permanecia de fora. Pousei a pá, saltei o muro, sacudi a terra da roupa e entrei em casa.

Esforçara-me por não pensar no momento em que teria de ir buscar o corpo de Patrícia. Perguntara-me algumas vezes o que estaria Susana a fazer, a pensar, a sentir. Forçada por mim, depois de tantas horas sozinha com o cadáver da filha, a suportar mais umas quantas. Passei pela entrada, onde a presença do corpo de Patrícia mantinha toda a incongruência, e entrei na sala. Susana encontrava-se estendida no sofá. Tinha os olhos fechados mas não dormia. Deixei-me estar um par de segundos a olhá-la e depois saí novamente.

Subi as escadas para o primeiro andar e fui buscar um cobertor ao quarto de Patrícia. Escolhi um cor-de-rosa, felpudo, que ela usara para se embrulhar durante o Inverno enquanto via televisão na sala. Desci e estendi-o sobre o corpo. Puxei Patrícia na minha direcção, fazendo-a rodar para dentro do cobertor. Depois peguei-lhe ao colo, dobrando o excedente do cobertor em torno da cabeça e dos pés dela, e saí de novo para o terreno das traseiras. Apagara a luz e foi às escuras que caminhei até ao muro. Pousei o cobertor com Patrícia em cima dele e saltei para o outro lado. Peguei novamente no cobertor, pousei-o junto à borda da cova e, pela última vez, saltei para o seu interior. Arrastei o cobertor para os meus braços, baixei-me e pousei-o, com o corpo de Patrícia dentro, junto aos meus pés. Depois, procurando, por uma qualquer razão obscura e totalmente ilógica, que não se verificasse queda de terra, trepei até à superfície, liguei a lanterna e apontei o feixe lá para baixo.

Exagerara nas dimensões da cova. O volume com o corpo de Patrícia ocupava pouco mais de três quartos do comprimento e cerca de dois terços da largura. Era uma visão incongruente mas também apaziguadora: o cobertor cor-de-rosa acrescentava à cena uma componente de surrealismo e, por momentos, senti que não estava a enterrar uma pessoa mas um brinquedo, um peluche gigante que se estragara. O meu relógio marcava uma da manhã. Desliguei a lanterna. Não houve lágrimas nem orações. Limitei-me a pegar na pá e a encher a cova de terra. Foi rápido mas parecia sobrar terra. Tentei alisar o monte com a pá. Cerrei os maxilares e saltei-lhe em cima. Com a pá, retirei a terra em excesso e espalhei-a pelas redondezas. Decidi que naquele momento nada mais podia fazer. Na manhã seguinte reavaliaria a situação.

Sentia-me transpirado e sujo. Fui recolocar os utensílios na prateleira de onde os retirara, peguei num balde, num pano e numa esfregona, subi ao primeiro andar, lavei a esquina da cama onde a cabeça de Patrícia batera, desci as escadas, lavei a zona do pavimento onde o corpo dela ficara caído, fui novamente à cozinha, passei balde, esfregona e pano por água várias vezes, guardei-os e dirigi-me para a sala. Sentei-me ao lado de Susana. Deixei passar alguns segundos e apertei-lhe a mão. Um pouco mais tarde, ela retribuiu.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:43

Ter, 13/03/12

Uma boneca partida. Uma boneca grande, assustadoramente real, caída ao fundo das escadas, de peito para baixo, com as pernas ligeiramente abertas, a cabeça virada para a esquerda e para cima, num ângulo que parecia pouco natural sem que fosse fácil explicar porquê. Devagar, com uma consciência enjoativa de cada passo, aproximei-me. Ajoelhei-me, sentei-me sobre os calcanhares. Durante uma eternidade fui incapaz de lhe tocar. Pensava talvez que enquanto não o fizesse a situação não seria real, que ela não precisaria de acordar. Ou que eu não precisaria de acordar. O cabelo, louro e comprido, espalhava-se sobre o pavimento castanho-escuro como um pôr-do-sol desenhado por uma criança – como um pôr-do-sol que ela própria poderia ter desenhado. Os olhos estavam abertos e eu nunca vira neles tanto medo – nem naquelas ocasiões em que ela acordava a meio da noite com um pesadelo e corria a chorar para a nossa cama. O único sangue visível encontrava-se na face esquerda, numa ferida irregular. Olhei para cima, para onde Susana se encontrava imóvel, junto à porta da sala, os braços pendendo ao lado do corpo, os dedos das mãos movendo-se quase imperceptivelmente (ou acrescentarei agora detalhes ao que de facto aconteceu?). Não olhava para mim nem para Patrícia. Mantinha o olhar fixo num ponto ligeiramente ao nosso lado, como se recusasse encarar-nos mas, ainda assim, não pudesse deixar de nos manter dentro do seu campo de visão. Como se desejasse evitar a realidade mas não se atrevesse a negá-la. Eu tinha a pergunta na boca mas adiei-a para mais tarde e voltei a concentrar-me em Patrícia. Toquei-a na face. A temperatura da pele não me pareceu substancialmente diferente da que seria se ela tivesse passado algum tempo no exterior, durante o Inverno. Mas havia mais qualquer coisa — uma espécie de camada sebácea que parecia inumana e me fez estremecer. Era como se Patrícia, a minha filha, tivesse sido na realidade um extraterrestre ocupando o corpo de uma criança. Introduzi a mão esquerda sob a sua face e tentei levantar-lhe a cabeça. Veio tão facilmente que temi que se pudesse separar do resto do corpo. Forcei-me a tactear a parte de trás do pescoço dela. Não consegui sentir a vértebra partida ­— mas tinha de existir uma, não é verdade? Ou teria a morte ocorrido em resultado de danos na cabeça, provocados pelo embate no pavimento? Neste caso, por que não se via sangue ou uma fractura no couro cabeludo? Fosse o motivo qual fosse ­­— Patrícia estava morta. Permaneci imóvel durante um instante, depois pousei novamente a cabeça dela no chão, retirando a mão devagar para que não batesse nele outra vez, e levantei-me. As pernas ardiam-me mas senti-me grato por isso. Necessitava de uma dor fácil de compreender – e de gerir.

Olhei para Susana. Ela resistiu ao contacto visual durante alguns segundos e depois o nosso olhar encontrou-se. Começou imediatamente a chorar. Dei três passos em frente e abracei-a. Não retribuiu e, quando afrouxei a força do abraço e recuei para a olhar, soltou-se, usando todo o corpo para escapar, e caminhou — não correu — para o interior da sala. Rodei e olhei novamente para o corpo de Patrícia, ainda pequeno e imóvel e desprotegido e dolorosamente belo. A cena — toda a sequência de eventos, na realidade — mantinha uma pátina de surrealismo, parecendo impregnada de uma lógica estranha, deformada, que eu sentia ter obrigação de descodificar — de certa forma sentia que, se conseguisse descobrir o código, tudo voltaria ao normal. E então percebi que estava a deixar-me tombar em fantasias e senti-me irritado comigo mesmo e fui à procura de Susana.

Estava sentada num canto do sofá, em posição fetal, os braços em torno dos joelhos. Sentei-me a seu lado mas não fiz qualquer tentativa para lhe tocar. A sala estava abafada e o sol desenhava a cruz do caixilho da janela no chão à nossa frente. Perguntei: «O que aconteceu?»

Susana começou a falar de imediato. Senti que tinha necessidade de o fazer e que apenas estivera a aguardar a pergunta. Como se ela mesma precisasse de ouvir a descrição dos acontecimentos. Falou em tom monocórdico e creio não ter olhado para mim uma única vez enquanto descreveu o que se passara. Apesar da prontidão, no início parecia ter dificuldade em seleccionar as palavras e pronunciava-as devagar, como se lhe magoassem a boca. Explicou que Patrícia estivera impossível durante toda a manhã. Enquanto Susana arrumava os quartos e a casa de banho (tínhamos uma empregada mas vinha apenas duas vezes por semana), andara constantemente em torno dela, procurando envolvê-la nas suas brincadeiras. Era uma luta diária que Patrícia ganhava quase sempre mas hoje Susana não estava disposta a deixar-se arrastar. Estava tensa, incapaz de cedências ou compromissos. Dormira mal mas isso não era desculpa. Sentia-se no limiar de qualquer coisa — de um colapso ou de uma explosão.

(A voz de Susana era rouca mas estável. A forma como descrevia os acontecimentos, os pormenores que juntava, fazem-me ainda hoje pensar nas horas que passou à espera, a poucos metros do corpo de Patrícia, revivendo o que sucedera uma e outra vez. Parecia ter chegado não a uma desculpa mas a uma espécie de descrição densa e minuciosa que, pelas exigências de concentração que impunha, lhe permitia continuar a falar. Apeteceu-me várias vezes dizer-lhe que eu sabia como Patrícia conseguia ser irritante, de um egoísmo absoluto, que ela não precisava de me contar todos aqueles pormenores, mas não o fiz. Susana parecia necessitar dos pormenores. De analisar tudo, incluindo as próprias motivações. Deixei-a falar. E se agora conto o que se passou em voz indirecta é porque sou incapaz de fazer justiça ao que ela me disse e à forma como o disse, é porque faço questão de reclamar para mim quaisquer ideias negativas que o relato possa suscitar.)

Tudo se passara finalmente muito depressa. Susana aspirava o chão do nosso quarto. Patrícia continuava em torno dela. A certa altura, puxou o cabo do aspirador, arrancando-o da tomada. Susana gritou-lhe. Patrícia desatou a chorar, Susana mandou-a parar, disse-lhe para sair do caminho mas Patrícia não obedeceu (fazia isso muitas vezes, finca-pé numa posição, corpo hirto, expressão de raiva e martírio). Susana deu-lhe uma bofetada. Com força, na cara. A pancada e o movimento que Patrícia fez para tentar escapar-lhe fizeram-na cair. Bateu com a face esquerda na esquina da cama. Começou a chorar com mais intensidade, levantou-se, evitou Susana, que já estava em pânico, e correu para o andar de baixo. Susana ouviu o grito e o ruído da queda e soube que Patrícia estava morta.

(Nesta altura do relato, lembro-me de me aperceber que Susana não mencionara uma única vez o nome de Patrícia. Continuo sem saber se isso tem algum significado.)

«Por que não me telefonaste?»

Continuando a não me olhar, hesitou pela primeira vez. Encolheu ligeiramente os ombros. Primeiro disse que não sabia mas, após um momento, explicou ter percebido de imediato que Patrícia estava morta. Eu nada poderia fazer. E – disse-o num murmúrio em que se misturava vergonha e raiva – nada era real enquanto mais ninguém soubesse.

(Estou certo de que existe outro motivo: Susana quis poupar-me, adiar o instante em que eu seria confrontado com a morte de Patrícia. Nunca o mencionou mas certas coisas não precisam de ser mencionadas. Não entre nós.)

E então passou horas sentada junto ao corpo de Patrícia, costas contra a parede, joelhos contra o peito. Nunca me contou os pormenores daquelas horas, o que pensou, o que fez, se chorou, se se agrediu (nos dias seguintes, pareceu-me existirem marcas nas pernas, nos braços e no abdómen dela), se recordou as minhas reticências quando me anunciou a gravidez, se foi alguma vez à casa de banho, e eu nunca tive coragem para perguntar. Se o nascimento de Patrícia nos afastara um do outro, criando áreas de desconforto, a sua morte, voltando a deixar-nos sozinhos um com o outro, solidificou alguns desses universos privados. Sei que, a certa altura durante o dia, o telefone tocou e ela não atendeu. Sei-o porque era eu quem ligava e lembro-me – ou estarei novamente a imaginar coisas? – de ficar apreensivo por um momento, antes das solicitações do emprego me desviarem a atenção.

Susana apenas me disse que ficara imóvel, incapaz de raciocinar. «Era como se estivesse tudo em suspenso, à espera da tua chegada.» E agora eu estava em casa e também não sabia o que fazer.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:40

Dom, 11/03/12

Para ser sincero, no início as mudanças não foram significativas. Pelo menos para mim, que saía de casa de manhã cedo e só voltava à noite. (Houvera uma fase, logo após Susana se mudar para Espanha, em que ia almoçar a casa mas depois Susana convencera-me a não o fazer: «Perdes muito tempo», explicara-me, «e obrigas-me a fazer almoço todos os dias.») Assim, era Susana quem levava Patrícia ao médico, quem lhe comprava roupas, comida, a maioria dos brinquedos. Patrícia apenas me forçava a interagir com estranhos quando se sentia mal durante a noite e saíamos os três a correr para o hospital, as luzes do carro varrendo a estrada com um nervosismo enjoativo, eu e Susana quase sempre em silêncio (o que há para dizer nestas alturas que não pareça deslocado e supérfluo?). As doenças de Patrícia nunca se revelaram graves mas a sensação de urgência nunca decresceu. De cada vez, era como se precisássemos não só de confirmar que ela ficaria bem mas também de que não tínhamos culpa de ela estar doente – desconheço o que sucede com os outros casais mas, para nós, que nunca havíamos desejado filhos, tornava-se difícil evitar a sensação de não estar à altura da tarefa. Felizmente Patrícia foi um bebé saudável e não nos obrigou a viagens destas mais do que três ou quatro vezes durante o primeiro ano de vida. Dormia quase sempre bem, acordando-nos somente às horas a que tinha de ser alimentada.

Se tenho dificuldade em classificar esses primeiros meses da vida de Patrícia como exaltantes, não posso deixar de considerar que foram ainda, tudo considerado, um período de relativa felicidade.

 

«Olá, papá.»

Eu apoiava um joelho no chão e ela saltava para os meus braços. Sentia-lhe o peso nos braços, o cabelo no pescoço, o calor no peito.

«Olá, pequenina», dizia eu, «tive saudades tuas.» Era importante para ela que lho dissesse. Quando eu não o fazia de imediato, nunca deixava de o perguntar.

Ficávamos assim um instante e depois eu largava-a e erguia-me para enfrentar Susana. Beijávamo-nos mas não com paixão nem durante muito tempo. «Papá, anda ver o meu desenho.» Susana e eu sorríamos um para o outro. Eu tinha a sensação de ver indícios de cansaço em torno dos olhos e da boca dela ­– as rugas permanentes de cada lado da boca eram recentes, como o eram as marcas escuras sob os olhos. À noite, na cama, por vezes ela perguntava-me se começava a parecer velha. Eu respondia que não mas ela não acreditava. Então eu dizia-lhe que, de qualquer modo, não importava. Apesar de sorrir e até de me abraçar ou beijar, eu percebia que a minha resposta não bastava.

Explicitamente, nunca abordámos as mudanças que Patrícia trouxera à nossa vida. Aqui e ali, expressões como «nos tempos em que não tínhamos a Patrícia» ou «se não fosse a Patrícia» surgiam na conversa mas nunca nos sentámos a falar das alterações que o nascimento de Patrícia impusera à nossa relação. Antes, «nos tempos em que não tínhamos a Patrícia», cada um de nós parecia preocupar-se antes de mais com o outro. Com os interesses do outro, com o bem-estar do outro. Agora, como sempre esperáramos (como sempre temêramos) éramos forçados a levar os interesses de Patrícia em consideração. A satisfazê-los primeiro. E depois descobríamo-nos demasiado cansados para pensar um no outro.

Na verdade, mesmo quando tentávamos focar-nos apenas em nós, algo estava diferente. Um exemplo talvez insignificante, certamente menor: durante anos, eu comprara presentes a Susana. Não apenas no aniversário ou no Natal (desprezávamos pessoas que se limitam ao cumprimento de calendários) mas quando via alguma coisa (um par de sapatos, um livro, um anel) que julgava poder agradar-lhe. Depois do nascimento de Patrícia – e em especial depois de ela começar a andar e a balbuciar palavras e frases – os presentes eram recebidos não com as calorosas demonstrações de afecto do passado mas com um par de beijos e um olhar ligeiramente triste e conformado. E eu passei a comprar-lhe cada vez menos presentes.

 

E depois as coisas pioraram. Se Patrícia fora um bebé calmo, depressa se tornou uma criança problemática (o termo desagrada-me mas não consigo encontrar melhor). Procurava atenção constante e não admitia ser deixada de fora de qualquer manifestação de ternura. Sempre que Susana e eu nos abraçávamos ou beijávamos, corria para nós e exigia ser abraçada e beijada. Gestos de amor entre nós (entre mim e Susana, quero dizer) eram gestos roubados a Patrícia – ou assim ela parecia considerá-los. Apenas aceitava demonstrações de afecto entre nós que a tivessem como intermediária.

Desconheço as razões para estes ataques de ciúme. Há muito que Susana e eu não éramos sequer particularmente demonstrativos nas nossas manifestações de afecto um pelo outro. Creio que nunca recusámos a Patrícia o carinho que lhe era devido. E, no entanto, ela parecia pensá-lo. Talvez um psicólogo conseguisse detectar um padrão, um acto nosso que ela achasse insuportável, mas nós éramos sempre apanhados de surpresa, ficando sem saber como agir. Os ataques de Patrícia provocavam desconforto entre nós mas causavam ainda mais danos na nossa relação com ela. Faziam com que se transformasse quase numa intrusa, num (tremo ao escrever a palavra) empecilho. A circunstância, inevitável, de ela detectar a nossa reacção só aumentava a sua insatisfação e o nível das suas exigências.

 

Retrospectivamente, sou capaz de detectar sinais de como o fardo sobre Susana se começou a tornar excessivo. (A menos que o meu cérebro os imagine, num jogo de autodefesa – é demasiado frustrante perceber que nada podia ter sido feito – e, simultaneamente, de autodestruição – se eles existiam, como puderam escapar-me?) Antes de Patrícia nascer, eu lera artigos sobre depressão pós-parto. Nas semanas que se seguiram ao nascimento procurei sinais de depressão em Susana. Nada detectei. À medida que as semanas, depois os meses, depois os anos passavam, fui deixando de pensar no assunto. No que me dizia respeito, as coisas haviam tombado numa rotina suave, pouco excitante mas não inteiramente desagradável. De vez em quando dizia a Susana que ela me parecia cansada, que devia descansar mais, e perguntava o que podia fazer para a ajudar mas aceitava as respostas moles que ela dava e não procurava ir mais além. A frequência, duração, profundidade e humor das nossas conversas reduziram-se até restar pouco mais do que um silêncio resignado. Nas primeiras vezes em que Susana gritou com Patrícia fiquei surpreso mas não acreditei que fosse indício de algo sério. Depois Susana começou também a gritar comigo e senti-me ainda mais estupefacto e também magoado (não costumava haver gritos entre nós). E então, uma noite antes do jantar, Susana esbofeteou Patrícia e eu tive uma conversa com ela mas ela já estava arrependida e eu acabei a abraçá-la. Depois fui fechando os olhos. Julgo que esperava que, mais cedo ou mais tarde, tudo regressasse ao normal, qualquer que fosse agora a normalidade.

Dizem que o amor cega. É verdade. Fechamos os olhos tentando mantê-lo vivo.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:44

Sex, 09/03/12

Foi numa Sexta-Feira à noite. Estava frio mas ainda não acendêramos a lareira. O vento, forçado a contornar a casa ao subir encosta, assobiava nas soleiras das portas e das janelas. No televisor, Don Corleone sussurrava em castelhano. Não sei por que recordo estes pormenores mas tenho a certeza de que estão correctos. Eu encontrava-me sentado na nossa sala pouco mobilada, tentando reunir forças para mudar de canal (gerava-se em nós um estranho fascínio sempre que víamos programas dobrados em castelhano) quando Susana veio da cozinha e se sentou na outra ponta do sofá. Pediu-me para desligar o televisor. Brando desapareceu por entre ruído de estática. Durante segundos, Susana e eu permanecemos imóveis e silenciosos, como que aguardando pelo desvanecimento dos estalidos provenientes do ecrã. Finalmente, ela disse: «Estou grávida.» Deixou que eu absorvesse as palavras e só então esboçou um sorriso — um sorriso tímido, expectante, apologético, que era também uma questão.

Eu não sabia a resposta. Permaneci em silêncio durante muito tempo, vendo a esperança desaparecer da face dela e ser substituída por uma mistura de desapontamento e resignação. Eu estava consciente de que necessitava de dizer qualquer coisa mas sentia-me incapaz de o fazer; de proferir as palavras que anulariam a tensão do momento, que tornariam aquela gravidez não apenas algo inesperado e assustador, mas também algo de excitante — um projecto arriscado mas estimulante que enfrentaríamos juntos.

«Não estás satisfeito», disse Susana. Não era uma pergunta.

Eu disse: «Não tenho a certeza. Tu estás?»

Susana encolheu os ombros. Eu disse: «Sinto-me bem na nossa situação actual.»

Mas juro-te, Patrícia: nunca ponderámos sequer a possibilidade de realizar um aborto.

 

No passado, a pergunta surgira com frequência: quando iríamos ter filhos? Respondíamos tão bruscamente que a maioria das pessoas marcava a questão como «sensível» e evitava colocá-la novamente. A nossa irritação devia-se mais ao facto de sermos perguntados do que ao tema. Nos primeiros tempos, Susana e eu chegáramos a discutir o assunto. A ideia de ter filhos não era apelativa para nenhum de nós, pelo menos no curto prazo. Era algo que apenas aceitávamos como possibilidade para o futuro. Eu nunca me sentira confortável junto de crianças – ficava tenso e solícito, parecendo falso aos meus próprios olhos, ou desatento e impaciente. Susana tinha muito mais jeito mas acabava sempre a realçar o esforço que as crianças exigem. A atenção constante que é necessária. O desgaste que provocam. E assim ter filhos converteu-se numa possibilidade não descartada mas adiada para um futuro que nunca parecia aproximar-se. De tal modo que, desde a minha ida para Espanha, nunca a voltáramos a abordar. Agora, a realidade impusera-se e, por ter sido apanhado de surpresa (ou por mais do que isso?), eu não conseguira dar a Susana todas as garantias que ela desejava. Por ínfima diferença que uma reacção mais clara pudesse ter feito, ainda hoje preferia não ter transmitido aquela dúvida.

 

A gravidez foi um período estranho. Havia uma falta de à-vontade entre nós que era quase como se tivéssemos regressado aos primeiros tempos da relação. O corpo de Susana voltara a ser algo de misterioso e ligeiramente ameaçador. Observava-o quando ela saía do banho e se esfregava com a toalha. Pedia-lhe para ficar quieta ou para se deitar na cama e pesquisava-o à procura de mudanças. Acariciava-lhe o ventre, que nas primeiras semanas mostrava apenas a ligeira curvatura que sempre tivera, tentando senti-lo expandir ou detectar sinais de vida (de uma vida diferente) no seu interior. Era ainda demasiado cedo. Nessa fase o sexo voltou a ser um acto exploratório: quase como se estivesse a praticá-lo com uma nova encarnação de Susana. Tudo ainda era ela, parecendo exactamente como sempre fora, mas ao mesmo tempo tudo era ligeiramente diferente. Sentia estar a tocá-la com uma reserva anormal, que temia pudesse constituir o prenúncio do nosso inevitável afastamento. Mas então, quando a barriga começou a aumentar e a realidade da gravidez se tornou fisicamente evidente (quase obscena, na forma impiedosa como o corpo de Susana era forçado a dilatar), nasceu (ou talvez tenha apenas despertado) em mim uma tendência para a transgressão. Houve alturas em que penetrar Susana me parecia um acto de desafio, uma espécie de pecado jubilatório, que me permitia unir-me a ela apesar da presença de forças inimigas. Era como se fodesse um acto de Deus. Como se Lhe dissesse que não ia vencer-nos. Finalmente, após cinco ou seis meses, o acto sexual tornou-se ainda outra coisa. Susana ficava quase sempre por cima, cansando-se depressa, e eu olhava-a fixamente nos olhos. Fazia-o para tentar descobrir se a magoava mas também de forma a evitar reparar como o corpo dela se deformara. Algo estava muito errado: aquela pessoa com barriga dilatada e mamas pesadas não era ela, nem uma nova encarnação dela, mas uma pessoa completamente diferente, com quem eu tinha sexo que, não sendo totalmente insatisfatório, também não era agradável. Sentia-me quase como se enganasse Susana ao ter relações sexuais com esta mulher. E então Susana disse-me que era melhor evitarmos o sexo durante o último par de meses de gravidez e, se a minha reacção imediata foi de alívio, mais tarde senti uma estranha sensação de privação. Como se me houvesse sido negada uma parte indispensável da vida em comum. Como se uma entidade estranha (não tu, Patrícia, nunca pensei que fosses tu) me estivesse a negar um direito que adquirira ao casar com Susana, um direito que julgara irrevogável. Em nenhum outro período desde a adolescência (nem sequer durante o tempo que passara sozinho em Espanha) me masturbei com tanta frequência e me senti tão sujo por fazê-lo.

 

Hesitámos quanto a saber ou não o sexo do feto antes do parto. Susana perguntou-me a opinião. Encolhi os ombros. Não desejava passar o ónus da decisão para ela mas era-me indiferente. Perguntou-me então se preferia rapaz ou rapariga. A resposta foi imediata: «Rapariga.» Sorriu. Sorriu ainda mais (e apertou-me a mão) quando a médica que fazia o exame disse: «Es una chica.» Sei que também sorri mas não me lembro de ter dito alguma coisa.

 

O parto foi difícil. Doze horas depois do início do trabalho de parto, os médicos decidiram executar uma cesariana, receosos de que o bebé pudesse estar a sofrer. Eu não tinha dúvidas de que Susana estava. Permaneci ao lado dela, zangado com os médicos mas também comigo – pela minha inutilidade e por ser responsável por isto estar a acontecer. Era um erro, que nunca compensaria os riscos e a dor que causava. Finalmente Patrícia foi arrastada para fora de Susana, chorando de medo e de incompreensão, Susana foi sedada para poder descansar, e eu afundei-me numa cadeira do hospital tentando lidar com as emoções. Sentir o corpo de Patrícia nos meus braços foi uma experiência simultaneamente exultante e aterradora, em que grande parte do terror vinha não do medo de a perder (existia também esse medo, claro, quase como se ela pudesse parar de respirar apenas porque eu não lhe estava a pegar da forma correcta) mas de não conseguir antever as mudanças que aquela pequena criatura cor-de-rosa, enrugada, feia e atraente ao mesmo tempo, causaria na minha relação com Susana ­– até àquela gravidez, ou talvez mesmo até àquele ponto, tão perfeita e linear quanto eu alguma vez tinha desejado que pudesse ser. Horas mais tarde, Susana e eu conversámos pela primeira vez depois do parto e percebi que sentia o mesmo. A nossa pequena e controlada bolha tinha acabado de se expandir e, porque Patrícia teria necessidades, em breve desenvolveria novas ligações ao mundo exterior. «Talvez nos fizesse falta», disse Susana. Encolhi os ombros, tentando não mostrar cepticismo.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:40

Qua, 07/03/12

Quase no final da renovação da linha produtiva, o presidente do conselho de administração da empresa deslocou-se a Navarra. Após a visita, convidou-me para assumir a direcção geral da unidade. Não fui apanhado de surpresa: ponderara a hipótese de me fazerem aquele convite inúmeras vezes. Declinei a oferta. Ele sorriu perante a minha resposta pronta, quase precipitada, e disse-me para pensar no assunto. No dia seguinte, o responsável pelas operações em Espanha veio falar comigo: aumentar-me-iam significativamente o salário, forneceriam carro e casa, apoiariam a mudança de Susana. E – ele era basco e tinha orgulho na voz quando o disse – sabiam que eu apreciava a região. Que razões podia ter para recusar? Pedi tempo para reflectir.

Deixar o universo familiar e condicionado em que vivêramos antes de eu ir para Espanha — os meus pais, presos em rotinas de cansaço e recriminação, o pai de Susana, prestes a casar novamente, meia dúzia de amigos — por um ambiente totalmente novo… Por que não? E todavia, ao contar a Susana pelo telefone, podia sentir a dúvida propagar-se através da linha. No fim-de-semana seguinte em que estivemos juntos havia tensão no ar. Durante a noite de Sexta e parte de Sábado evitámos o assunto. Finalmente, Susana perguntou: «Queres ir?» Havia uma seriedade na voz dela que eu conhecia bem — usava aquele tom quando entendia ter chegado a altura de tomar uma decisão. Tergiversar seria uma cobardia da minha parte. Respondi: «Honestamente, sim. Mas eu já estou habituado. As mudanças mais significativas seriam para ti.»

A carreira profissional de Susana passara por duas fases distintas. Depois de terminar a licenciatura em Português-Francês substituíra durante alguns meses uma professora da quarta classe a quem fora diagnosticado cancro. Apesar de curto, este período fora suficiente para que ela percebesse não ser aquilo que desejava fazer. Não tinha paciência para ensinar. Não tinha paciência para aturar os alunos, para a forma como falavam durante a aula, como ignoravam as indicações delas, como estavam cheios do que ela certa vez designou como «orgulho da ignorância», como os pais pareciam não se importar e, com frequência, até partilhar e reforçar estas características. Mas, acima de tudo, desgostava-a a forma como rapidamente deixou de se importar. Depois desta experiência, fez um curso de tradução e começou a traduzir livros a partir do Francês. Traduzir dá pouco dinheiro e o número de edições de autores franceses é hoje em dia reduzido, o que a forçava a suportar períodos de inactividade ou a aceitar a tradução de manuais de instruções de máquinas domésticas ou industriais para empresas de origem francesa. Apesar disso, gostava do que fazia. Em muitos dias nem sequer abandonava o pequeno T2 que ocupávamos nos subúrbios do Porto.

Susana respondeu à minha preocupação dizendo: «Posso trabalhar em Espanha. Já inventaram uma coisa chamada correio electrónico.»

Por isso mudámo-nos para a vila de… não, o nome é irrelevante. A localização exacta também não interessa. Não é difícil de descobrir mas não a vou mencionar. O que aconteceu ali podia ter acontecido noutro local qualquer. E, na realidade, não nos mudámos exactamente para a vila mas para uma casa de dois pisos situada a cerca de um quilómetro, junto a uma estrada pouco movimentada desde a construção de uma alternativa mais larga e rápida. Mas a fábrica ficava perto, a menos de três quilómetros, e a localização era sossegada. Achámo-la perfeita. Contaram-nos que pertencera a uma família que emigrara para a Suiça cerca de vinte anos antes. Regressavam a Espanha pelo menos uma vez por ano, como fazem os emigrantes portugueses, tendo ordenado a construção da casa meia dúzia de anos antes, esperançados num regresso próximo. Haviam usufruído dela apenas um Verão, antes de voarem para a morte numa estrada dos Alpes. Os filhos consideravam-se mais suíços que espanhóis e decidiram não regressar. A casa fora vendida e a empresa arrendara-a para nós.

 Era um edifício ligeiramente anacrónico, misturando detalhes típicos da habitação basca (a “etxea”, termo a partir do qual nasceram tantos apelidos da região) com pormenores das tradicionais casas de montanha suíças. Tinha o formato de um cubo com um telhado pontiagudo, em quatro águas: a primeira vez que a vi pensei imediatamente em dois blocos lego sobrepostos (um cubo e uma pirâmide), e essa imagem renovava-se todos os dias quando regressava da fábrica. As paredes eram brancas, com as soleiras de portas e janelas pintadas de preto. No rés-do-chão tinha uma sala enorme, uma cozinha onde tomávamos as refeições, uma casa de banho e um átrio de onde saía um lance de escadas para o piso superior. No andar de cima existiam três quartos (transformámos um deles em escritório para Susana trabalhar) e duas casas de banho. Havia ainda um sótão, acessível através de um alçapão — pormenor que me pareceu deliciosamente cinematográfico. Nas traseiras, um terreno com aspecto abandonado, cercado por um muro de pedra, ocupava o espaço disponível antes da encosta adquirir uma inclinação acentuada. Junto à porta da cozinha, existia ainda uma pequena arrecadação, onde praticamente só entrávamos para substituir a botija de gás para o fogão (a água era aquecida por um cilindro eléctrico). O edifício mais próximo – um aviário – ficava a cerca de cinquenta metros, mais abaixo na encosta e as curvas da estrada escondiam as casas mais próximas.

Era o sítio perfeito para nós.

 

Os primeiros meses foram de incerteza e exploração. Susana e eu começámos a nossa vida em Navarra como dois cegos tacteando as redondezas com uma bengala branca. Não éramos sociáveis mas isso não constituía um problema. Excepção feita aos meus colegas de emprego, não conhecíamos ninguém e podíamos seleccionar o grau de intimidade que aceitávamos. A curiosidade dos locais era contrabalançada por uma certa reserva – orgulho, mesmo – que os levava a não fazerem demasiadas perguntas. Quase como se nos dissessem que éramos bem-vindos mas que não esperássemos encaixar facilmente na sua comunidade. Que fazê-lo exigiria um esforço. Depressa se deve ter tornado claro que nós não estávamos dispostos a realizá-lo. Através do pessoal da fábrica, ou por via das inevitáveis visitas às lojas para comprar roupa ou alimentos, fomos conhecendo algumas pessoas mas nunca aceitámos um grau de intimidade que nos levasse a ir jantar na casa de alguém ou a convidar outras pessoas para nossa casa (com um par de excepções que, não tendo corrido mal, apenas confirmaram a sensatez da nossas reserva).

Havia também a questão da língua. Com mais de um ano de presença na região, eu era capaz de articular umas quantas frases numa mistura de euskera e de castelhano mas Susana, apesar da sua queda para línguas e das suas visitas mais frequentes à aldeia, nunca aprendeu verdadeiramente a falar nem basco (uma das línguas mais complexas da Europa, explicaram-me uma vez, com sintaxe, gramática e vocabulário aparentemente sem relação entre si) nem castelhano. Não é pois de estranhar que os locais nos deixassem em paz, aceitando-nos com uma impassibilidade que só espelhava a nossa. Como de costume, o nosso isolamento era-nos inteiramente atribuível.

Mas na verdade não sentíamos falta de contacto humano. Adorávamos estar sozinhos na casa: após tantos meses de separação, encontrarmo-nos juntos, encaixados num sofá, lendo ou rindo dos programas televisivos, era definitivamente a nossa forma preferida de passar o tempo. Era como se tivéssemos recuperado o casulo que tínhamos no Porto, redecorado e transferido para um lugar mais exótico do universo. Aos fins-de-semana metíamo-nos no carro e percorríamos a região, parando com frequência para tirar fotografias, fazer piqueniques, ou apenas para nos sentarmos nas rochas apreciando a paisagem. Decidimos que gostávamos de San Sebastian e que, com ou sem Guggenheim, não gostávamos de Bilbao. Adorávamos passar umas horas em Castro Urdiales, a caminhar ou sentados a olhar o mar, excepto nos meses de Verão, em que havia demasiados turistas. Evitámos sempre Pamplona por altura das largadas de touros. Aqueles primeiros meses encontram-se entre os tempos mais descontraídos que alguma vez tivemos — ou, posso afirmá-lo sem receio de me enganar, alguma vez teremos. O nosso afastamento do mundo adquirira uma lógica, uma consistência que teria sido impossível de conseguir em Portugal, onde familiares e amigos insistiam em intrometer-se na nossa vida. Em Espanha, estávamos sozinhos um com o outro, em território desconhecido, o que só servia para aumentar a nossa sensação de proximidade.

Passaram meses e tudo era exactamente como devia ser.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:44

Seg, 05/03/12

Folheio uma revista quando Susana se senta a meu lado no sofá. Fá-lo devagar, como se procurasse não me incomodar. A almofada afunda-se com um suspiro quase inaudível e um tinido metálico apenas ligeiramente mais forte. O televisor está desligado e ela deixa-o assim. Também não pega no livro que anda a ler, pousado na pequena mesa colocada entre o sofá e a TV. Fica apenas sentada, olhando em frente. Baixo a revista. Rodamos a cabeça simultaneamente. Olhamo-nos nos olhos. Ela diz: «Tenho que falar contigo.» Parece cansada. Não é novidade – há pelo menos dois anos que não é novidade. Trata-se de um cansaço denso e triste que suponho partilhar. Mas hoje qualquer coisa está diferente. A postura é mais rígida, a voz tem pequenas oscilações, o medo nos olhos está mais brilhante. A relutância que é agora habitual, mesmo quando nada diz ou faz, a reserva que passou a fazer parte dela, uma área restrita a que não consigo aceder, está mais intensa. É como se tivesse acabado de espreitar por uma porta entreaberta e assistido a uma cena perturbante que preferiria não ter de partilhar comigo. Sinto mais perplexidade do que receio, em grande medida porque o nível de receio já não apresenta flutuações significativas. A perplexidade, essa é fácil de explicar: por esta altura, nenhuma visão deveria surpreender Susana. Como sucede comigo, todas lhe deviam ser familiares. É talvez por estar a pensar nisto que não reajo às palavras que se seguem. Não de forma visível, pelo menos. A frase – curta, entoada tanto com os olhos como com a boca – permanece entre nós. Consigo vê-la, o ar quente e adocicado dos pulmões de Susana formando as palavras «Estou grávida» como nuvens ténues em céu limpo. As palavras começam a girar, primeiro devagar, depois cada vez mais depressa até serem apenas uma mancha que me entontece e faz ter vontade de vomitar.

 

A gravidez decorreu sem problemas, excepção feita à sensação incómoda de que a nossa vida estava prestes a mudar. Suponho que todos os casais em vias de trazer o seu primeiro filho ao mundo têm essa sensação. Porém, duvido que encarem o facto como uma ameaça tão monumental como Susana e eu encarávamos. A nossa relação estava fortemente ancorada em nós os dois. Desde o momento em que decidíramos viver juntos havíamo-nos dedicado a criar um casulo à nossa volta; dentro dele estávamos confortáveis, quase sem noção do que se passava no exterior. Vivíamos numa bolha transparente ligada ao resto do universo – ao universo dos outros – por três ou quatro canais estreitos. Era assim que desejávamos; era assim que nos sentíamos bem. Isto tornou-se especialmente verdade após a mudança para Espanha. As nossas famílias estavam noutro país, tal como os poucos amigos a quem ainda se podia aplicar a classificação. Esta criança era um ponto de viragem e um teste.

Nunca considerámos a hipótese de efectuar um aborto – juro-to, Patrícia. Tínhamos apenas medo de não conseguirmos ser o tipo de pais que qualquer criança merece e que uma criança nos afastasse um do outro: inevitavelmente, o foco que cada um de nós apontava ao outro, e apenas ao outro, iria mover-se para, ou alargar-se a, uma terceira pessoa – ainda que, na realidade,  essa pessoa fosse parte de nós.

 

Adorávamos o país basco – ou, para ser mais preciso, Navarra. Por causa da paisagem, por causa da liberdade de ninguém nos conhecer ou chatear, por causa da maneira de ser dos bascos, orgulhosos, bruscos, eles próprios reservados. A decisão de nos mudarmos não fora fácil. Depois de sair da universidade com uma licenciatura em engenharia mecânica trabalhei quase cinco anos numa fábrica de aglomerados de madeira. Não fazendo ondas e mostrando disponibilidade constante, subi rapidamente de estagiário a director-adjunto da produção. Quando a companhia proprietária da fábrica adquiriu um grupo espanhol do mesmo sector, fui convidado para liderar o projecto de modernização de uma das fábricas espanholas. Seria uma mudança temporária – um ano, catorze meses no máximo –, durante a qual supervisionaria o desmantelamento da velha prensa de oito pisos, a transferir para África, e a instalação de uma nova prensa contínua de trinta e cinco metros de comprimento. Era um projecto aliciante que, por causa de Susana, eu não desejava integrar. Contudo, sabia não poder recusar a oferta mantendo esperanças de subir na hierarquia da empresa. Há oportunidades que são testes. Recusá-las equivale a falhá-los. E, no fim de contas, era uma promoção.

Susana reagiu mal. Andou deprimida durante vários dias mas, no final, acabou por assumir a decisão – por lhe parecer a escolha racional e por medo: por medo de que, apesar das minhas garantias de que não tinha vontade de aceitar a oferta, eu a viesse a culpar no futuro por tê-la recusado. (Nunca o faria.) Quando ela disse: «Acho que deves ir», senti medo. Enquanto ela fosse contra, eu podia evitar analisar a minha própria vontade que, de resto, se contradizia a cada instante. Aceitei. Por cobardia. Na esperança de que tudo acabasse por dar certo.

(Não sou religioso ou, pelo menos, para grande desilusão dos meus pais, não acredito verdadeiramente num Deus omnisciente mas não posso evitar pensar como as coisas acabaram por corresponder aos receios de Susana: arrependo-me hoje de ter aceitado o convite e suponho que a poderia culpar pela decisão e, por conseguinte, por tudo o que se seguiu – mas não o farei. Não a culpo por nada.)

Nos primeiros tempos estava sozinho e estar sozinho era uma situação a que já não me encontrava habituado. Susana e eu não nos separáramos por mais de um dia completo desde muito antes do nosso casamento. Talvez seja por isso que não consigo recordar esses meses com nitidez: parecem-me um amontoado de dias iguais, em que nada sobressai. Como se, por terem sido passados longe de Susana, os tivesse arrumado num baú de coisas sem importância. Ou talvez a intensidade do que se passou depois tenha obliterado o que ocorreu antes. Ou, ainda, talvez esteja apenas a dramatizar, a recusar acontecimentos e pormenores perfeitamente banais. Faço isso, por vezes. Seja como for: aqueles meses foram uma época de trabalho intenso, em que passei mais horas na fábrica do que fora dela, em que, a cada manhã e a cada noite, passava longos períodos ao telefone com Susana. Nunca parecia haver algo verdadeiramente significativo para dizer mas não creio que alguma vez nos tenha faltado assunto. Regressava a Portugal um fim-de-semana por mês. Abraçava e beijava Susana com uma alegria temperada pela sensação de desperdício, de tempo perdido. Esforçávamo-nos para que os fins-de-semana fossem aproveitados ao máximo mas havia sempre a sensação de que tudo era a prazo. Quase não saíamos de casa. Por vezes, nem chegava a visitar os meus pais. Ficavam irritados e demonstravam-no nas conversas telefónicas e nos encontros seguintes. Pouco me importava. (Quanto aos pais de Susana, a mãe morrera anos antes e o pai não fazia questão de me rever, nem eu a ele.) Eu e Susana fazíamos amor com uma intensidade – e ferocidade – que nunca havíamos experimentado. A despedida, no domingo à noite, era o momento mais doloroso. Por várias vezes pedi a Susana que não se deslocasse ao aeroporto. Nunca acedeu. Em todos essas despedidas, em todos esses fins-de-semana, lamentei a decisão de ter aceitado o convite. A minha vida em Espanha, por absorvente que o trabalho fosse  (e tem de ser esta a razão para o período me surgir indistinto), não existia. A minha vida estava aqui.

(Posso estar a exagerar. Posso estar a ser insuportavelmente romântico. E então? Pobre de quem nunca experimentou algo assim e se vê impelido a desdenhar. No que a mim e a Susana diz respeito, aquele período foi o segundo mais duro da nossa vida. Nem a adolescência, não propriamente simples para qualquer de nós, se lhe comparou. Mas aqueles meses serviram igualmente para reforçar a força cósmica – amor, na falta de termo menos gasto – que nos unia.)

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 13:42

Qua, 29/02/12

«Já te apaixonaste?»

«Muitas vezes.»

«Como é que consegues, com essas teorias? Afinal, sabes que a coisa está condenada ao fracasso.»

«'Fracasso' é o que tu lhe chamas. A paixão é um estado transitório sem prazo definido. Eu limito-me a aceitar que tem prazo.»

«Convém que elas também o aceitem.»

«Comigo, aceitam sempre. Aliás, com frequência são elas quem chega à conclusão de que o prazo foi atingido. As mulheres não são más nessas coisas. Mas na maioria das vezes nem me apaixono por uma mulher completa e sei imediatamente que aquilo vai durar pouco.»

«O que diabo queres dizer com isso?»

«Apaixono-me por um sorriso, uma frase, um par de mamas. As mulheres são sempre menos interessantes do que as suas melhores partes.»




José António Abreu @ 21:18

Ter, 28/02/12

Gostava de a ter matado. Teria sido preferível. Não precisaria agora de sentir, para além da dor da perda, o ferrão da cobardia. Ela ter-me-ia agradecido. Não de viva voz, porque no último par de meses já não conseguia falar, mas com um olhar. O último. Devia tê-lo feito logo que se tornou demasiado doloroso para ambos. Quando perdeu a capacidade de falar, talvez. De que serve um corpo que não se consegue exprimir a não ser pelo olhar? Fechado, contra vontade, em si mesmo. Sim, esse teria sido um bom momento para o fazer. Por que não mo pediu, antes, enquanto podia? Não por motivos religiosos, certamente, que nem naquela fase terminal ela acreditava em Deus e muito menos acreditava que a vida deve ser sempre suportada até ao seu fim natural. Só pode ter sido para me poupar. Para não colocar o peso da sua morte sobre os meus ombros – mais uma razão para eu agora sentir culpa.

Mas na altura eu amava-a. E ainda não matava ninguém.




José António Abreu @ 08:42

Qua, 08/02/12

Obsessivo, sabia tudo sobre o amor. Lera imenso acerca do assunto. Vira centenas de filmes. Escrutinara a letra de inúmeras canções. Apesar disso, as relações nunca lhe duravam. Pensara e voltara a pensar e chegara a uma conclusão: a probabilidade de encontrar uma mulher com o mesmo grau de compromisso com a paixão enquanto objectivo de vida que ele tinha era infinitesimal. Inferior a ganhar o euromilhões. Provou-o começando a jogar no euromilhões e obtendo o primeiro prémio três anos depois, após mais um par de relações falhadas. Mas provou-o à justa, uma vez que logo a seguir começou finalmente a encontrar mulheres que pareciam dispostas a tudo para ficar junto dele para sempre.




José António Abreu @ 23:11

Ter, 07/02/12

Digo-lhe: «Não admira que não sejas casado.»

«Por acaso, até admira.»

«Com essas ideias?»

«Precisamente. A maioria das pessoas casa na ilusão de que, fazendo-o, pode escapar a ideias como estas. Depois passa a vida a escondê-las do parceiro.»

«Ora.»

«As ilusões românticas duram pouco. Olha para o lado – o que vês? Casamentos de fachada. Idas ao shopping e uma quinzena no Algarve em Agosto. E montes de ideias como as minhas, escondidas na rotina e nas convenções. O casamento é uma tentativa, ingénua ou estúpida (se é que uma coisa não equivale à outra), de não as enfrentar.»

«Caramba, não consegues ter um pensamento optimista?»

«Consigo.»

«E?»

«Nada. Consigo.»




José António Abreu @ 08:40

Qua, 18/01/12

«A coisa de que Amílcar Tinoco mais tinha orgulho na vida era um garanhão chamado Pégaso. A segunda, uma égua chamada Epona (ele tinha a mania de escolher nomes da mitologia que ninguém por aqui entendia). Com uma ajudinha de Pégaso, ela trouxera ao mundo dois dos cavalos que mais lucro lhe tinham proporcionado. A terceira coisa de que ele mais se orgulhava era um podengo alentejano chamado Tejo (os cães não lhe mereciam as mesmas honras que os cavalos). A quarta era a herdade, a quinta, o muito dinheiro que tinha, a sexta, a filha, a sétima, a amante, a oitava, um bom copo de vinho, a nona, o filho, e a décima talvez fosse a mulher. Toda a gente o sabia e, se quanto à ordem dos últimos pontos ainda podia haver discussão, os primeiros dois eram evidentes para qualquer pessoa.»

«Já sei isso tudo. E depois?»

Encolho os ombros. Ele tem quarenta e sete anos mas continua a pessoa totalmente incapaz de raciocinar para além do que lhe dizem (ou seja, de raciocinar, pura e simplesmente) que sempre foi. Deve dizer algo sobre mim ter gerado um filho assim. Se bem que – convém não esquecer – a mãe também nunca teve imaginação ou queda para raciocínios elaborados. Coisa que, no caso dela, até calhava bem. Serafim (nunca gostei do nome mas Alice insistiu – «apesar de tudo, era o nome do meu pai, coitado») deve ter saído a ela. Não na beleza, porém. Alice aguentou-se até ao fim com uma aparência invejável e uma quantidade surpreendentemente baixa de rugas, até mesmo no pescoço, a zona onde quase toda a gente acaba por parecer um peru. Sei que estou pior do que ela estava. Pior do que ela estava há dez ou quinze anos, até. Careca, barrigudo, com pêlos saindo-me das narinas e das orelhas que não vale a pena cortar (voltam passados dias, se não horas), expressão de permanente resignação que a maioria (este idiota do meu filho, por exemplo) toma por mau humor. Estou acabado. Mas permaneço vivo.

Estamos sozinhos na sala. A mulher dele – uma lisboeta magra que se diz gestora e que quando não é histérica se limita a ser incoerente – seguiu para Lisboa de comboio. Por causa das crianças, disse. Duas raparigas, de onze e nove anos, a caminho de serem tão tontas quanto os pais. (Mas adoro-as, atenção – que alternativa tenho?) Serafim insistiu em passar cá a noite – «Não aceito que fiques sozinho.» Ora merda. Como se fosse mais fácil estando com ele. Expliquei-lhe que amanhã ao nascer do Sol já aqui estarão várias pessoas, dentro de casa e lá fora, a tratar dos animais. Nada feito. «Não quero que passes o tempo a pensar na mãe», explicou. Que mal faria? Seria melhor do que aguentar este arremedo de conversa. E Alice merecia que se pensasse nela. Podia não ser imaginativa mas era prosaica e sensata. Serafim também se acha sensato (ser ou não prosaico nunca lhe deve ter passado pela cabeça) mas é apenas chato.

«Sempre deixaste entender que havia mais qualquer coisa por trás da forma como vocês acabaram por casar», diz ele. Está sentado num dos sofás individuais que, de repente (constato-o com um choque que por instantes me leva a não processar as palavras dele), me parecem extraordinariamente antigos, apesar de Alice e eu os termos comprado ainda nem há dez anos. E então percebo que tudo ficou umas dezenas de anos mais velho nas últimas vinte e quatro horas, incluindo eu.

Tento lembrar-me do que ele disse.

«Não deixei entender nada», respondo. «Disse-to uma vez, tinhas tu dezoito anos.»

Permite-se um sorriso. Tem um copo na mão. Foi buscá-lo logo que chegámos. Despejou dois dedos de whisky lá para dentro e veio sentar-se. Agora mantém-no suspenso sobre o braço do sofá. Uma pose, toda a sequência. Influenciada por filmes americanos e por telenovelas que os copiam. Uma cópia em terceiro grau, portanto.

«Por causa da Francisca. O que é feito dela?»

«Casou, emprenhou, engordou. Mais ou menos o mesmo que tu. Excepto a parte do emprenhar.»

«Hoje podes dizer o que quiseres, eu recuso chatear-me.»

«Ora merda, então onde está a piada?»

Cumpre a promessa e ignora a provocação, o balofo bastardo – não, bastardo não, que ele é de facto meu produto infeliz. Quem diria que os meus genes, misturados com os de Alice, dariam nisto? Bom, convenhamos que, apesar do código genético dele poder ser mais parecido com o meu (e com o dela) do que com o de qualquer outro ser humano, não deixa de ser quase tão parecido com o de um orangotango como com o nosso.  

«Numa coisa tinhas razão. Disseste-me que eu não a amava.»

«Disse-te que não sabias o que era o amor.»

«Isso.»

«E ainda não sabes.»

«Não comeces. Eu e a Liliana damo-nos muito bem.»

«Excelente.»

«Achas mesmo que a tua relação com a mãe era diferente? Só por causa das dificuldades que o pai dela vos causou?»

«Não, não é só por isso.»

«Então?»

Como é que se consegue que um idiota sem imaginação perceba que a realidade era muito diferente quando ele ainda nem na fase de espermatozóide se encontrava? Como é que se descrevem as décadas de cinquenta e sessenta do século passado numa povoação atrasada de um país atrasado a um frequentador de centros comerciais e praias algarvias?

«A minha relação com a tua mãe assentava em esforços e sacrifícios que tu nem consegues imaginar.»

«Sempre achei piada às tuas tentativas para vos fazer passar por Romeu e Julieta. Quer dizer, às vezes só achava ridículo.»

«Romeu e Julieta… Não é tão descabido como pensas.»

«Vocês não morreram por amor. Aliás, duvido que fosses capaz de morrer por amor.»

«Ai achas? Bom, talvez tenhas razão. Nunca o faria havendo outras possibilidades.»

Consulta o relógio. «Vou para a cama», diz.

Devia deixá-lo ir. Devia deixá-lo ir dormir e amanhã seguir para Lisboa e voltar à sua vidinha modorrenta, ao lado da mulher que conheceu num escritório, que atraiu com meia dúzia de lugares-comuns, com quem foi para a cama ao segundo ou terceiro encontro, cujos pais sorridentes encontrou pela primeira vez depois de ir para a cama com ela, e que ama o suficiente para, de longe a longe, aceitar ser arrastado para duas horas de O Lago dos Cisnes no Coliseu ou para uma exposição de garrafas vazias penduradas do tecto no Centro Cultural de Belém. Em vez disso, digo:

«Eu era filho de camponeses analfabetos e, ainda por cima, o teu avô tinha fama de bêbado – e de comunista. Apesar de beber e de não gostar do Salazar, não era nem uma coisa nem outra. Eu tinha feito a quarta classe mas trabalhava a tratar de cavalos e vacas e nunca havia de fazer outra coisa. O teu avô Serafim tinha terras, gado, considerava-se um latifundiário. Queria lá um vagabundo como eu para genro.»

«A mãe também só tinha a quarta classe.»

«De onde já podes ver a mentalidade dele. Podia tê-la mandado estudar. Mas era mulher, não valia a pena. Tinha era de lhe arranjar um marido decente. E eu nunca o seria.»

«Caramba, postas as coisas assim, parece que vivias na Idade Média!»

E é este gajo licenciado em direito. O meu filho. Incapaz de ver um palmo à frente do nariz. Nascido numa década de sessenta em que efectivamente muitas zonas deste país de merda mal tinham saído da Idade Média mas sem qualquer noção disso; sem qualquer noção de que o mundo em que se tornou adulto era já um mundo diferente. E, no fundo, por que haveria de a ter? Para os padrões locais, cresceu rico, sem preocupações. Teve brinquedos e televisão, foi ao cinema, desfrutou de viagens frequentes a Lisboa. Nunca pegou numa enxada a não ser para fingir que cavava. No passado, tentei muitas vezes que o percebesse, para grande ofensa dele e grande aflição da mãe. Desta vez fico calado.

Ele abana o copo com o whisky e diz: «Uma coisa que sempre estranhei é que gostavas mesmo dela.»

Ignoro a provocação – que mostraria alguma capacidade de raciocínio não fosse a constatação de duas realidades óbvias para qualquer pessoa que alguma vez tenha passado dez minutos comigo e com Alice: a de que a amava e a de que sempre fui um sacana – e centro-me no essencial. É verdade. Amava-a. Durante uns tempos cheguei a pensar fazê-lo por não querer admitir ter feito um mau investimento. Afinal, consegui-la exigira tanto. Mas não; amava-a e pronto, vá-se lá saber porquê. A explicação mais cínica que consigo arranjar, e se calhar também a mais realista, é que sou demasiado teimoso para mudar de ideias. Se aos vinte anos decidi amá-la, era para continuar a fazê-lo até ao fim. E foi.

«Porquê? Não tenho capacidade para amar?»

A mão dele imobiliza-se mas o whisky fica ainda a rodar dentro do copo.

«Para ser sincero, era isso que parecia na maior parte das vezes.»

«Óptimo, alguma sinceridade, finalmente.»

«Nunca tivemos conversas destas.»

«E tens pena?»

Ele fica a pensar na resposta e eu aproveito para continuar: «Outra coisa que toda a gente sabia é que Tinoco era amigo do Salazar. E outra ainda…»

«Por que é que insistes nessa história? O que me interessa o Tinoco? Sei perfeitamente o que se passou.

«Outra ainda é que era um sujeito que fervia em pouca água. Detestava ser contrariado e zelava pelos seus interesses de uma forma quase maníaca. Uma vez apanhou um sujeitinho de Lisboa debaixo de uma azinheira a tentar desempenhar o papel do Pégaso com a filha dele (a tentar cobri-la, para pôr as coisas de forma que não te faça pensar muito) e deu-lhe um tal enxerto de porrada que o rapaz, que tem hoje a minha idade, continua a coxear lá pelas calçadas de Lisboa.»

«Sim, e então?»

«Então o Tinoco detestava o teu avô e o teu avô detestava o Tinoco. Questões de terras e de política. As coisas andavam de tal maneira que o Tinoco tinha morto a tiro um cão do teu avô que lhe apareceu lá perto de casa e ainda se gabou do feito.»

«Eu sei, e então o cavalo apareceu morto e o Amílcar Tinoco, convencido do que tinha sido o meu avô a mandar matá-lo, matou o avô. Já sei isso tudo. Ouvi a história milhares de vezes. E então?»

Ignoro-o.

«Com uma forquilha espetada na barriga. Os dentes da forquilha tinham sido afiados com uma lima. Foi descoberto de manhã, já morto, mas deve ter agonizado durante horas. Ninguém conseguiu segurar o Tinoco. Pegou na pistola e partiu à procura do teu avô. Quase nem o deixou falar. Meteu-lhe uma bala na cabeça e mais duas no peito, as do peito já depois de ele estar no chão. Pelo menos morreu mais depressa do que o cavalo.»

«A tua indiferença é comovedora.»

Uma tentativa de humor. Quase sorrio. Este idiota, que se leva sempre tão a sério, escolhe este preciso momento para tentar uma piada.

«Por que é que havia de fingir tristeza?»

«Era o pai da mulher com que querias casar. O meu avô.»

«Nem mais. O único impedimento ao nosso casamento. Por que é que eu havia de estar triste?»

A compreensão chega-lhe aos olhos como uma cortina semitransparente descendo sobre uma janela. Tem uma certa piada. A compreensão devia iluminar, não escurecer.

«Não estás a falar a sério.»

«Eu lá costumo brincar. Ainda por cima, hoje.»

«Foste tu quem matou o cavalo?»

Encolho os ombros. «Nunca ouviste dizer que na guerra e no amor vale tudo? Quando o amor é a sério, claro.»

A noite de Lua Nova, em meados de Agosto, estava escura, apesar do céu estrelado, e quente, muito quente – abafada como um quarto fechado. Eu transpirava enquanto deslizava pela propriedade de Amílcar Tinoco, fazendo uma volta para não alertar os cães. Levava na mão a forquilha preparada de véspera e usá-la-ia neles, se fosse preciso, mas preferia evitar o ruído. Não sentia medo. Tinha um objectivo e sabia como o atingir. Trabalhava lá, conhecia o terreno, os edifícios, o cavalo. O que poderia correr mal? Nada. E nada correu mal. Correu tudo conforme esperara. A morte do cavalo, que tombou à segunda vez que o espetei com a forquilha e ficou a estrebuchar quase em silêncio, a reacção do Tinoco, o fim do cabrão do velho que não me deixava aproximar de Alice, a ideia generalizada de que tinha sido mesmo ele o responsável pela morte do cavalo (a descoberta da forquilha com os dentes afiados num barracão da propriedade ajudou). Tudo perfeito, então e em todos os anos que se seguiram. O único momento em que senti uma ponta de remorso foi ao ver Alice chorar a morte do pai. Mas passou-me depressa.

Ele levanta-se, ainda a segurar o copo de whisky. Parece-me que a mão lhe treme mas pode ser impressão minha. Já não tenho tantas certezas como quase toda a gente – incluindo este meu filho – julga que tenho. Mas dá-me ideia que disfarço bem.

«A mãe sabia?»

«A tua mãe nunca teve grande imaginação. Como tu.»

Levanta-se. Procura um lugar onde pousar o copo. Diz: «Vou-me embora.»

«Tem cuidado na estrada.»

«És um filho da puta.»

«Não, isso não. A tua avó só teve relações com o teu avô e desconfio até que ele nunca a viu nua.»

Ele parece querer falar mas não saber o que dizer (caralho, não é meu filho e, para mais, advogado?). Desiste. Encaminha-se para a porta. No caminho, pousa o copo junto ao televisor desligado. Pára. Roda. Pergunta: «Só mais uma coisa: valeu a pena?»

Olhamo-nos nos olhos.

«Diz-me tu. Não existirias se eu não o tivesse feito.»

Consegue empalidecer ainda mais um pouco. Abana ligeiramente a cabeça, roda outra vez e sai, deixando a porta da sala aberta.

Permaneço sentado. Ouço o ruído da porta da rua e, segundos depois, o do motor do carro. Acho que não penso em nada enquanto o som do motor e dos pneus no cascalho se desvanece. Depois disso, o silêncio parece absoluto. A casa está fria e vazia. Os animais estão calados. Nem o frigorífico, na cozinha do outro lado do corredor, emite o zumbido do costume. Fico sentado durante muito tempo. Podia ir para a cama mas ainda é cedo. De qualquer modo, Alice não vai lá estar à minha espera. Não vai queixar-se de eu demorar, nem dizer que não consegue adormecer antes de eu chegar, nem aquecer os pés nos meus, nem passar a noite toda a acordar e a virar-se na cama porque eu ressono como um motor de rega. Respondo à pergunta que o meu filho me fez: sim, valeu a pena. Até hoje – até ontem – valeu a pena. Depois, cedo ou não, levanto-me e vou para a cama.




José António Abreu @ 12:47

Qui, 05/01/12

Veste uma t-shirt preta com a frase Don't Give Up estampada na parte frontal. As letras, douradas, constituídas por pontos individuais, brilham ao serem atingidas pelas luzes do bar quando ela se move. Penso em Kate Bush mas apenas durante um instante. Aproximo-me. Meto conversa. Não se mostra interessada. Insisto. Adaptando uma frase de uma das melhores letras que Bono alguma vez escreveu, digo-lhe: «You lips say one thing, your t-shirt something else.» Sorri. Murmura: «A t-shirt é emprestada.» Mas deixa-me pagar-lhe uma bebida.

Três horas mais tarde, no meu quarto, junto à cama, tento despir-lhe a t-shirt mas ela impede-me. Aceita que lhe tire o soutien e o resto da roupa mas não a t-shirt. É-me indiferente. Tombamos na cama.

Minutos depois, estendidos de costas, recuperamos o fôlego. Ela puxa a t-shirt para baixo, cobrindo ancas e sexo, e diz: «Sabes, a frase?» Rodo a cabeça e releio-a. «Sim?» Larga a t-shirt, cujo extremo inferior sobe até acima do umbigo. «Afinal, é pena que nem sempre seja levada a sério.»




José António Abreu @ 21:23

Dom, 18/12/11

O meu avô Carlos era viciado em automedicação. Experimentava tudo ao mais leve sintoma. Ultimamente, por causa das hemorróidas – reais, creio –, andava a tomar Trifene 200. Dizia que os resultados eram espectaculares. O meu pai murmurava: «Só espero que aquilo não tenha efeitos esquisitos. Que não lhe faça crescer as mamas ou coisa parecida.» A minha mãe encolhia os ombros, suspirava e dizia: «É um analgésico, não lhe faz mal nenhum.» Mas o meu pai não ficava sossegado. «Por alguma razão o publicitam para o que publicitam», resmungava. No fundo, ainda que recusasse admiti-lo, o medo dele era que, em resultado do Trifene 200 e aos setenta e seis anos de idade, depois de uma vida de facadas no matrimónio (que o meu pai não conseguia deixar de invejar), o meu avô se tornasse subitamente homossexual.




José António Abreu @ 13:14

Qua, 14/12/11

O Sr. Marques aprendera tarde a navegar na Internet. E durante uns tempos limitara-se a aceder ao Sapo, à Wikipedia e a sites de notícias. Não a usava para compras por achar todo o processo muito complicado e ter medo de indicar o número do cartão de crédito e nem sabia o que eram blogues. Só depois, quase por acaso (lera que a palavra mais pesquisada na Internet era «sexo» e resolvera experimentar), descobrira os sites de sexo. A mulher ainda estava viva quando isso sucedera mas tornara-se óbvio que já não duraria muito – ainda assim, o Sr. Marques sentia alguns remorsos quando, a meio da noite ou nas ocasiões em que ela estava no hospital em tratamentos, acedia àqueles sites. Mas depois, respeitando de forma escrupulosa as previsões dos médicos, ela morrera e tudo se tornara mais fácil. O Sr. Marques já não precisava de esconder o que fazia. Mesmo assim, durante muito tempo ainda sentira vergonha e até um certo receio de que alguém estivesse a observá-lo ou pelo menos a registar todos os seus passos através dos sites da Hustler, da Private ou da Vivid. A passagem de meses e depois anos sem que nada de especial acontecesse (excepto ter passado a receber dezenas de mensagens por semana na sua caixa de correio electrónico propondo-lhe métodos para aumentar o tamanho do pénis) acabaram por dar-lhe alguma tranquilidade. A certa altura, o Sr. Marques decidira usar o cartão de crédito mas depressa chegara à conclusão de que não compensava: o que se obtém de graça na Internet é mais do que suficiente. Na realidade, é ainda melhor do que o que se obtém pagando porque o Sr. Marques percebera entretanto que preferia sexo amador e este encontra-se facilmente de borla (quem faz as coisas por prazer, pensa o Sr. Marques, nem sempre tem noção do que elas valem). O sexo entre amadores parece-lhe mais real – logo, mais profissional – do que o sexo entre profissionais. De resto, já quase não se encontram profissionais (mulheres, entenda-se) sem implantes de silicone ou com vestígios de pêlos nas zonas íntimas e o Sr. Marques, nada tendo contra a evolução das preferências estéticas, apoiadas ou não em avanços tecnológicos, aprecia variedade. Consegue-a com os vídeos de sexo entre amadores, que só têm o defeito de serem frequentemente filmados em plano fixo e a uma distância que não permite distinguir pormenores. Mas não faz mal. É uma questão de ir procurando até encontrar os melhores  – o Sr. Marques tem tempo e, após uma distracção que lhe saíra cara, mudara o tarifário de acesso à Internet para uma opção sem limites de downloads. Para sua surpresa, descobrira existirem tantos vídeos de sexo entre amadores na Internet como de sexo entre profissionais. Mais, até. Milhares e milhares deles. Parece ao Sr. Marques que toda a gente que faz sexo (não é o caso dele, infelizmente, pelo menos sexo acompanhado) coloca um vídeo do acto na Internet. E isto cria-lhe um problema inesperado. Ao caminhar pelas ruas, observando as mulheres com quem se cruza, o Sr. Marques não consegue deixar de pensar, especialmente quando se depara com uma vestida de forma provocante, se terão vídeos na Internet – ou até, como complemento de salário, um daqueles sites pessoais Olá, Kátia está online neste momento. Sabe que é errado mas às vezes, seguindo-as com o olhar, sentindo um frémito por todo o corpo com incidência especial numa área específica, acaba a disparar mentalmente: «Cabra!» Depois vai para a ginástica. Esforça-se particularmente nessas sessões. Transpira e arfa, de dentes cerrados, consciente como nunca da presença de todos aqueles corpos femininos, bem torneados e tonificados, à sua volta.




José António Abreu @ 23:08

Ter, 13/12/11

 «Então não acreditas no amor eterno?»

«Por uma mulher, não. Acredito no amor eterno por outras coisas.»

«Outras coisas

«Por coisas, pronto. És muito sensível, tu.»

«Só junto de ti. Exactamente o que é que queres dizer com isso?»

«É possível gostar de um livro ou de um filme ou de um carro para sempre. Fazê-lo só depende de nós; eles não mudam.»

«Preferes então que não te questionem?»

«Não. Os livros e os filmes colocam questões» Afaga o copo de cerveja. «Mas prefiro coisas que me deixem responder.»




José António Abreu @ 18:43

Qua, 30/11/11

Passaram dois meses. São sete e meia da noite. Ela chega a casa, pousa a carteira e a pasta com o computador portátil no chão da entrada, tira os sapatos e, descalça, vai à sala meter um disco no leitor de CDs. Jazz, clássica, qualquer coisa suave. Carrega no botão que liga o amplificador e tem um instante de imobilidade até ouvir o estalido indicador de que ele está pronto a funcionar. Não regula o volume. Enquanto a música arranca volta à entrada, pega nos sapatos e segue para o quarto. Troca a saia, a blusa e o casaco por uma t-shirt e umas calças de desporto. Entra na casa de banho, urina, tira a maquilhagem, lava a cara, coloca creme hidratante e anti-rugas. Regressa ao quarto. Arruma os sapatos numa caixa que mete dentro do roupeiro. A música mal se ouve. É um ruído de fundo, um murmúrio que parece chegar do apartamento de um vizinho. Ela pensa em deixar-se cair sobre a cama mas não o faz. Caminha de novo em direcção à entrada. A cada passo, a música vai ficando mais intensa. Ela passa em frente da porta da sala e segue para a cozinha, onde a intensidade é outra vez mais baixa, embora não tanto como no quarto. Tira um copo de um armário e enche-o até meio com um pacote de sumo de laranja que retira do frigorífico. Bebe. Pensa em jantar mas não tem fome. Mais tarde. Recoloca o pacote de sumo no frigorífico. A cozinha está fria, desagradável. Ela caminha até à sala. Percebe que não está muito melhor. É como se, na dúzia de horas em que esteve ausente, o apartamento tivesse adquirido as características de um espaço abandonado. Liga o aquecedor existente numa das paredes, ao lado da mesa de jantar. Senta-se no sofá, directamente em frente do televisor. Por baixo deste, numa prateleira larga, colocados lado a lado, encontram-se o leitor de CDs e o amplificador. A cerca de um metro de cada lado do televisor estão as colunas, altas e esguias. Ela pega no comando da televisão mas não carrega em qualquer botão. Deixa-se ficar a ouvir a música. Olha ligeiramente para baixo e para a direita, para o sítio onde está o amplificador. Não relembra as discussões. Ou talvez o faça, de um modo difuso. Os homens e as suas ridículas prioridades. Dois mil euros por um paralelipípedo de metal cinzento-escuro cuja função ela nem percebe bem. Amplifica o sinal que recebe do leitor, dizia ele, e envia-o para as colunas. Ela anuía com a cabeça, sem prestar verdadeira atenção. Sabia apenas que, entre leitor de CDs, amplificador e colunas ele tinha gasto mais de cinco mil euros. O amplificador havia gerado as maiores tensões porque fora a última peça, tendo substituído um outro, muito mais barato, que ele possuía desde os tempos da universidade.

Amplificador. Murmura a palavra no interior da cabeça, separando-a em duas. Amplifica dor. Agora sim, relembra as discussões. Quase sempre sem gritos, frequentemente em silêncio, discussões por gestos deliberados e expressões sofridas, numa tensão pesada e enjoativa. Um mundo de acusações e ressentimentos. Ao longo dos anos (poucos anos, na verdade) haviam-se tornado especialistas em acusações e ressentimentos. Com ou sem razão de ser, havia deixado de importar. O tempo encarregara-se de fazer diminuir a relevância daquilo que o outro efectivamente pensava e sentia. É inevitável, reflecte ela agora: de «quero conhecer-te» passamos para «já te conheço e não gosto do que vejo». E para «sei que também não gostas do que vês». Acusação e ressentimento. Os objectos haviam-se então tornado mais importantes, operando como escape e teste. Os dele: o sistema de som, a máquina fotográfica, o LCD gigante. Os dela: a roupa, os sapatos, os tratamentos de beleza. «Os meus vêem-se», dizia ele, «e tu também os utilizas.» Como o amplificador. «Também ouves música.» Ela resistira à compra do amplificador baseada numa lógica que tanto tinha toda a razão de ser como não tinha. Não precisavam dele, o outro ainda funcionava, os ganhos seriam mínimos. Mas ele não concordava e podiam comprá-lo sem dificuldades. Cansada, acabara por ceder. Acabava sempre. Mas, como noutros casos, nada ficara exactamente igual. Desde essa altura, sempre que estavam juntos na sala parecia existir um elemento acusador. Um post-it permanente. Quase uma terceira presença. E, de cada vez que punha um disco a tocar, ele parecia buscar, entre a agressividade e o receio, confirmação de que tivera razão. De que o som era muitíssimo melhor. Obviamente, ela não lha dava. Limitava-se a remeter-se ao silêncio. (Mas era um pouco melhor, na realidade.)

Agora, passados que são dois meses, ela chega a casa e liga o sistema de som. Durante o dia diz para si mesma que tem de o vender. Vender leitor de CDs, colunas e amplificador. Eliminar a sombra, o fantasma, a culpa. Mas ainda não consegue. É como se a prova da teimosia dele se tivesse transformado em algo de bom. Como se, agora, todas as recordações fossem boas ou, pelo menos, servissem um propósito. Sabe que tem de lutar. Que tem de ultrapassar esta fase. Olha para a pasta que ficou na entrada, dentro da qual está o computador portátil. Depois roda a cabeça novamente, apoia-a nas almofadas do sofá e fecha os olhos. Amanhã. Amanhã procurará um site onde se vendam coisas destas.




José António Abreu @ 08:29

Ter, 22/11/11

Estranhámos porque Júlio sempre preferira raparigas gordas. De resto, antes havíamos estranhado essa sua preferência. E, já depois de nos habituarmos, permaneceu uma réstia de incompreensão. Éramos cinco desde o primeiro ano de universidade. Júlio, um tipo alto e magro (e muito peludo; quando, nos meses de calor, estudava em calções e blusa de alças lembrava uma tarântula) atirava-se sempre a raparigas gordas. «Por que raio é que as preferes?», perguntávamos-lhe. «É como aquela teoria sobre as feias – aplicam-se mais?» Ele sorria e dizia que não. Que era mesmo preferência. Que gostava de ver «as carnes a abanar». «Vocês nem imaginam o espectáculo que é uma mulher gorda a ter um orgasmo intenso.» Não era verdade: os trejeitos de horror que fazíamos deviam-se precisamente ao facto de nos encontrarmos a imaginá-lo. Mas Júlio estava-se nas tintas para as nossas reacções. Continuou sempre a andar com raparigas nunca menos que gordinhas e quase sempre inegavelmente obesas. Lembro-me de uma – Marta? Márcia? – que ria por tudo e por nada, e cujas gorduras tremiam tanto de cada vez que ria que eu não conseguia parar de a imaginar tendo um orgasmo. Era perturbador mas, ao mesmo tempo, ligeiramente excitante: as semanas em que Júlio andou com ela constituíram provavelmente o período em que estive mais perto de lhe entender a preferência. No início, algumas raparigas estranhavam o interesse dele mas Júlio acabava por convencê-las de que as achava atraentes – porque a verdade é que achava mesmo. O desconforto delas passava então a reflectir-se na forma como lidavam connosco, os amigos de Júlio, e com as nossas companheiras. Sei que a maioria não gostava de mim, achando-me pouco simpático. Eu não desejava transmitir-lhes essa ideia mas a verdade é que me sentia sempre ligeiramente desconfortável junto delas e isso fazia-me permanecer em silêncio, com ar comprometido. No fundo, tinha medo de dizer algo que revelasse a minha incompreensão, até porque muitas, sendo raparigas divertidas e inteligentes, não o mereciam. E depois havia sempre a tal questão do orgasmo – de cada vez que alguém contava uma piada e elas riam, eu não conseguia deixar de as imaginar nuas, tendo um orgasmo, o que me fazia parar de rir imediatamente depois de começar e ficar com uma expressão ainda mais comprometida. Elas tomavam a minha reacção por sobranceria, tendo algumas chegado a comentar com Júlio que eu não possuía sentido de humor. Debati o caso com alguns dos outros e eles diziam que sentiam e pensavam o mesmo mas, na minha opinião, disfarçavam melhor.

Entretanto terminámos os cursos, deixámos a universidade e passámos a encontrar-nos menos regularmente. Alguns de nós casaram. Júlio foi a cada casamento com uma rapariga diferente, sendo que nenhuma pesava menos de setenta quilos (ao meu, levou uma sorridente mulata cabo-verdiana com ancas à Oprah Winfrey e mamas que pareciam produto da imaginação de um cartoonista delirante; ainda se fala dela em qualquer reunião da minha família ou da família da minha mulher em que o tema do nosso casamento seja abordado). É por isso compreensível que, no momento em que Júlio nos apresentou Alice (num jantar marcado por ele, obviamente para ver a nossa reacção) e nos informou de que iam casar, tenhamos ficado de queixo caído. Alice é uma das raparigas mais atraentes que já conheci mas, tendo de altura um metro e sessenta e pouco, não pesaria então mais do que cinquenta quilos. Aproveitámos uma ida dela à casa de banho para atacarmos Júlio com a questão evidente. A resposta foi tipicamente inesperada: «Isto é o casamento, não é uma coisa para durar três ou quatro meses.» Ficámos a olhar para ele com ar ainda mais espantado. Perguntei: «E?» Júlio presenteou-nos com o sorriso condescendente que aprendêramos a conhecer bem na universidade. Gozou o momento deixando passar uns segundos antes de responder: «E, assim sendo, prefiro engordá-la eu. Reparem: se já gosto dela agora, vou gostar cada vez mais à medida que for engordando.» Houve outro instante de silêncio e depois um de nós, já não sei qual, perguntou: «E se não engordar?». Júlio sorriu de novo, ainda mais abertamente. «Não há hipótese. Podem ter a certeza de que vai engordar. Em primeiro lugar, quase todas engordam; em segundo, há a questão genética (vocês não conhecem a mãe dela); e, em terceiro, eu vou encarregar-me disso. E reparem: à medida que for engordando, vai recear que eu deixe de gostar dela. E eu vou garantir-lhe, com toda a sinceridade, que gosto cada vez mais. Vamos ter uma relação em que eu vou gostar cada vez mais do corpo dela, que é exactamente o contrário do que costuma acontecer nos casamentos.»

Ficámos estupefactos mas não encontrámos buracos na lógica dele. Ainda assim, houve quem duvidasse que fosse avante. Mas foi. Casaram há perto de três anos e, apesar de ser cedo para verificar se o plano dele dá certo, continuam juntos e aparentemente felizes. Até agora, Alice engordou cinco quilos e às vezes lamenta-se do facto. Júlio beija-a ou aperta-lhe a mão e diz-lhe para não se preocupar. Depois sorri e acrescenta: «Amo-te cada vez mais e a margem de progressão continua enorme.»




José António Abreu @ 22:40

Seg, 21/11/11

Diz: «E houve a minha prima.»

«Fizeste sexo com a tua prima?»

«Arlete. Era bastante feiinha. Na verdade, ainda é mas agora já não fazemos sexo. O marido que trate do assunto, coitado.»

«E tens uma explicação?»

«Éramos miúdos. No início da vida sexual, a regra é só uma: arranja-se o que se pode. Aliás, muita gente nunca se liberta dela.»




José António Abreu @ 13:44

Qua, 16/11/11

Não duvido que as pessoas «normais» me consideram um monstro. Bom, na realidade não é bem assim. As pessoas «normais» que me conhecem (e «conhecer» também é o termo errado, claro) acham-me um tipo normal, provavelmente até mais simpático do que a maioria. Mas considerar-me-iam um monstro se soubessem o que faço a outras pessoas e, especialmente, o que lhes poderia ter feito a elas (uso o passado porque, obviamente, só o saberiam se eu tivesse sido apanhado). Isso não me incomoda. Não vou pôr-me aqui a discorrer sobre como, no fundo, as pessoas «normais» estão longe de serem assim tão normais nem sobre como as noções que têm na cabeça são preconcebidas, clichés absolutos implantados por pais e colegas, programas televisivos e jornais tablóides, mas sou incapaz de resistir a duas ou três linhas sobre o assunto. A «normalidade» é uma defesa contra o inesperado, contra dúvidas e medos e desejos inconfessáveis. O receio de sair da «normalidade» faz com que, mesmo entre «amigos» (a verdade exige tantas aspas…), raramente se discutam assuntos mais profundos do que o estado do tempo, a mais recente graça dos filhos ou a última polémica no futebol. Esta «normalidade» – que deveria antes chamar-se superficialidade – é alimentada pelos meios de comunicação social, necessitados dela para potenciar o efeito de choque nos momentos em que é quebrada. Notícia de Última Hora – Homem mata mulher e filhos à facada. E os telespectadores arrepiam-se e abanam a cabeça e murmuram «Como é possível?» e nem se atrevem a enfrentar a hipótese de que estranho é não acontecer mais vezes. As pessoas «normais» são pessoas «anormais» fortemente embrulhadas em insegurança e convenções. Tão embrulhadas que acabam por funcionar apenas ao nível do invólucro. Mas chega. Não quero ser presunçoso. Pelo contrário: gostaria até de salientar que matar não faz com que me sinta superior a essas pessoas «normais» – aos meus familiares, aos meus colegas de emprego. Não em termos absolutos, pelo menos. Quanto mais não seja por uma razão que já admiti: não gosto assim tanto de mim. Desprezo as pessoas «normais», é certo, mas também me desprezo com frequência, embora por uma razão ligeiramente diferente: desprezo-as por fecharem os olhos, desprezo-me por, sabendo o que sei, continuar a fingir. Não, matar não me faz sentir superior; matar faz-me sentir diferente. Diferente delas e de todas as outras, incluindo daquelas que fogem à normalidade mais comezinha lendo Ovídio ou biografias de Churchill, empreendendo viagens de auto-descoberta pela Patagónia, pesquisando curas para o cancro ou sendo declaradas oficialmente loucas. Em maior ou menor grau, tudo isto é normal. Não sacode os alicerces sobre os quais se constrói o mito do que é ser humano. Matar sem motivo aparente, sim. É diferente. É ter tomates para arriscar o impensável. É abandonar a espécie e entrar noutra categoria taxonómica. Sim, a fuga à normalidade é justificação mais do que suficiente.

Orgulho, apesar de tudo. Seja.




José António Abreu @ 13:44

Sex, 11/11/11

Era francesa mas gostava tanto de beber chá que todos lhe diziam mais parecer inglesa. Tendo certamente ouvido o comentário milhares de vezes, ela sorria sempre. Falava com um sotaque que ele achava inebriante, misturando palavras em português com palavras em francês e fazendo pausas inesperadas, como se seguisse regras muito próprias acerca dos sítios onde encaixar as vírgulas. Quando, pela hora do lanche, sentada à frente dele, dizia, com um suspiro de prazer: «Eu amo thé», ele ficava sempre um instante em suspenso, tentando perceber exactamente o sentido das suas palavras.




José António Abreu @ 08:42

Ter, 08/11/11

«Nunca tiveste relações com mulheres pouco atraentes?»

Sorri. «És um portento de correcção, tu: nem és capaz de dizer ‘feias’.»

«Talvez. Mas então? Tiveste ou não?»

«Poucas. Mas sim, tive.»

«O que te atraiu nelas, se não foi o corpo nem a mente?»

«Aconteceu quase sempre em circunstâncias especiais.»

«O que queres dizer com isso? Não havia outras disponíveis?»

«Boa! Estás a melhorar. Mas não. Digamos que, no momento, elas não estavam feias, pelo que admito que também conseguissem transmitir alguma inteligência.»

«Desculpa?»

«Eu estava bêbado.»




José António Abreu @ 18:30

Sex, 04/11/11

O Sr. Marques é viúvo e está prestes a reformar-se. Tem sessenta e quatro anos, um metro e setenta e três de altura e setenta quilos de peso. Desde que, há cinco anos, a mulher morreu, vai quatro vezes por semana a um ginásio. Faz musculação, dança, localizada. Os efeitos são evidentes. O Sr. Marques emagreceu (desde os quarenta anos, nunca pesara menos de setenta e cinco quilos e chegara a rondar os oitenta) e tem os músculos mais definidos do que em alguma outra fase da sua vida (sim, mesmo do que na adolescência). Passou a usar pólos um número abaixo do que era habitual, de modo a destacar os peitorais, e adora a forma como os bíceps retesam a zona terminal da manga curta.

A maioria dos frequentadores do ginásio é do sexo feminino. Na dança e na localizada, o Sr. Marques costuma ser mesmo o único homem presente (e o outro que surge com alguma frequência tem aspecto de ser homossexual). Discretamente, o Sr. Marques vai apreciando os corpos tonificados das mulheres. Elas percebem mas tentam não ligar. Consideram-no inofensivo e isso desagrada-lhe. Afinal, o Sr. Marques tem fantasias com elas e acredita que, apesar da idade, conseguiria satisfazê-las sexualmente. A experiência (costuma pensar na idade como experiência, evitando assim ter de encarar o número tristemente reduzido de mulheres com que manteve relações ao longo da vida) e o novo vigor obtido no ginásio mais do que compensariam os efeitos da idade. Chegou a convidar duas (em alturas diferentes, bem entendido) para irem beber um copo depois de saírem do ginásio mas, apesar do cuidado que teve em escolher de entre as menos novas e também de entre as que não usam aliança, ambas recusaram. O Sr. Marques lembra até vislumbres de horror e de pena nas faces de uma delas e, apesar de dizer a si mesmo que deve estar a exagerar o que viu, ou mesmo a imaginá-lo por completo, não consegue evitar uma sensação de dor e humilhação sempre que recorda o momento. Quanto à outra mulher, sorrira, fora simpática, mas nem por isso se mostrara mais disponível para aceitar o convite. O Sr. Marques ficara de tal modo desiludido com os falhanços que não voltara a tentar. Compreendera que nenhuma daquelas mulheres com corpos tonificados lhe liga. Sabe, aliás, que mesmo fora do ginásio ninguém lhe liga. Com excepção da vizinha D. Alzira, que tem mais três anos de idade do que ele, é gorducha e possui uma verruga na cara. É a única mulher que se apercebeu das mudanças no corpo do Sr. Marques (ou, pelo menos, que as mencionou – em tom inegavelmente apreciativo) e que parece disposta a dormir com ele. Há dez ou quinze anos, quando ainda era casado, o Sr. Marques chegou a ter fantasias com a D. Alzira (era muito mais magra, na altura, embora já tivesse a verruga) e, em desespero de causa, um dia destes vai acabar por levá-la para a cama mas, agora que possui aquele corpo, a hipótese parece-lhe um completo desperdício.




José António Abreu @ 08:43

Sex, 28/10/11

As paredes são imaculadamente brancas mas uma escuridão densa domina as fotografias. Ruas, edifícios, água, céu — mesmo roupa e faces são escuras na maioria delas. Suspensas por fios quase invisíveis, iluminadas por luz difusa, as fotografias parecem buracos no tempo para um passado há muito desaparecido e, todavia, estranhamente familiar.

As portas foram abertas há poucos minutos e, de momento, parece que apenas os guardas se encontram no interior do museu. Fui dos primeiros visitantes a entrar. Não tenho plano definido, nenhuma foto que deseje especialmente ver. Passeio pelas salas vazias, parando defronte de cada imagem durante alguns segundos, um pouco mais quando me captam a atenção. A maioria mostra gente anónima, em ruas de cidade ou campos de cultivo. Há também uns quantos retratos de homens e mulheres que a passagem de várias décadas ainda não apagou totalmente da memória colectiva: actores de filmes a preto e branco, um par de escritores, meia dúzia de políticos. Reconhecer estas pessoas gera um instante de prazer, como se as fotos fizessem o espectador relembrar colegas de escola há muito perdidos de vista. E, no entanto, a satisfação que se sente ao identificar estas pessoas é insignificante quando comparada com a obtida ao apreciar a maioria das restantes. Mostram gente anónima executando as suas tarefas diárias, gozando momentos de descontracção ou posando para as fotos de forma tão consciente que só a atitude diz imenso sobre o tempo e o local em que as fotografias foram tiradas. Sem saber bem porquê, aprecio especialmente a imagem de uma rapariga gorducha rindo por trás de uma bancada de fruta. Desconhecendo a razão por que ri, é impossível não sentir ternura. Não sorrir. Não invejar o momento.

Para além das fotografias com pessoas estão ainda expostas algumas paisagens urbanas. Belas mas negras e opressivas. Como se o fotógrafo não tivesse conseguido descobrir calor sem a presença humana.

Tenho uma câmara comigo. É permitido fotografar no interior do museu, desde que não se utilize flash. Isso não me causa problemas. Não gosto de flash. Nunca inseri um na sapata da pequena Leica M6 com quinze anos de idade e milhares de fotos tiradas que trago comigo. A superfície está pejada de riscos e a tinta preta foi-lhe abandonando as arestas. Tem neste momento encaixada uma objectiva de 50 mm. Dentro de um minúsculo saco que trago pendurado no ombro direito tenho outra objectiva, de 35 mm, e dois rolos de filme: um a cores de 800 ISO, o outro a preto e branco de 400. Nesta época de fotos digitais sinto-me por vezes antiquado por entre todos os entusiastas brandindo com orgulho as suas Canons e Nikons de milhares de megapixeis. Contudo, essa sensação é rara porque já passei a idade em que sentia a cada instante ter de justificar as minhas opções perante os outros ou perante mim mesmo.

Gosto de fotografar. Como o fotógrafo cujo trabalho se encontra exposto nas paredes brancas e assépticas, gosto de fotografar pessoas. Mas nos dias que correm muita gente não gosta de ser fotografada por um estranho. Com frequência, as pessoas tornam-se agressivas ao verem uma câmara apontada para elas. E, ainda que nada digam quando a foto é tirada, há sempre a possibilidade de processos legais se a imagem for exposta ou comercializada. Devagar mas inexoravelmente, o estilo de fotografia exposto com orgulho nas paredes do museu está a desaparecer. Numa época em que em que milhões mostram as suas vidas no Facebook, em que toda a gente parece querer ser famosa, aparecer na TV, tornar-se num fenómeno do YouTube, isto confunde-me e entristece-me mas a realidade é incontornável e por isso tenho cuidado ao fotografar pessoas. No museu, introduzo o filme a cores na máquina e preparo-me para as usar apenas como silhuetas coloridas contrastando com as paredes brancas e os rectângulos escuros.

(Ainda mais confusão me faz ser cada vez mais frequente a proibição de fotografar no interior de museus, mesmo sem flash, mesmo em exposições de fotografia. O mundo anda difícil de entender. Mas não é por isso que estou a escrever este texto. Ou, em parte, talvez seja.)

Devagar, percorro todas as salas. Tiro meia dúzia de fotos sem grande convicção. A verdade é que as imagens expostas são demasiado boas para que dos meus esforços possa resultar algo que me leve a pensar ter valido a pena trazer a máquina. É então que reparo no homem. Tem pelo menos setenta e cinco anos, talvez mais, é baixo e está permanentemente inclinado para a frente, mesmo enquanto caminha. Veste um fato cinzento escuro, demasiado largo e de corte antiquado mas em perfeito estado de conservação. Traz um jornal dobrado na mão direita e um chapéu de feltro na esquerda. O cabelo grisalho é ralo e encontra-se despenteado, fios espetados no ar como que surpreendidos por estarem a descoberto. Parece deslocado neste ambiente (estaria mais enquadrado dentro de uma das fotos) mas o que verdadeiramente chama a minha atenção é o modo como se comporta. Pára a meio metro de cada fotografia durante menos de um segundo, olha-a, continua para a seguinte. Nenhuma lhe merece mais tempo, não olha em volta, não muda de expressão — no seu rosto onde não parece haver lugar para o prazer ou para a crítica. Age metodicamente, como que seguindo um plano. Ergo a máquina fotográfica e apanho-o deslocando-se entre imagens. Permaneço naquela sala mais alguns minutos enquanto ele segue para outro compartimento.

Vejo-o de novo algum tempo depois, no final da minha segunda volta pelo museu. Estou decidido a sair e, apesar de ter apreciado a exposição, um pouco desiludido por sentir não ter conseguido obter imagens que valha a pena guardar. (A sensação é inevitável, sei-o perfeitamente, por muita racionalização que faça.) O velhote está parado em frente a uma fotografia, o jornal agora entalado debaixo do braço esquerdo, o chapéu, agarrado pela aba com ambas as mãos, encostado ao peito. Aguardo durante um par de segundos que se movimente para a foto seguinte mas ele não o faz. Aquela imagem parece realmente interessá-lo, constituir o objectivo da sua visita à exposição. Aproximo-me lentamente. Reconheço a fotografia, da minha primeira passagem por aquela sala. Mostra uma rapariga de seis ou sete anos de idade, sentada num muro de pedra. Agarra uma boneca de trapos contra o peito magro e sorri para a objectiva com absoluta confiança. A foto foi tirada de um plano ligeiramente inferior (o fotógrafo ter-se-á baixado ou talvez existisse ali um lance de escadas e ele se encontrasse três ou quatro degraus mais abaixo) e, por trás da rapariga, vê-se uma linha desfocada de estreitos edifícios geminados. As fachadas são escuras, em diferentes tons de cinzento. Em grande medida por estarem fortemente desfocadas, algumas peças de roupa de tonalidade clara penduradas do lado de fora das janelas são insuficientes para aliviar a escuridão que domina o segundo plano. Toda a luz está concentrada na miúda, que enverga um vestido branco ou muito claro. Como claros são as meias rendilhadas, os sapatos — e a face. A rapariga quase salta da fotografia e é impossível não permanecer hipnotizado a olhá-la durante algum tempo.

Ela contrasta com o homem a tantos níveis (juventude versus velhice; confiança versus resignação; descontracção versus rigidez) que não resisto. Ergo a Leica, foco na miúda e disparo. O homem roda. Lágrimas descem-lhe pelas faces. Olha-me, baixa os olhos para a câmara e, sem uma palavra, vira-se de novo para a fotografia.

Permaneço imóvel durante o que me parece imenso tempo, incapaz de decidir o que fazer. Fui apanhado de surpresa e não sei se devo deixá-lo sozinho ou ficar, para pedir desculpa e justificar a minha atitude. Depois, talvez mais por mim do que por ele (por sentir que não conseguiria deixar de pensar nele e de imaginar as razões por que chora), dou um passo em frente e coloco-me a seu lado. Pergunto:

«Sente-se bem?»

Demora tanto tempo a responder que começo a duvidar que o faça. Quando fala, a voz é firme mas o tom é baixo, rouco, forçando-me a prestar atenção.

«Tinha sete anos, sabe? Ou talvez já tivesse feito oito, não sei. Depende de quando a fotografia foi tirada. A legenda só diz 1938. Ela fazia anos em Agosto. Estava sempre muito calor, o que era bom porque podíamos andar na rua a brincar. Eu fazia… faço anos em Janeiro. Chovia quase sempre e fazia frio por alturas do meu aniversário. Gostávamos mais de calor. Não gostávamos nada de estar presos dentro de casa. Às vezes, no Inverno, ficávamos todos molhados porque não resistíamos a andar na rua. Apanhámos muitas palmadas, e com um chinelo, por causa disso. Mas não conseguíamos resistir. Detestávamos estar presos dentro de casa. Então ela não suportava mesmo… O vestido é leve, devia ser Verão. Talvez fosse mesmo Agosto, aqui não diz. Só diz 1938.» Cala-se. Espero em silêncio, receoso de quebrar a ténue ligação que parece ter-se estabelecido entre nós. Receoso de que ele me peça para ir embora. «Nós não tínhamos máquina fotográfica. Naquela altura ninguém tinha. Eram caras, só para os ricos. Nem sei se ela percebeu o que o fotógrafo estava a fazer. Acho que nunca ninguém lhe tinha tirado uma fotografia. Mas ficou bem, não ficou?»

Pára novamente mas agora espera que eu fale. Que eu responda. Sinto dificuldade em fazê-lo mas sou sincero:

«Ficou linda.»

«Deve ter sido uma ocasião especial, para estar vestida assim. Quem sabe se até foi mesmo no dia dos anos… Aquela boneca, houve uma altura em que nunca a largava. Foi um problema, ter que a deixar em casa quando foi para a escola. Todas as tardes, quando voltava, ia a correr ver se a boneca estava bem. É verdade que a nossa mãe estava sempre a ameaçar que havia de deitá-la fora mas isso era só para a levar a fazer o que queria. Se deitasse a boneca fora, perdia o poder de a obrigar a fazer certas coisas. Mas ela não percebia isso (eu também não mas eu era menos esperto) e andava sempre preocupada com a boneca… Fica bem, na fotografia. Mas fá-la parecer mais nova, mais criança.» Inspira profunda mas lentamente, como se saboreasse o ar. «Eu era um ano mais novo. Para dizer a verdade, dezassete meses quase ao dia. Até aos três ou quatro anos acho que ela me via mais como um irmão da boneca do que dela. Isto depois de passar uma fase (dizem, eu não me lembro) em que sentia inveja de mim.» Sorri e no sorriso há uma censura carinhosa dirigida à irmã na foto. «Tem uma certa graça porque eu é que sentia inveja dela. Ela conseguia ser sempre o centro das atenções: era esperta, dizia coisas que as pessoas gostavam de ouvir. Eu era mais calado, mais metido comigo próprio.»

Ouço-o numa mistura de encantamento e desconforto. A história atrai-me, sinto que estou a cumprir um papel importante para ele e, todavia, não consigo deixar de me considerar um intruso — uma espécie de voyer emocional, degustando os sentimentos de um completo estranho. Então, com a precisão que usara antes — como se a exactidão das datas fosse importante para lhe manter as recordações sob controlo —, ele diz:

«Tinha doze anos quando morreu. Quase treze. Na altura ninguém me disse o que tinha causado a morte. Só vim a saber anos depois. Pneumonia. Era fraca, magrinha… Mas eu era ainda mais magro e nada me aconteceu. Os nossos pais andavam a tentar arranjar-lhe emprego desde por volta dos dez, quando ela acabou a quarta classe, mas ninguém a queria. Diziam que era muito fraca para aguentar um trabalho a sério. Tomava conta da casa desde antes dessa altura porque a nossa mãe andava doente.» Encolhe os ombros quase imperceptivelmente. «Andava sempre doente. Passava a maior parte do tempo na cama a queixar-se da nossa vida miserável. Nós os dois não a achávamos miserável. Sabíamos que não éramos ricos mas não sentíamos falta de grande coisa. Quando cresci, comecei a pensar que a nossa mãe era mesmo assim e que não tinha doença nenhuma. Estou convencido que foi assim que ela apanhou a pneumonia: a lavar o chão de joelhos e a nossa roupa no tanque. Só pode ter sido. Mas, na altura, eu nem sabia o que era pneumonia.»

Cala-se de novo. Permanecemos em silêncio durante muito tempo — minutos, talvez — mas eu já não sinto desconforto. Olhamos ambos para a fotografia na parede. Ele está provavelmente a lembrar-se de milhões de acontecimentos de há setenta e tal anos. Eu estou a pensar que, para mim, a imagem acaba de ganhar uma história. Uma história concreta, não apenas a sensação difusa que se consegue ao observar pessoas numa fotografia, seja esta recente ou antiga, tirada na cidade onde vivemos ou do outro lado do globo. De vez em quando, há fotos que sugerem histórias ainda mais definidas — verdadeiras ou falsas, não interessa — mas esta acaba de se guindar a um patamar diferente. Quase como se eu a tivesse tirado — ou vivido.

 O velho diz:

«Nunca pensei que ia voltar a vê-la. Às vezes já tinha problemas em lembrar-me dela. Do aspecto que ela tinha. Isso deixava-me tão triste. E irritado.»

«Não sabia que existia uma fotografia?»

Abana a cabeça, devagar.

«Até ontem, a única imagem dela era na minha cabeça.» Tira o jornal de debaixo do braço. Segurando o chapéu pela aba com a mão direita, abre-o numa das últimas folhas. Mostra-me a notícia. O título anuncia a realização de uma exposição de fotografias de um dos maiores fotógrafos portugueses do século XX, agora que passam vinte e cinco anos sobre a sua morte. A foto da miúda sentada no muro de pedra com a boneca de trapos nos braços ilustra a notícia. «Nem imagina o que senti. Foi como se tudo tivesse parado. Não conseguia acreditar. Mas», sorri novamente para a irmã enquanto as lágrimas lhe deslizam outra vez pelas faces, «afinal há uma fotografia dela.»

 

Pago, recolho o invólucro com as fotografias de cima do balcão e procuro um banco onde me sentar. Acabo ao lado de uma mulher vestida com um fato de corte austero que balança um carrinho de bebé enquanto vigia meia dúzia de sacos de compras pousados no chão. Deita-me um olhar rápido e depois ignora-me. Tiro as fotos do invólucro e passo-as rapidamente até chegar à do velho em frente da imagem da irmã. De súbito, o ruído do centro comercial parece diminuir.

Apanhei-o praticamente de costas. A luz fraca do museu obrigou-me a usar uma abertura larga e ele encontra-se ligeiramente desfocado. A face quase não se vê. Mas o mais importante está ali. A rapariga, luminosa, etérea — um fantasma benigno e deslumbrante —, sorri para o velho com a alegria do reencontro.

Tecnicamente, não é uma grande fotografia. Encontra-se um tudo-nada subexposta, o enquadramento não é perfeito e a expressão dele mal se distingue. A focagem é o único aspecto técnico que me agrada: realça a miúda e aumenta o efeito de profundidade. Já a circunstância de ser uma imagem a cores não ajuda: distrai a atenção do essencial. Normalmente, considerá-la-ia banal, pouco acima de fracassada. Mas não hoje.

Regresso à loja e encomendo uma cópia. Fiquei com a morada do velho. Terá uma foto da irmã.




José António Abreu @ 08:09

Qua, 26/10/11

Pergunto-lhe: «Não há então mulheres que permaneçam interessantes após muito tempo de relação?»

«Não.»

«Nem que pareçam chatas quando ainda não se dormiu com elas?»

«Isso há.»

«A sério?»

«Claro que sim: as feias.»




José António Abreu @ 13:36

Seg, 24/10/11

Tivemos uma conversa muito estimulante antes de o matar. É curioso como as pessoas ficam mais interessantes quando se sentem à beira da morte e têm de lutar pela vida. Têm de justificar a vida. Parecem raciocinar mais depressa, ter pensamentos mais profundos, ganhar dez ou vinte pontos de QI. Isto se lhes for dada oportunidade para falarem, claro. Mas não concebo as coisas de outra maneira. É preciso deixá-las falar. Permitir-lhes reavaliar a vida. Constatar como foi afinal tão melhor do que pensavam. Há egoísmo aqui, eu sei. Torna-as menos irrelevantes. Permite-me matar pessoas que, afinal, não eram uma completa nulidade. Mas também me faz começar a gostar delas. De certa forma, aprendo a gostar delas ao mesmo tempo que elas mesmas o fazem. Trata-se de uma aprendizagem em conjunto. Quando finalmente as mato, é frequente sentir que teria gostado de as ter como amigas. Mas não me permito ilusões. Não duraria. E há outro problema: no fundo, tirando uma ou outra que mato por merecerem ser mortas (mas não gosto de o fazer; sinto que isso me rebaixa, que me transforma numa personagem de série televisiva), mato-as precisamente por gostar delas. Deve ser bom morrer num instante de auto-apreciação. Sair em grande, redimido com o mundo e com as próprias falhas, não ter de mergulhar outra vez numa existência deprimente. Sim, mato-as por gostar delas. E talvez isto explique por que não me mato. Não consigo iludir-me durante períodos suficientemente longos para achar digno fazê-lo. Aliás, se um dia o fizer, será logo depois de matar alguém. Falta de originalidade, eu sei. Mas é o único momento em que o acto se torna fácil.




José António Abreu @ 08:28

Sex, 21/10/11

O casal que arrendara o apartamento era simpático mas não se assustava com facilidade. A rapariga, faladora e de cabelo comprido, e o rapaz, alto e muito magro, riam-se sempre que objectos caíam sem motivo aparente, culpavam o vento quando, apesar de nenhuma janela se encontrar aberta, as portas se fechavam com estrondo, atribuíam, com um encolher de ombros e um trejeito de resignação, barulhos esquisitos nas paredes e no tecto à acção de ratos ou dos vizinhos. Mas isso não era o pior. O pior era que passavam horas a ver filmes de terror num televisor enorme. Ele tentava assistir, pairando atrás do sofá, mas nem sempre conseguia porque alguns eram demasiado assustadores. Detestava ficar paralisado de medo enquanto eles reagiam com gritos, risos e abraços aos actos de um louco homicida brandindo uma motosserra. Mas era pior quando os filmes metiam fantasmas. Não o assustavam tanto como os de mortos-vivos, lobisomens ou assassinos sádicos mas deprimiam-no como nada mais o conseguia fazer. Não há pior sensação para um fantasma do que perceber-se um cliché. 




José António Abreu @ 13:07

Seg, 17/10/11

 Diz: «A inteligência feminina é uma questão hormonal. Epidérmica, até.»

«Desculpa?»

«No início de uma relação, enquanto o sexo é bom, ou enquanto se espera que haja sexo, quase tudo o que as mulheres dizem é interessante. Mais tarde, ainda que continuem a dizer o mesmo, já são apenas chatas.»

«Uau. E os homens? Não há homens a quem reconheças inteligência? Isso deve-se a quê?»

Deixa escapar um sorriso, antecipando a piada.

«Provavelmente ao facto de nunca ter mantido relações com eles.»




José António Abreu @ 13:31

Ter, 11/10/11

Tudo na boca dela – os lábios, a língua, os dentes, o sabor – lhe parece estranho e ameaçador. Repugnante, até. Há um instante em que julga ser incapaz de prosseguir com aquilo, em que sente ser mais fácil parar, empurrá-la, afastar aquele corpo com contornos, odores e comportamento estranhos. Mas o instante passa e ele está a corresponder ao beijo e a meter as mãos por baixo da blusa dela e a levantar-lhe a saia e a empurrá-la para o sofá que existe num dos lados do gabinete e a fazer sexo com ela e a pensar como é curioso que uma vagina perfeitamente normal possa parecer tão estranha, tão diferente e, um pouco mais tarde, que há muito tempo não tinha um orgasmo assim e que a culpa resulta ao mesmo tempo num factor de intensificação e de perturbação da experiência. E logo depois diz-se: foda-se, pára de pensar.

 

Afasta-se. Limpa-se com uma mão-cheia de lenços de papel. Compõe a roupa. Só então a olha. Ainda está a arranjar-se. Durante uns segundos, ele aprecia-lhe verdadeiramente as mamas e as coxas pela primeira vez mas a seguir pensa: e agora? Não sabe o que dizer. Não sabe se deve falar. Na verdade, não sabe o que foi aquilo. Trabalha com ela há anos mas conhece-a mal. Ao contrário dele, não é casada e isso assusta-o. Faz com que nada tenha a perder. Ele sabe que Marta não perdoaria a traição. É-lhe difícil pensar em Marta. Quase como se de repente também ela se houvesse transformado numa desconhecida. Ele e Marta não fazem sexo há quase dois meses e as coisas não andam propriamente bem entre eles. Ainda assim, ela não o perdoaria. Como qualquer mulher (como qualquer pessoa), Marta tem uma faceta de folia e inconsequência, dispara piadas sarcásticas quando o vê olhar para outras mulheres, faz comentários provocadores sobre alguns homens, mas é afinal muito séria em relação a certas coisas. Ou já não? Será possível que tenha mudado? Que isso fosse antes do casamento e logo depois deste? Quando pareciam não conseguir estar separados. Quando nunca precisavam de repetir frases para o outro as compreender. Quando pequenos gestos geravam emoções muito para além do razoável. Ele lembra-se de achar piada ao tempo que Marta demorava a experimentar roupa em frente ao espelho do quarto. Agora, isso irrita-o. Lembra-se de como ela se deixava cair de costas na cama, erguia os pés e pedia para ele lhe tirar os sapatos. Entretanto, deixou de o fazer. Lembra-se de como não havia discussões sobre dinheiro, visitas à família ou o que fazer no fim-de-semana. Actualmente, são regulares. É como se ele e Marta estivessem a desaprender aquilo de que o outro gosta. Ou – talvez seja mais isso – como se cada um deles recusasse aprender a lidar com as alterações de gosto do outro. Como se estas também constituíssem traições. Seja a verdade qual for, as coisas já não são iguais. Mas ainda assim ele nunca admitira a possibilidade de se envolver numa relação extraconjugal. Acha outras mulheres atraentes, claro, como Marta acha alguns homens. Mas sempre fora rápido a classificar qualquer fantasia como apenas isso: uma fantasia. Ainda por cima, uma mulher, especialmente uma mulher que não encara o sexo como negócio, traz problemas. Emoções, desejos, expectativas. Aquela mulher que acaba de se vestir à frente dele é um ser tão completo quanto ele e Marta. É uma pessoa. Uma pessoa que não entende bem. Que não quer magoar. Que lhe pode destruir a vida (ela está a dizer que ele lhe descoseu a blusa e ele está a pensar que ela tem o poder de lhe destruir a vida). Ele já tivera fantasias com ela, já se perguntara como seria nua, mas nunca verdadeiramente achara possível (bom, possível talvez; digamos exequível ou talvez desejável) que a relação deles ultrapassasse o plano profissional. Ele olha para aquela mulher e pensa que ela ficou de repente muito mais perto dele mas também muito mais longe. Antes ele conseguia prever o seu comportamento. Agora deixou de ser capaz de o fazer.

Ela aproxima-se, sorri, toca-lhe suavemente no braço esquerdo. Diz: «Não te preocupes. Fiz isto com perfeita consciência de que não passa daqui. Não estou à espera de nada.» É como se lhe adivinhasse os pensamentos mas ele não fica sossegado. A situação alterou-se. Agora estão conscientes de que podem foder um com o outro. Já não é apenas uma fantasia. Já o fizeram uma vez. Encontrar-se-ão frente a frente quase todos os dias e aquele acto estará ali, entre eles. Como evitar que seja um embaraço ou – o que lhe parece mais provável – como evitar que ocorra novamente e que, mais tarde ou mais cedo, acabe por ter consequências? Que ela – ou ele; será possível? – crie expectativas, que o sexo se lhes veja na face? Que Marta lho veja na face.

Tenta sorrir, especado em frente dela. Repara no pequeno sinal que ela tem junto ao lóbulo da orelha esquerda. Sabe agora que tem outro, quase exactamente igual, na face interior da coxa direita. Por que é que sabê-lo altera tanto as coisas? Pensa que deve retribuir o toque dela e responder ao que ela disse mas não o faz. É quase como se precisasse de lhe ser novamente apresentado. «Temos de ir», diz, e saem do gabinete e atravessam as áreas de open space desertas (o restante pessoal da empresa foi para casa há mais de uma hora) e durante todo o percurso até à rua, incluindo a parte em que descem no elevador, mantêm-se sempre a pelo menos um palmo de distância um do outro.

  

No quarto, ele examina o fato antes de o pendurar. Não detecta qualquer mancha. Roda em frente do espelho várias vezes até ficar convencido de que nos boxers também não há nada. Puxa o elástico e olha para o pénis, de alguma forma receoso de que esteja diferente. Parece-lhe igual. Não consegue evitar uma ligeira desilusão. Veste as calças de um fato de desporto e está a enfiar a cabeça numa t-shirt quando ouve o som da porta da rua sendo aberta e depois fechada. Pára um instante e a seguir acaba de vestir a t-shirt. Enquanto a ajusta ao corpo verifica-se no espelho. Esboça um sorriso e apaga-o de imediato. Demasiado falso. Mas continua a vê-lo, colado ao seu rosto, quando Marta entra. Trocam um beijo rápido. Ele atira um olhar rápido ao espelho. Não fica certo do que vê. Ela diz: «Estou estoirada, tive um dia horrível.» Deixa-se cair na cama. Permanece imóvel durante um par de segundos, com os olhos fechados. Ele observa-a através do espelho. Veste um fato preto constituído por saia e casaco, uma blusa branca, calça sapatos de salto alto. Tem um aspecto profissional, mesmo esparramada assim sobre a cama. Elegante. Parece segura de si mesma. Ele procura lembrar-se se ela já era assim antes. Tenta perceber se mudou com o acto dele. Se, agora, a vê de forma diferente. Marta abre os olhos. O olhar deles encontra-se no espelho e ele reprime um ligeiro sobressalto. Ela tem um sorriso que se transforma num esgar de cansaço. Ergue as pernas. Pede: «Tira-me os sapatos.»




José António Abreu @ 19:40

Dom, 09/10/11

Segunda-Feira, 3

Acordei convencido de que algo importante acontecerá esta semana. Não foi hoje.

 

Terça-Feira, 4

O almoço soube-me bem mas caiu-me mal. Quase vomitei no restaurante onde costumo comer sozinho.

 

Quarta-Feira, 5

Tanto me faz viver numa República como numa Monarquia. Aproveitei o feriado para me apaixonar. Não sei quem ela é. Vi-a apenas durante uns minutos, na rua. É loura. Com sorte, amanhã já me passou.

 

Quinta-Feira, 6

Ainda não me passou totalmente mas já não me custa pensar nela. Ou só um pouco. Começo a ter dificuldade em recordar-lhe o rosto  mas lembro-me bem do cabelo. E das pernas. E do decote.

 

Sexta-Feira, 7

Nada de especial aconteceu.

 

Sábado, 8

A mamã morreu finalmente na noite passada. Foi enterrada esta tarde. Ainda bem que calhou a um sábado.

 

Domingo, 9

Yes! Bem me parecia que havia de suceder algo importante: voltei a ver a loura. Saía da padaria quando eu passava na rua. Percebi logo que não a esquecera. Ter-se-á mudado para esta zona? A próxima semana vai ser bombástica.




José António Abreu @ 12:21

Seg, 03/10/11

Upa! Go.

O senhor Lima mora no quinto andar. Os vidros das janelas estão sujos. Do lado de fora da janela da sala um pombo levanta voo, esbaforido. O senhor Lima tem setenta e oito anos e, apesar de estar praticamente cego e surdo, não sai da frente da televisão. São sete e meia da tarde e lá está ele, assistindo ao Preço Certo. No fundo, é o programa adequado para o senhor Lima. Como o Fernando Mendes quase grita e, apesar de baixo, é bastante volumoso, o senhor Lima consegue facilmente perceber quando ele se encontra no ecrã. O senhor Lima está sozinho. A filha que o visitava de vez em quando foi para a Suiça embalar vegetais pelo triplo do que ganhava cá e, segundo se diz no prédio, o Sr. Lima não tem mais familiares vivos. Uma assistente social traz-lhe comida e uma senhora limpa-lhe a casa todas as semanas mas raramente qualquer outra pessoa sobe para falar com ele. Por seu turno, o senhor Lima também evita sair do apartamento. Põe o volume da televisão no máximo e fala com ela.

Considerando o barulho do televisor do senhor Lima, é uma sorte que o quarto andar esteja vago. O casal que lá vivia mudou-se há três meses. Terá arranjado melhor, ou pelo menos mais silencioso, ter-se-á separado e ido cada um para seu lado, terá desistido da cidade e regressado à vila de onde viera. As pessoas no prédio não conhecem a justificação porque mal tiveram tempo de conhecer os elementos do casal: um rapaz e uma rapariga de vinte e tal anos, com aspecto desmazelado, que pareciam estar sempre a fumar. Ocuparam o apartamento apenas durante oito meses e, embora saíssem e entrassem com frequência, não se punham com conversas quando se cruzavam com outros residentes. Bom dia e boa tarde e pouco mais. Apesar de nunca terem incomodado ninguém (nem sequer faziam festas em casa, ao contrário de outros ocupantes do quarto andar no passado), quase toda a gente no prédio ficou satisfeita quando eles se foram embora. Toda a gente menos Mónica, os estudantes do terceiro andar e o Sr. Lima, para quem eles lá estarem ou não é indiferente. (Enfim, isto não será inteiramente verdade: um dos estudantes teve uma certa pena, porque chegara a alimentar fantasias com a rapariga depois de uma noite a ouvir gritar durante um acto sexual que parecera interminável.)

Na sala do apartamento do terceiro andar também não se vê ninguém. Mas aqui, como já foi referido, moram estudantes universitários. Dois estudantes, para ser exacto. Um chama-se Pedro, nasceu em Baião e encontra-se neste momento na fila para uma das cantinas universitárias. Depois do jantar, tenciona ir ao cinema com a actual namorada. Ainda não sabe que filme ela escolherá mas ele está preparado para aguentar uma comédia romântica em troca de sexo. O outro estudante chama-se Rui. Nasceu em Vouzela, onde os pais e a irmã continuam a residir, e também não está em casa. Rui não tem namorada. Há meses que está apaixonado por Mónica, que vive no segundo andar, mas ela não lhe liga. Rui viu-a recentemente com um rapaz do seu curso — um tipo alto e atlético, que conduz um Honda Civic preto com jantes e ponteira de escape cromadas e dá sempre uma aceleradela antes de desligar o motor. Como os estudos também não correm bem a Rui e o pai foi despedido da fábrica onde trabalhava há quase vinte anos, circunstância que pode obrigar Rui a abandonar a universidade e a irmã, aluna brilhante, a nunca chegar entrar numa, ele anda deprimido e já nem tenta disfarçar. Mas ninguém lhe presta atenção. Nem sequer Pedro que, obtendo boas notas sem esforço aparente, nunca parecendo ter falta de dinheiro e sendo capaz de levar raparigas para a cama menos de cinco minutos depois de as conhecer, tem mais em que pensar do que nas dificuldades do colega de apartamento.

A mãe de Mónica está a aspirar o chão da sala. Aspirar a sala pode ser algo estranho de se fazer à hora do jantar mas a estranheza diminui se for a mãe de Mónica a fazê-lo. É uma mulher roliça, cujo maior prazer é disparar ordens e frases assassinas. Porém, negaria se lhe dissessem que tira prazer disso. Muito pelo contrário, garantiria, seria uma mulher feliz se pudesse não ter de andar sempre preocupada com as outras pessoas. Tem uma frutaria por onde passaram dezenas de empregados ao longo dos anos. A funcionária actual aguenta há quase três. Trata-se de um recorde que se deve ao facto de a rapariga ser praticamente surda. Como no caso do Sr. Lima e do Fernando Mendes, é uma combinação ideal: a mãe de Mónica insulta-a mas ela não reage (em parte, porque depressa aprendeu que é melhor assim) e, por ser surda, «coitada», a mãe de Mónica não a despede (no fundo, não é má pessoa). A mãe de Mónica não gosta de ver Rui, o estudante do piso de cima, andar atrás da filha. (Toda a gente no prédio está a par dos sentimentos de Rui, excepto – talvez – o senhor Lima.) A mãe de Mónica considera Rui um rapaz estranho, muito metido consigo próprio. Ainda por cima, nas poucas conversas que teve com ele, ficou a saber que estuda letras e que os pais são pobres. Mónica é demasiado nova e merece melhor, pensa ela – e também o diz. Rui ainda teve esperanças de que o pai de Mónica gostasse dele mas o pai de Mónica não se dá ao trabalho de arranjar opiniões quando a mulher já o fez. Claro que Rui sabe que o mais importante seria agradar à própria Mónica. Mas também aí falhou. Mónica é simpática com ele mas afastou-o de todas as vezes que ele tentou aproximar-se. Rui não percebe como pode ela gostar do idiota do Civic. Pergunta-se se será por causa do Civic mas depois recrimina-se – Mónica não é esse género de rapariga. A mãe de Mónica empurra o tubo do aspirador para a frente e para trás com um ar de cansaço e irritação. Tudo normal, portanto. E quanto à própria Mónica, não se encontra à vista, o que é sempre pena porque Mónica é uma rapariga bastante atraente.

Cá está ela, afinal, no primeiro andar, provavelmente ajudando a D. Alice que, além de vizinha, é tia de Mónica. Não sendo uma mulher feia, D. Alice nunca casou. Dizem que deixou de confiar nos homens quando, há mais duas décadas, se apaixonou por um que acabou por lhe roubar dinheiro e fugir para o estrangeiro. Mas D. Alice não se encontra na sala; estará na cozinha ou na casa de banho ou talvez no quarto. Mónica sim, está na sala. É alta, com mais de um metro e setenta. Tem cabelo castanho-escuro, comprido e quase liso. O rosto é largo, com um formato ligeiramente quadrado. Os olhos são grandes e o nariz pequeno. É um rosto que Rui, o estudante do terceiro andar, acha exótico e inebriante. Mas ele não acha isso só do rosto, claro. Da ponta da cabeça à ponta dos pés, Mónica é a rapariga mais atraente que ele alguma vez beijou. Ah sim, chegaram a beijar-se. Rui tomara a iniciativa e por instantes parecera que tudo daria certo, que ela corresponderia, que as fantasias dele estavam prestes a concretizar-se. Mas, de repente, Mónica afastara a cabeça e depois, com ambas as mãos, tentara afastar todo o corpo. Nessa altura Rui cometera um erro monumental. Prendera-a nos braços, tentara beijá-la de novo. Houve mais um instante em que tudo pareceu possível mas Rui sabia agora que tal se devera apenas à surpresa que Mónica sentira – surpresa não por ele a desejar mas por ser capaz de usar a força. Mónica empurrara-o violentamente, ele tentara mantê-la agarrada, assustado com a raiva que lhe via nos olhos, e ela dera-lhe uma bofetada. Isso parara tudo, fazendo cair sobre Rui a consciência não só da estupidez do acto que cometera mas também de quão ridícula toda a cena era – como se pertencesse a uma telenovela ou a um mau filme. Decorreram entretanto dois dias e Rui ainda não teve coragem de encarar Mónica novamente. De resto, para que o faria? Ficou claro que nada entre eles poderá alguma vez dar certo. Ela prefere o tipo do Honda. Mónica está de pé no meio da sala, com um pedaço de papel na mão. Provavelmente uma lista das compras que fará para a tia no dia seguinte, antes de regressar a casa. D. Alice deve ter ido buscar dinheiro para lhe dar. Subitamente, Mónica ergue os olhos para a janela e o seu rosto – belíssimo – mostra surpresa e susto. O que, de certa maneira, não deixa de constituir um bom sinal.

O rés-do-chão é ocupado pela senhora Fátima. É gorda e, desde a morte do marido, que a tratava abaixo de cão, vive com cinco gatos, todos tão gordos quanto ela. Dois estão deitados no parapeito da janela da sala. De repente, apesar da gordura, saltam como se tivessem molas sob o corpo. É incrível como ainda o conseguem fazer. Mas o rés-do-chão passa depressa.

Splat!

O último som que Rui ouve, enquanto se esmaga contra o passeio, é o grito agudo de uma mulher.