José António Abreu @ 08:41

Ter, 08/05/12

«Repara no coveiro.»

Laura olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita. Descobriu o coveiro ligeiramente afastado do grupo, apoiado na pá. Olhava o caixão fixamente e parecia alheado do que o padre dizia.

«Não! Ele está…?»

«Hum-hum.»

Filipe e Laura estavam na parte de trás do aglomerado de pessoas rodeando a cova sobre a qual, assente em dois barrotes de madeira, se encontrava o caixão. A terra era escura. Parecia molhada apesar de não estar a chover.

Filipe sussurrou: «Ele conhecia-a?»

Laura rodou a cabeça apenas um tudo-nada na direcção de Filipe: «Aqui toda a gente se conhece. Mas que eu saiba não o suficiente para chorar no funeral dela. Nem o João está a chorar.»

João era o filho mais velho de D. Lurdes, a falecida. Filipe procurou-o com os olhos. Não, não estava a chorar. Parecia triste mas também um pouco farto daquilo tudo. Filipe conhecia-o mal e não gostava dele.

«Então a que propósito vem aquilo?»

Falara demasiado alto. Um homem à frente deles olhou para trás. Filipe esboçou um sorriso apologético e Laura susteve a resposta. Filipe aproveitou a pausa para tentar perceber o que o padre dizia (qualquer coisa sobre D. Lurdes ter vivido nesta vida sabendo que devia preparar-se para a próxima) e depois para dar nova olhadela ao coveiro. Parecia já ter passado os setenta anos de idade mas talvez isso se devesse ao aspecto desmazelado: vestia uma camisola bege suja de terra e umas calças de uma tonalidade tão parecida com a cor da terra que era difícil saber se não estavam apenas imundas. Quando às botas, não havia dúvidas: manchadas e com rasgões, ameaçavam desintegrar-se a qualquer momento. Não era alto, tinha meia dúzia de quilos em excesso concentrados em torno da cintura, uma barba mal feita e cabelo que não devia ser lavado há semanas. Mas a particularidade mais estranha era a forma como a pálpebra direita pendia sobre o globo ocular: fazia com que, visto do ponto em que Filipe se encontrava, parecesse estar sempre a olhar para o chão ou a pedir desculpa. Continuava a chorar. Fazia-o em silêncio, sem qualquer trejeito ou movimento, como se nem percebesse que chorava.

«Mas que raio é que um tipo assim podia ter em comum com a velha? Estaria apaixonado por ela desde miúdo?»

Laura hesitou. «Uma vez a Sandra disse-me que o velho Firmino teve desaguisados com muita gente. O coveiro é capaz de ter sido uma dessas pessoas.»

Sandra era a melhor amiga de Laura e esposa de João. Por instantes, o cérebro de Filipe entreteve-se a analisar a estranheza do uso do termo “desaguisados” por parte de Laura e não conseguiu perceber o que ela efectivamente dissera.

«Hã?»

«O Firmino era um mulherengo.»

«E?»

«E meteu-se com mulheres casadas. Entre as quais a do coveiro.»

«Não estou a perceber onde queres chegar. O Firmino não morreu há uns cinco anos? Por que é que o coveiro havia de estar a chorar no funeral da viúva do homem que lhe comeu a mulher?»

O homem que antes se virara voltou a fazê-lo. Vestia um fato cinzento-rato de mau corte, uma camisa branca e a inevitável gravata preta. Tinha ar de presidente da junta ou qualquer coisa assim. A irritação no seu olhar era agora indubitável. Filipe concedeu-lhe um trejeito breve mas nada mais; estava demasiado interessado na história para se dar ao trabalho de voltar a fingir contrição.

Sem o olhar, Laura teve um sorriso fugaz. Disse: «Pode ter havido qualquer coisa depois disso.» Estava deslumbrante, de vestido preto. Houvera um par de ocasiões durante a cerimónia na igreja em que Filipe sentira vontade de fazer amor com ela. De uma das vezes, tivera mesmo que disfarçar uma erecção. E não era a primeira vez que algo do género acontecia. Filipe começava a suspeitar que situações inconvenientes despoletavam nele desejos sexuais. Laura disse: «Eles podem ter sido amantes desde aí. Os amantes traídos, entretanto tornados viúvos.»

Filipe voltou a olhar para o coveiro. Era difícil ver nele o amante de alguém. Mas não era menos difícil imaginar a velha D. Lurdes, que Filipe conhecera apenas na capela mortuária, já estendida dentro do caixão, tendo sexo com alguém. De repente, Filipe percebeu que nem conseguia imaginar pessoas de idade avançada tendo sexo. Isso perturbou-o durante alguns segundos. Era a primeira vez que pensava no assunto e pareceu-lhe simultaneamente lógico – porque é que havia de desejar visualizar velhos tendo sexo? – mas também deprimente – como se constituísse uma falha dele, um indício de falta de imaginação e, ao mesmo tempo, um desrespeito para com a sexualidade dos idosos. Como penitência, prometeu a si mesmo procurar vídeos de sexo na terceira idade em sites porno na internet logo que tivesse oportunidade.

Nem de propósito, o padre dizia qualquer coisa acerca de respeitar os outros, coisa que D. Lurdes sempre fizera. Filipe prestou-lhe atenção durante um par de segundos antes de se inclinar de novo para Laura.

«Não seriam eles os amantes logo desde o início, em vez do Firmino e da mulher dele?»

Laura rodou a cabeça para lhe atirar um olhar de censura.

«Tu e a tua mente suja…»

«Se o Firmino era mulherengo, até merecia. E parece-me uma hipótese mais lógica do que a tua versão romântica de duas almas solitárias e feridas encontrando-se na velhice.»

Laura voltou a olhar em frente. O padre parecia estar a terminar.

«A Sandra disse-me uma vez que o caso do Firmino com a mulher do coveiro aconteceu mesmo. O coveiro apanhou-os e deu uma sova na mulher.»

«Hã?» Filipe olhou de novo para o sítio onde o velho continuava apoiado na pá. Parecia não se ter mexido um milímetro. «Estás a falar a sério?»

«Era coisa corrente, por aqui.»

«Fico satisfeito… quer dizer, satisfeito não, fico… sei lá, fico banzado que encares a coisa de forma tão natural.»

Laura encolheu os ombros e disse «Ámen» em coro com o resto das pessoas. O final da cerimónia fez com que toda a gente se descontraísse – que trocasse a perna de apoio, se movimentasse ligeiramente ou falasse com a pessoa do lado. Filipe perguntou: «E o Firmino?»

«O Firmino o quê?»

«Quando o coveiro os apanhou. O que é que fez?»

«Fugiu.»

«Foda-se, não me digas!»

As palavras haviam-lhe saído demasiado altas. Embora o nível de ruído fosse agora superior, várias pessoas voltaram-se e dirigiram-lhe olhares de censura. O tipo que parecia presidente da junta resmungou qualquer coisa para uma mulher baixinha e rechonchuda que dava ideia de ter apenas uma expressão facial, algures entre a resignação e a bovinidade. Se era casada com aquele tipo, pensou Filipe, não se podia estranhar o facto.

Laura deu-lhe uma pancada no braço e puxou-o para trás. «Fala baixo. Só me fazes passar vergonhas!»

Recuaram três ou quatro metros enquanto o pessoal da funerária começava a tratar de descer o caixão para dentro da cova.

«E depois?» perguntou Filipe.

«Depois o quê?» Agora Laura já se permitia encará-lo. Tinha aquele ar de quem lida com uma criancinha que Filipe às vezes achava delicioso, outras insultuoso. Teve vontade de a beijar. Isso sim, havia de dar motivo de conversa pelas terrinhas das redondezas.

«O que aconteceu? O coveiro foi atrás dele ou assim?»

«Não sei, acho que não.»

«Mas logo que teve hipóteses, vingou-se e foi para a cama com a mulher dele.»

«Se tivesse sido apenas vingança achas que o coveiro estaria a chorar?»

Filipe olhou de novo para o homem. Tinha mudado ligeiramente de posição, segurando a pá ao lado do corpo mas já não se apoiando nela, e encontrava-se demasiado longe e quase de costas para Filipe conseguir perceber se ainda chorava. Provavelmente não.

Sandra aproximou-se. Estava quase tão atraente como Laura, apesar de ter umas olheiras profundas. Filipe afastou a velha ideia do ménage à trois. Não era momento para fantasias daquelas.

«Obrigado por terem vindo. Hoje o João está um bocado alheio a tudo mas sei que aprecia que tenham feito a deslocação.»

Enquanto Laura dava uma resposta qualquer, Filipe pensou que João raramente apreciava o que quer que fosse que tivesse a ver com ele, Filipe. Será que se apercebia das fantasias que ele tinha com Sandra? Ou – e Filipe quase deu um salto ao pensar na hipótese – será que tinha fantasias similares com Laura e via Filipe como obstáculo? Ou ainda, considerando que Filipe conhecera Laura e Sandra muito antes de João o fazer, desconfiaria que já fora para a cama com Sandra? (Não fora mas tinha pena. A questão surgia-lhe até como uma falha no seu passado; uma oportunidade perdida.)

«Filipe?»

«Hã? Desculpa.»

Laura suspirou, ligeiramente irritada. «Às vezes parece que desapareces para parte incerta.»

«Desculpa.»

Sandra disse: «Tenho de voltar para junto do João.»

Filipe disse: «Só uma coisa. Reparaste no coveiro?»

«O que é que tem?»

«Estava… hum… parecia muito combalido.»

Sandra encolheu os ombros.

«Não reparei. Mas não digam ao João. Com a disposição com que ele está hoje, mais vale não lhe meter ideias na cabeça.»

E afastou-se. Laura passou o braço esquerdo em torno da cintura de Filipe.

«O que é que se passa contigo?»

«Nada.»

«Vamos andando?»

A maior parte das pessoas já se dirigia para a saída. Apenas João, Sandra e mais três ou quatro pessoas ainda estavam junto à sepultura. O coveiro enterrou a pá na terra solta e começou a atirá-la lá para dentro. Filipe não conseguia ver-lhe a cara.

«Vamos.»

Caminharam até à saída. O cemitério ficava junto a uma pequena capela e a um terreno onde anualmente se realizava uma festa em honra de um santo qualquer. Quando havia casamentos ou funerais, servia de parque de estacionamento.

«Sabes», disse Filipe de repente, «sinto-me como um peixe fora de água nestes meios pequenos. Parece-me que as pessoas seguem uma lógica diferente.»

Susana olhou-o de lado e sorriu. «Tadinho. Um menino citadino, é o que tu és. Só estás habituado a lidar com pessoas no metro. Ou em discotecas.»

«Não gozes.»

«Filipe: as pessoas, sejam novas ou velhas, odeiam-se, apaixonam-se e fodem em todo o lado. Mesmo nos meios pequenos.»

Filipe estremeceu ligeiramente. Destrancou o carro. Contornava-o quando viu João e Sandra sair do cemitério. Hesitou. Disse: «Eu venho já.»

Ignorou o aviso no olhar de Laura. Em passo rápido, voltou a entrar no cemitério, decidido a falar com o coveiro.

Encontrou-o de costas para o corredor de acesso, a atirar pazadas de terra para o buraco. Em poucos minutos, enchera-o quase por completo. Filipe parou a cerca de dois metros. Abriu a boca para falar mas percebeu que não sabia o que dizer. A certeza que o fizera voltar a entrar no cemitério esvaíra-se numa fracção de segundo. O que raio ia perguntar? «Olhe, desculpe, por que é que estava a chorar?» E o que faria se o homem reagisse mal?

Permaneceu ali dez ou quinze segundos, meio esperançado de que o velho notasse a sua presença e o encarasse, e depois, pensando que Laura tinha razão (grande  merda, era mesmo um citadino), deu meia volta e reencaminhou-se para a saída.

 

No carro, Laura manteve o silêncio durante vários minutos antes de perguntar: «Então?»

Filipe já desistira de tentar arranjar uma boa desculpa.

«Não cheguei a falar com ele.»

Laura não fez comentários. Mexeu as pernas. O vestido subiu, expondo-lhe os joelhos. Filipe pensou que era uma merda que ainda faltasse mais de uma hora para chegarem a casa.




José António Abreu @ 21:29

Sab, 19/05/12

 

garfanho: com o ritmo com que eu ando a escrever, não há razões para pressas na leitura... :)
E obrigado.