«Pára com isso.»
«Não consigo. É uma sensação horrível. É como borbulhas, aquelas que ficam com crostas e dão vontade de arrancar, sabes?»
E Manuel escarafunchava o interior do nariz com a ponta do dedo mindinho e tirava de lá pedaços de muco seco que rodava entre a ponta do indicador e do polegar até formar bolinhas e depois atirava para o chão, a menos que estivesse em casa e Filomena, a mulher, andasse por perto, caso em que as ia pôr no balde do lixo ou colocava em pedaços de papel que dobrava cuidadosamente e deixava em cima da mesinha em frente ao televisor, de onde por vezes se esquecia de os retirar, tendo que ser Filomena a fazê-lo. Para além de remexer no interior do nariz, Manuel também se esforçava por retirar cera dos ouvidos com a ponta dos indicadores ou dos mindinhos mas menos amiúde e quase sempre com fracos resultados. Tanto fazia estas coisas distraidamente, sentado dentro do seu velho Fiat Uno ou no sofá a ver o Benfica, como outras pessoas acariciam o lóbulo da orelha ou fazem rodar os polegares um em torno do outro, como de modo consciente, mergulhado numa mistura de desespero (por a sensação se lhe ter tornado intolerável) e irritação (por não ter forças suficientes para o evitar). Filomena detestava vê-lo de dedo enfiado no nariz e fartava-se de lhe pedir para se controlar. «Nem à frente dos meus pais páras com isso e sabes como o meu pai fica…» Ele respondia que lhe era impossível, que o impulso depressa se tornava insuportável. «Quando tento controlar-me não fico bem. Fico com uma impressão horrível. Uma comichão no nariz, a sensação de que lá tenho uma coisa estranha, às vezes até parece viva.» Filomena comprou-lhe lenços de papel e cotonetes mas, por muitos esforços que Manuel fizesse para os usar, voltava sempre ao uso dos dedos. «O hábito vem-me desde criança», justificava-se. «Não consigo parar.» Filomena amava-o e ia aguentando. Tentava nem reparar mas quanto mais esforços fazia para não reparar, mais impressão aquilo lhe fazia também a ela. Curiosamente, os períodos em que Manuel estava constipado eram os melhores pois o ranho ficava demasiado líquido para, por um lado, provocar a tal sensação que tanto o incomodava, e por outro, permitir o uso da ponta dos dedos. Quando estava constipado, Manuel era mesmo forçado a utilizar os lenços de papel, que se amontoavam então na mesinha em frente do televisor até Filomena os levar para o lixo.
Estavam casados há três anos e meio e – mais um factor que não ajudava a que o pai dela encarasse Manuel com bons olhos – ainda não tinham filhos quando Manuel perdeu quatro dedos da mão direita na prensa de fabrico de tabuleiros metálicos que operava no emprego. Ele tinha que colocar a chapa na prensa, carregar num pedal para fazer descer a parte móvel e, depois de ela subir novamente, retirar a chapa já com o formato do tabuleiro. Era um trabalho perigoso que Manuel fazia há anos, sempre com imenso cuidado. Prometera a Filomena nunca facilitar. Mas naquele dia distraiu-se e carregou no pedal cedo demais. Da mão direita, só lhe restou o polegar.
Nem assim o hábito desapareceu mas, durante uns tempos, foi-lhe mais difícil extrair cera da orelha direita. Até ao acidente, apenas usava a mão esquerda na orelha do mesmo lado e, se não teve dificuldades em habituar-se a usá-la também no nariz, empregá-la na orelha direita constituiu um desafio muito maior. Porém, não havia escolha: o polegar, único dedo que lhe restava na mão direita, era demasiado grosso para o canal auditivo. Com esforço e perseverança (duas das suas melhores qualidades, todos o reconheciam), lá conseguiu habituar-se. Filomena, que parecera ficar mais perturbada com o acidente do que ele, dizia: «Nem assim deixas de fazer isso...» Mas dizia-o com resignação, não de forma agressiva. Como se, depois do acidente, aquele acto tivesse passado a ser uma coisa sem grande importância. Já o sogro de Manuel, dono de uma pequena e escura oficina de automóveis, passara a encará-lo ainda com mais desprezo: para além de ser pobre, ter aquele hábito asqueroso e não lhe dar um neto, Manuel nem sequer era capaz de evitar perder os dedos numa máquina que, sendo perigosa, era tão fácil de operar.
Regressou ao trabalho dois meses após o acidente, a mão direita transformada num coto espalmado e arredondado, a que o polegar, espetado na parte lateral, parecia nem pertencer. Filomena não queria que ele voltasse a trabalhar na prensa mas Manuel explicou-lhe que, depois da Inspecção do Trabalho e da Seguradora terem levantado imensos problemas ao patrão por causa das questões de falta de segurança (parece que a lei não permitia que as prensas fossem accionadas por pedal sem que existissem meios de protecção da zona perigosa), todas as prensas da empresa haviam sido modificadas e agora eram comandadas através de dois botões que tinham de ser premidos em simultâneo. «Chama-se comando bimanual», explicou Manuel a Filomena. E havia ainda uma barreira fotoeléctrica para garantir que as mãos do operador não estavam na zona perigosa «Se estiverem, a prensa não fecha». As explicações não sossegaram Filomena mas o que podia ela fazer? Os empregos eram escassos e necessitavam do dinheiro do salário dele, uma vez que o dela, funcionária no refeitório da escola secundária da vila, mal chegava para pagar o empréstimo do apartamento.
Passou-se cerca de um ano. Manuel habituou-se a colocar e a retirar a chapa com a mão esquerda e a premir o botão direito do comando bimanual com o polegar. A princípio, o patrão, um homem gorducho de cinquenta e tal anos que também era dono de um dos quatro cafés e do único talho da vila, não gostara da solução dos dois botões porque a cadência de produção revelava-se ligeiramente mais baixa do que com o pedal. Ainda por cima, do acidente resultara uma multa para a empresa e isso trazia-o irritado. Fora uma batelada de dinheiro, «um roubo», queixava-se a quem encontrava pela frente. Fazia até questão de o dizer repetidamente ao próprio Manuel, dando a entender que Manuel estava obrigado a compensá-lo. Uma vez perguntou-lhe: «Então agora como é que fazes para tirar macacos do nariz, Manel? Usas o dedo mindinho da mão esquerda para os dois buracos? Aposto que também demoras mais…» E riu-se com gosto, enquanto Manuel permanecia em silêncio. Todavia, decorrido um par de meses as coisas voltaram a entrar na rotina.
E então, um dia depois da prensa ter estado desligada para operações de manutenção, Manuel ficou sem quatro dedos e meio da mão esquerda: os quatro correspondentes aos que perdera na mão direita e ainda a extremidade do polegar. Como fora possível, quis saber Filomena depois de ele sair do tratamento. A máquina não era segura? Não parava se a mão estivesse lá dentro? Manuel explicou-lhe que os colegas da manutenção tinham deixado os sistemas desactivados. Um esquecimento ou talvez preguiça de ligar tudo outra vez. «Devíamos arranjar um advogado», disse Filomena. Mas não o fizeram. Não tinham dinheiro para isso e o patrão nunca perdoaria a Manuel se o fizesse. Far-lhe-ia a vida negra.
Apesar das perguntas e das referências ao advogado, Filomena encaixou o acontecido como se já o esperasse. Tornou-se mais calada, mais triste, mais resignada. Manuel detestava vê-la assim mas não sabia o que fazer para a animar. Poucos dias depois de sair do hospital percebeu que ela tinha ainda mais razões do que ele pensava para estar assustada, quando se sentou no sofá ao lado dele e, sem rodeios, lhe comunicou que estava grávida. Então Manuel ficou pelo menos tão assustado como ela.
Mas, inesperadamente, o acidente acabou por ter consequências positivas. Manuel, que, na sequência do primeiro, já recebia uma pequena pensão por incapacidade, foi considerado inapto para o trabalho (o que lhe permitiu evitar o ex-patrão, outra vez às voltas com a Inspecção e mais irritado do que nunca) e passou a receber uma pensão quase igual ao salário. Apesar disso, ainda tentou arranjar outro emprego, de modo a aumentar o rendimento agora que a família ia crescer, mas ninguém se dispôs a aceitar um trabalhador com apenas um polegar e meio no conjunto das duas mãos. Assim, ficava em casa, sentado a ver televisão enquanto Filomena ia para o emprego. O sogro não gostava de o saber inactivo enquanto a filha, grávida, continuava a trabalhar («Lá por não ter dedos, não quer dizer que não possa fazer qualquer coisa; prefere é ficar de papo para o ar a coçar os tomates», ouviu-o dizer uma vez) mas, de forma geral, a gravidez da filha deixara-o menos agressivo. Pelo que o maior problema de Manuel, o problema que lhe ocupava os dias e o desesperava, era ser-lhe agora quase impossível escarafunchar nariz e ouvidos. De facto, sem acessórios era mesmo totalmente impossível. E as cotonetes, que já antes não resultavam, haviam-se tornado ainda mais inúteis, devido à dificuldade que ele tinha em manejá-las. Experimentou segurá-las de todas as maneiras possíveis (entre o polegar direito e palma da mão direita, entre o polegar direito e o coto do polegar esquerdo, entre o polegar direito e a palma da mão esquerda, entre o coto do polegar esquerdo e a palma da mão direita com o polegar direito arqueado por cima do coto do polegar esquerdo de modo a providenciar um acréscimo de estabilidade, entre ambas as palmas) mas nenhuma resultava. Quando, no final do dia, Filomena chegava, cansada, corada e cada vez mais redonda, Manuel encontrava-se sempre à beira do desespero. E então, porque o amava e não suportava vê-lo sofrer, Filomena sentava-se junto dele e, com os seus dedos finos terminados em unhas que fazia questão de arranjar pelo menos todos os domingos à noite, antes da hora de dormir, passava vários minutos a extrair-lhe burriés do nariz e cera dos ouvidos. Depois ia lavar as mãos e fazer o jantar.