José António Abreu @ 15:44

Ter, 01/01/13

Imaginem um robot. Um robot qualquer, com a aparência que mais vos agradar. Humanóide como o C3PO, apenas um braço articulado como os das linhas de montagem de automóveis, até mesmo com o formato de um daqueles aspiradores que se movem sozinhos pela sala. Qualquer um serve, embora humanóide talvez torne as coisas mais fáceis. O robot que imaginaram, como qualquer robot, funciona de acordo com um conjunto de algoritmos: faz B se acontecer A, opta por D se ocorrer C. Tem uma lógica, segue um conjunto de regras definidas e compreensíveis. Pode, em alguns casos, aprender novas regras mas parte sempre das existentes. Agora imaginem que, em resultado de uma sobrecarga eléctrica, de um vírus informático ou de outro motivo qualquer, se dá uma reprogramação aleatória. O robot deixa de fazer B quando acontece A e passa a fazer D. Ou X. Ou F seguido de R. Para um observador, o robot enlouqueceu. Mas ele continua a fazer o que sempre fez: seguir a programação. Não tem forma de saber que um acontecimento inesperado, e talvez até desconhecido para as pessoas que o rodeiam, lhe alterou os algoritmos. Para ele, tudo está normal – ainda que, em vez de trazer uma bebida ao dono, o tente matar.

A loucura dela era assim. Julgo que a loucura das outras pessoas, a loucura 'normal', tende a ser diferente, mais desordenada e imprevisível, mais parecida com o comportamento que se obteria se os circuitos do robot ficassem parcialmente queimados. Mas a dela era assim. Uma loucura constante, digamos. De confiança, até. Uma loucura que se manifestava nos actos (depois de usar um copo rodava-o entre as palmas das mãos cinco vezes para cada lado; antes de vestir as cuecas alisava-as primeiro sobre a cama; depois de se espreguiçar dava sempre três pulinhos, pondo-se em pé se antes estivesse sentada) e especialmente nas palavras: quando alguém na televisão dizia «Boa noite» (no início dos noticiários, por exemplo) levantava-se de um salto e, com um sorriso, gritava: «Filho da puta!», após o que se sentava com a perna direita dobrada sob o corpo. Está bem de ver que  nem «boa noite» nem «filho da puta» tinham para ela o mesmo significado que têm para a maioria de nós. «Filho da puta» era a forma de ela retribuir o que entendia como um piropo. Se quando estávamos sozinhos em casa este comportamento não gerava quaisquer problemas (eu estava habituado, o José Rodrigues dos Santos não a ouvia), quando estávamos na rua ou num restaurante a situação era mais delicada. Bastava-lhe ouvir «boa noite» para responder de imediato. Apesar do sorriso que ela mantinha na face, nem toda a gente reagia bem.

Para mim, o mais difícil foi perceber que não havia uma relação lógica entre os termos normais e os termos que ela utilizava. Por exemplo: se a «boa noite» correspondia «és lindo» (ou «és linda»), a «bom dia» correspondia «fazes sombra». «Não» era «direita», «sim» era «verdade», «vermelho» era «esquerda». E, já agora,  a «filho da puta» correspondia, acreditem ou não, «maçaroca de milho». Ela tanto usava substitutos para expressões como para palavras individuais, o que tornava ainda mais difícil decorar-lhe o léxico. Se, em «maçaroca de milho», «maçaroca» significava «filho» (ou «filha»), usada só por si queria dizer «marmelada». Ouvi-a centenas de vezes pedir, durante os pequenos-almoços («barcos à vela») que tomávamos na nossa pequena («três») cozinha («camisa») empoleirados («regatear») em bancos («camiões») estreitos e altos («sorvetes»), parecidos com os que se podem encontrar junto aos balcões («agrafadores») de alguns bares («espirros»): «festinhas maçaroca» («passa-me a marmelada») e «roçar maçaroca na trave» («põe-me marmelada no pão»).

O mais extraordinário é que, embora com significados diferentes, ela usava as mesmas palavras das outras pessoas. Apenas em meia dúzia de casos, vá-se lá saber porquê, inventara termos: «crotético», por exemplo, significava «amarelo»; e «bruntanetilíaco», «talvez».

E, como o robot, nunca variava. O dicionário no interior da cabeça dela podia ser diferente do das outras pessoas mas era constante. Talvez com duas ligeiras excepções: o uso dos artigos e os tempos verbais. Nestes campos, as regras não pareciam cem por cento fixas. Em «festinhas maçaroca», por exemplo (relembre-se: «passa-me a marmelada»), dispensava o artigo definido; mas em «maçaroca na trave» («marmelada no pão») o artigo encontrava-se lá, embora tivesse mudado de género. E, se em alguns casos trocara verbos por outros verbos e mantinha os tempos verbais, noutros trocara-os por substantivos, adjectivos ou advérbios e usava uma única expressão para todos os tempos verbais: «festinhas» significava «passa-me» mas também «passar», «passou», «passarei», etc. Quaisquer associações lógicas funcionavam apenas no cérebro dela.

Já era assim quando a conheci. Eu tinha trinta e quatro anos e ela vinte e cinco. Encontrámo-nos pela primeira vez na casa de uma das minhas tias, que estava ligada a uma associação qualquer de solidariedade social. Já não me lembro por que a fui visitar mas lembro-me – oh, quão me lembro – de ter sido uma rapariga minha desconhecida a abrir-me a porta. Tinha cabelo castanho liso que lhe chegava pouco abaixo dos ombros, olhos verdes, nariz pequeno e lábios um tudo-nada finos. Após um instante de surpresa, eu disse: «Olá.»

A expressão dela fechou-se. Perguntei-me se estaria à espera de outra pessoa e ficara desiludida ao ver-me. «Posso entrar? Sou o sobrinho da D. Amélia». Pareceu vacilar um instante e depois perguntou: «Boa trotinete?»

Hesitei, olhei para trás. Não vi qualquer trotinete. Voltei a encará-la.

«Er... não. Vim a pé.»

Pareceu confusa, algo que acontecia frequentemente: de facto, se, para as outras pessoas, o que ela dizia não fazia sentido, ela tinha o mesmo problema com as frases alheias. Ficámos em silêncio durante vários segundos. Tentei sorrir. Disse: «Posso entrar?»

Ela animou-se. Respondeu: «Balão.»

Continuava na minha frente, a impedir-me a passagem. Tentava decidir o que fazer quando a cabeça da minha tia surgiu por cima do ombro esquerdo dela. Sem falar, puxou a rapariga pelo braço e, sem dificuldade, fê-la recuar. Depois soltou-lhe o braço, agarrou o meu e arrastou-me até à cozinha. Disse: «Não quis ir para a sala porque está lá gente e era mais difícil explicar. Em especial porque ela se vai intrometendo e é uma confusão.»

«O que é que ela tem?»

Abanou a cabeça com ar pesaroso. «Ela não é normal.»

«Não é normal em que sentido?»

«Chama-se Cristina e é adorável. Mas o cérebro dela não funciona bem. Não diz coisa com coisa.»

«Como a maior parte das pessoas que conheço. Incluindo eu – e, às vezes, a tia.»

Ignorou-me. «Tem uma linguagem própria. Para ela, as palavras significam outra coisa.»

Se alguém me perguntasse, eu diria que a minha expressão devia ser aparvalhada mas, considerando a inquietação da minha tia, se calhar já revelava essencialmente fascínio.

«Deixa a rapariga em paz», pediu. «Não te metas em problemas.»

Mas a minha curiosidade havia sido despertada. Só larguei a rapariga quando as duas mulheres com quem ela estava, ambas amigas da minha tia, uma delas tia de Cristina (a mãe, soube-o mais tarde, falecera há meia dúzia de anos e o pai desaparecera pouco depois de ela nascer), saíram, levando-a com elas. Tendo percebido o meu interesse, a minha tia passou dez minutos a avisar-me para não me meter com «a rapariga». Não resultou, claro. Fui visitá-la no dia seguinte e quase todos os dias que se seguiram a esse. Para além da beleza dela, fascinava-me aquele mundo próprio, aquela lógica intransigente, aquela capacidade de criar uma linguagem que mais ninguém entendia. As nossas conversas – durante muito tempo, vigiadas pela tia desconfiada – pareciam jogos de palavras aleatórias, em que ela entrava com um prazer infantil e eu hesitava, erguia as mãos e mordia os lábios, tentando, mais intensamente do que em qualquer outra ocasião no passado, compreender o que me diziam. Cristina ensinou-me a ouvir; a, pela primeira vez na vida, escutar verdadeiramente o que alguém me dizia e a aplicar todas as minhas capacidades na descodificação do que me era dito. Nenhuma conversa com ela permitia distracções ou desinteresse.

Evidentemente, não foi fácil. Foi muito mais difícil do que aprender uma língua estrangeira porque não havia associações possíveis nem qualquer lógica subjacente. Eu limitava-me a anotar todos os seus termos e a decorá-los. De início, cometi erro atrás de erro. (Na verdade – e estremeço ao escrever isto –, nunca deixei de os cometer.) Mas ela mostrou-se sempre simpática e relaxada, pronta a ajudar-me: parecia ver os meus erros como simples tontice, como os de uma criança que ainda troca palavras ou não as consegue pronunciar correctamente.

Também não foi fácil lidar com os outros. Com as nossas famílias, desde logo. Cristina vivia mais ou menos resguardada do mundo, contactando apenas familiares e amigas da tia, para além dos médicos a que ia duas vezes por mês. Houvera um tempo em que a medicina se interessara seriamente por ela. Tinham sido efectuadas dezenas de testes ao seu cérebro, tivera de submeter-se a consultas com os mais variados «especialistas», haviam-se discutido viagens ao estrangeiro e tratamentos alternativos – tudo para nada, pelo menos no que lhe dizia respeito (desconheço se a medicina evoluiu alguma coisa com todo esse estudo). Às vezes eu perguntava-me se teria sido melhor que algum dos especialistas tivesse encontrado a cura. Chegava à conclusão de que, para ela, provavelmente teria sido. (Agora – como poderia ser de outra forma? – já não tenho dúvidas.) Para mim, todavia, achava que não. Fosse ela uma rapariga 'normal', é possível que não me tivesse despertado tanto interesse. Provavelmente nem nos teríamos conhecido, pois não haveria razão para ela acompanhar a tia com tanta frequência. Enfim, de que vale perder tempo a pensar nisto? A medicina ainda não soluciona (nem sequer percebe) todos os problemas do ser humano e Cristina era como era. Tal como os membros das nossas famílias – incluindo os meus pais – que viam com apreensão o nosso relacionamento.

Depois de passarmos a viver juntos, eu fazia questão de que tivéssemos uma vida tão normal quanto possível. Arrendámos um apartamento perto do meu emprego, o que nos permitia almoçar juntos todos os dias. A princípio, receando deixá-la andar sozinha pelas ruas, era eu que ia almoçar com ela mas depois percebi que não a podia manter presa em casa e, tendo-me certificado de que conhecia bem o curto trajecto, aceitei que por vezes viesse ter comigo. Ao fim-de-semana saíamos e dávamos passeios no parque e sentávamos em esplanadas a observar as outras pessoas. A nossa conversa era sempre motivo de interesse para os ocupantes das mesas mais próximas, que nos olhavam de soslaio, uns divertidos, outros ligeiramente incomodados, como se receassem que a qualquer momento pudéssemos revelar-nos maníacos assassinos. Ao princípio, eu próprio ficava incomodado, percebendo estar a ser classificado como louco, mas depois habituei-me. No fundo, que me importava a reacção alheia?

Nunca casámos. Cheguei a pensar nisso mas não conseguia ver como a poderia levar a dizer «sim» («verdade») no momento certo quando ela nem sequer entenderia a pergunta. Sendo que não bastaria ela compreender a pergunta: seria ainda preciso convencer as autoridades de que ela casava voluntariamente, apesar de não responder «sim» mas «verdade». De qualquer modo, casar não me era fundamental e, se cheguei a sondá-la acerca do assunto, foi por receio de que ela o desejasse e a minha falta de proposta a desiludisse. Afinal, não deu grande importância à questão.

Mas houve momentos difíceis, claro, temas que, esses sim, ela considerava importantes. Por exemplo, Cristina gostava de crianças e desejava ser mãe. Mas ter filhos com ela era um passo que eu não me atrevia a dar. Os médicos que a acompanhavam (inúteis, uma vez que nem sequer se davam ao trabalho de tentar comunicar verdadeiramente com ela) garantiam existir sérias hipóteses do problema dela ser geneticamente transmissível. Tal possibilidade era já bastante assustadora mas eu tinha ainda outros receios. Mesmo que os nossos filhos nascessem 'normais', que língua aprenderiam? A normal ou a nossa (minha e dela)? Como poderia uma criança crescer numa casa em que se falava de modo totalmente diferente da usada pelas restantes pessoas? Como poderia eu ensinar-lhes o significado habitual das palavras enquanto Cristina falava com eles usando outro? Por tudo isto, sempre que ela abordava o assunto, eu fugia cobardemente e dava desculpas esfarrapadas.

Apesar dos problemas, das ocasionais incompreensões e discussões, vivemos juntos três anos e meio de quase total felicidade. Sim, apenas três anos e meio. Um instante na vida de qualquer pessoa.

Foi numa tarde de sábado, por volta das quatro da tarde. Quando Cristina me largou a mão e começou a atravessar a rua, eu vi a carrinha. Em pânico, gritei: «Cuidado!» Ela parou e rodou com um sorriso amplo na face. Antes de poder falar, a carrinha atropelou-a. Foi projectada vários metros e ficou estendida no asfalto, inconsciente, com sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. Corri para ela, agarrei-a, gritei-lhe, mas não voltou a recuperar os sentidos.

Passaram semanas e sinto-lhe a falta. Houve muitos períodos em que não foi fácil viver com ela. Em que tive vontade de desistir. Ao pensar nesses momentos, sinto vergonha. Parece-me que fui muitas vezes fraco, que não estive à altura. Mas pior, incomensuravelmente pior, é não conseguir deixar de pensar que o meu erro pode ter sido intencional. Minutos antes do acidente, tínhamos discutido. Foi por causa da discussão que ela me largou a mão e começou a atravessar a rua sozinha. Disse-me: «Sopra» («larga» ou «larga-me») e saiu disparada. E, desde esse instante, não tenho parado de me questionar se, quando gritei «cuidado!», o fiz verdadeiramente em pânico, recorrendo à linguagem que me ensinaram desde criança, ou com perfeita consciência de que, para ela, «cuidado» significava todas as variações de «amar», incluindo «amo-te».




José António Abreu @ 08:29

Sex, 08/03/13

 

Talia: obrigadíssimo.
(Eu devia forçar-me a acabar os que tenho iniciados...)