Upa! Go.
O senhor Lima mora no quinto andar. Os vidros das janelas estão sujos. Do lado de fora da janela da sala um pombo levanta voo, esbaforido. O senhor Lima tem setenta e oito anos e, apesar de estar praticamente cego e surdo, não sai da frente da televisão. São sete e meia da tarde e lá está ele, assistindo ao Preço Certo. No fundo, é o programa adequado para o senhor Lima. Como o Fernando Mendes quase grita e, apesar de baixo, é bastante volumoso, o senhor Lima consegue facilmente perceber quando ele se encontra no ecrã. O senhor Lima está sozinho. A filha que o visitava de vez em quando foi para a Suiça embalar vegetais pelo triplo do que ganhava cá e, segundo se diz no prédio, o Sr. Lima não tem mais familiares vivos. Uma assistente social traz-lhe comida e uma senhora limpa-lhe a casa todas as semanas mas raramente qualquer outra pessoa sobe para falar com ele. Por seu turno, o senhor Lima também evita sair do apartamento. Põe o volume da televisão no máximo e fala com ela.
Considerando o barulho do televisor do senhor Lima, é uma sorte que o quarto andar esteja vago. O casal que lá vivia mudou-se há três meses. Terá arranjado melhor, ou pelo menos mais silencioso, ter-se-á separado e ido cada um para seu lado, terá desistido da cidade e regressado à vila de onde viera. As pessoas no prédio não conhecem a justificação porque mal tiveram tempo de conhecer os elementos do casal: um rapaz e uma rapariga de vinte e tal anos, com aspecto desmazelado, que pareciam estar sempre a fumar. Ocuparam o apartamento apenas durante oito meses e, embora saíssem e entrassem com frequência, não se punham com conversas quando se cruzavam com outros residentes. Bom dia e boa tarde e pouco mais. Apesar de nunca terem incomodado ninguém (nem sequer faziam festas em casa, ao contrário de outros ocupantes do quarto andar no passado), quase toda a gente no prédio ficou satisfeita quando eles se foram embora. Toda a gente menos Mónica, os estudantes do terceiro andar e o Sr. Lima, para quem eles lá estarem ou não é indiferente. (Enfim, isto não será inteiramente verdade: um dos estudantes teve uma certa pena, porque chegara a alimentar fantasias com a rapariga depois de uma noite a ouvir gritar durante um acto sexual que parecera interminável.)
Na sala do apartamento do terceiro andar também não se vê ninguém. Mas aqui, como já foi referido, moram estudantes universitários. Dois estudantes, para ser exacto. Um chama-se Pedro, nasceu em Baião e encontra-se neste momento na fila para uma das cantinas universitárias. Depois do jantar, tenciona ir ao cinema com a actual namorada. Ainda não sabe que filme ela escolherá mas ele está preparado para aguentar uma comédia romântica em troca de sexo. O outro estudante chama-se Rui. Nasceu em Vouzela, onde os pais e a irmã continuam a residir, e também não está em casa. Rui não tem namorada. Há meses que está apaixonado por Mónica, que vive no segundo andar, mas ela não lhe liga. Rui viu-a recentemente com um rapaz do seu curso — um tipo alto e atlético, que conduz um Honda Civic preto com jantes e ponteira de escape cromadas e dá sempre uma aceleradela antes de desligar o motor. Como os estudos também não correm bem a Rui e o pai foi despedido da fábrica onde trabalhava há quase vinte anos, circunstância que pode obrigar Rui a abandonar a universidade e a irmã, aluna brilhante, a nunca chegar entrar numa, ele anda deprimido e já nem tenta disfarçar. Mas ninguém lhe presta atenção. Nem sequer Pedro que, obtendo boas notas sem esforço aparente, nunca parecendo ter falta de dinheiro e sendo capaz de levar raparigas para a cama menos de cinco minutos depois de as conhecer, tem mais em que pensar do que nas dificuldades do colega de apartamento.
A mãe de Mónica está a aspirar o chão da sala. Aspirar a sala pode ser algo estranho de se fazer à hora do jantar mas a estranheza diminui se for a mãe de Mónica a fazê-lo. É uma mulher roliça, cujo maior prazer é disparar ordens e frases assassinas. Porém, negaria se lhe dissessem que tira prazer disso. Muito pelo contrário, garantiria, seria uma mulher feliz se pudesse não ter de andar sempre preocupada com as outras pessoas. Tem uma frutaria por onde passaram dezenas de empregados ao longo dos anos. A funcionária actual aguenta há quase três. Trata-se de um recorde que se deve ao facto de a rapariga ser praticamente surda. Como no caso do Sr. Lima e do Fernando Mendes, é uma combinação ideal: a mãe de Mónica insulta-a mas ela não reage (em parte, porque depressa aprendeu que é melhor assim) e, por ser surda, «coitada», a mãe de Mónica não a despede (no fundo, não é má pessoa). A mãe de Mónica não gosta de ver Rui, o estudante do piso de cima, andar atrás da filha. (Toda a gente no prédio está a par dos sentimentos de Rui, excepto – talvez – o senhor Lima.) A mãe de Mónica considera Rui um rapaz estranho, muito metido consigo próprio. Ainda por cima, nas poucas conversas que teve com ele, ficou a saber que estuda letras e que os pais são pobres. Mónica é demasiado nova e merece melhor, pensa ela – e também o diz. Rui ainda teve esperanças de que o pai de Mónica gostasse dele mas o pai de Mónica não se dá ao trabalho de arranjar opiniões quando a mulher já o fez. Claro que Rui sabe que o mais importante seria agradar à própria Mónica. Mas também aí falhou. Mónica é simpática com ele mas afastou-o de todas as vezes que ele tentou aproximar-se. Rui não percebe como pode ela gostar do idiota do Civic. Pergunta-se se será por causa do Civic mas depois recrimina-se – Mónica não é esse género de rapariga. A mãe de Mónica empurra o tubo do aspirador para a frente e para trás com um ar de cansaço e irritação. Tudo normal, portanto. E quanto à própria Mónica, não se encontra à vista, o que é sempre pena porque Mónica é uma rapariga bastante atraente.
Cá está ela, afinal, no primeiro andar, provavelmente ajudando a D. Alice que, além de vizinha, é tia de Mónica. Não sendo uma mulher feia, D. Alice nunca casou. Dizem que deixou de confiar nos homens quando, há mais duas décadas, se apaixonou por um que acabou por lhe roubar dinheiro e fugir para o estrangeiro. Mas D. Alice não se encontra na sala; estará na cozinha ou na casa de banho ou talvez no quarto. Mónica sim, está na sala. É alta, com mais de um metro e setenta. Tem cabelo castanho-escuro, comprido e quase liso. O rosto é largo, com um formato ligeiramente quadrado. Os olhos são grandes e o nariz pequeno. É um rosto que Rui, o estudante do terceiro andar, acha exótico e inebriante. Mas ele não acha isso só do rosto, claro. Da ponta da cabeça à ponta dos pés, Mónica é a rapariga mais atraente que ele alguma vez beijou. Ah sim, chegaram a beijar-se. Rui tomara a iniciativa e por instantes parecera que tudo daria certo, que ela corresponderia, que as fantasias dele estavam prestes a concretizar-se. Mas, de repente, Mónica afastara a cabeça e depois, com ambas as mãos, tentara afastar todo o corpo. Nessa altura Rui cometera um erro monumental. Prendera-a nos braços, tentara beijá-la de novo. Houve mais um instante em que tudo pareceu possível mas Rui sabia agora que tal se devera apenas à surpresa que Mónica sentira – surpresa não por ele a desejar mas por ser capaz de usar a força. Mónica empurrara-o violentamente, ele tentara mantê-la agarrada, assustado com a raiva que lhe via nos olhos, e ela dera-lhe uma bofetada. Isso parara tudo, fazendo cair sobre Rui a consciência não só da estupidez do acto que cometera mas também de quão ridícula toda a cena era – como se pertencesse a uma telenovela ou a um mau filme. Decorreram entretanto dois dias e Rui ainda não teve coragem de encarar Mónica novamente. De resto, para que o faria? Ficou claro que nada entre eles poderá alguma vez dar certo. Ela prefere o tipo do Honda. Mónica está de pé no meio da sala, com um pedaço de papel na mão. Provavelmente uma lista das compras que fará para a tia no dia seguinte, antes de regressar a casa. D. Alice deve ter ido buscar dinheiro para lhe dar. Subitamente, Mónica ergue os olhos para a janela e o seu rosto – belíssimo – mostra surpresa e susto. O que, de certa maneira, não deixa de constituir um bom sinal.
O rés-do-chão é ocupado pela senhora Fátima. É gorda e, desde a morte do marido, que a tratava abaixo de cão, vive com cinco gatos, todos tão gordos quanto ela. Dois estão deitados no parapeito da janela da sala. De repente, apesar da gordura, saltam como se tivessem molas sob o corpo. É incrível como ainda o conseguem fazer. Mas o rés-do-chão passa depressa.
Splat!
O último som que Rui ouve, enquanto se esmaga contra o passeio, é o grito agudo de uma mulher.
E o senhor Lima, terá percebido o que aconteceu no prédio ou está no suspense do preço do frigorífico?