José António Abreu @ 18:43

Qua, 30/11/11

Passaram dois meses. São sete e meia da noite. Ela chega a casa, pousa a carteira e a pasta com o computador portátil no chão da entrada, tira os sapatos e, descalça, vai à sala meter um disco no leitor de CDs. Jazz, clássica, qualquer coisa suave. Carrega no botão que liga o amplificador e tem um instante de imobilidade até ouvir o estalido indicador de que ele está pronto a funcionar. Não regula o volume. Enquanto a música arranca volta à entrada, pega nos sapatos e segue para o quarto. Troca a saia, a blusa e o casaco por uma t-shirt e umas calças de desporto. Entra na casa de banho, urina, tira a maquilhagem, lava a cara, coloca creme hidratante e anti-rugas. Regressa ao quarto. Arruma os sapatos numa caixa que mete dentro do roupeiro. A música mal se ouve. É um ruído de fundo, um murmúrio que parece chegar do apartamento de um vizinho. Ela pensa em deixar-se cair sobre a cama mas não o faz. Caminha de novo em direcção à entrada. A cada passo, a música vai ficando mais intensa. Ela passa em frente da porta da sala e segue para a cozinha, onde a intensidade é outra vez mais baixa, embora não tanto como no quarto. Tira um copo de um armário e enche-o até meio com um pacote de sumo de laranja que retira do frigorífico. Bebe. Pensa em jantar mas não tem fome. Mais tarde. Recoloca o pacote de sumo no frigorífico. A cozinha está fria, desagradável. Ela caminha até à sala. Percebe que não está muito melhor. É como se, na dúzia de horas em que esteve ausente, o apartamento tivesse adquirido as características de um espaço abandonado. Liga o aquecedor existente numa das paredes, ao lado da mesa de jantar. Senta-se no sofá, directamente em frente do televisor. Por baixo deste, numa prateleira larga, colocados lado a lado, encontram-se o leitor de CDs e o amplificador. A cerca de um metro de cada lado do televisor estão as colunas, altas e esguias. Ela pega no comando da televisão mas não carrega em qualquer botão. Deixa-se ficar a ouvir a música. Olha ligeiramente para baixo e para a direita, para o sítio onde está o amplificador. Não relembra as discussões. Ou talvez o faça, de um modo difuso. Os homens e as suas ridículas prioridades. Dois mil euros por um paralelipípedo de metal cinzento-escuro cuja função ela nem percebe bem. Amplifica o sinal que recebe do leitor, dizia ele, e envia-o para as colunas. Ela anuía com a cabeça, sem prestar verdadeira atenção. Sabia apenas que, entre leitor de CDs, amplificador e colunas ele tinha gasto mais de cinco mil euros. O amplificador havia gerado as maiores tensões porque fora a última peça, tendo substituído um outro, muito mais barato, que ele possuía desde os tempos da universidade.

Amplificador. Murmura a palavra no interior da cabeça, separando-a em duas. Amplifica dor. Agora sim, relembra as discussões. Quase sempre sem gritos, frequentemente em silêncio, discussões por gestos deliberados e expressões sofridas, numa tensão pesada e enjoativa. Um mundo de acusações e ressentimentos. Ao longo dos anos (poucos anos, na verdade) haviam-se tornado especialistas em acusações e ressentimentos. Com ou sem razão de ser, havia deixado de importar. O tempo encarregara-se de fazer diminuir a relevância daquilo que o outro efectivamente pensava e sentia. É inevitável, reflecte ela agora: de «quero conhecer-te» passamos para «já te conheço e não gosto do que vejo». E para «sei que também não gostas do que vês». Acusação e ressentimento. Os objectos haviam-se então tornado mais importantes, operando como escape e teste. Os dele: o sistema de som, a máquina fotográfica, o LCD gigante. Os dela: a roupa, os sapatos, os tratamentos de beleza. «Os meus vêem-se», dizia ele, «e tu também os utilizas.» Como o amplificador. «Também ouves música.» Ela resistira à compra do amplificador baseada numa lógica que tanto tinha toda a razão de ser como não tinha. Não precisavam dele, o outro ainda funcionava, os ganhos seriam mínimos. Mas ele não concordava e podiam comprá-lo sem dificuldades. Cansada, acabara por ceder. Acabava sempre. Mas, como noutros casos, nada ficara exactamente igual. Desde essa altura, sempre que estavam juntos na sala parecia existir um elemento acusador. Um post-it permanente. Quase uma terceira presença. E, de cada vez que punha um disco a tocar, ele parecia buscar, entre a agressividade e o receio, confirmação de que tivera razão. De que o som era muitíssimo melhor. Obviamente, ela não lha dava. Limitava-se a remeter-se ao silêncio. (Mas era um pouco melhor, na realidade.)

Agora, passados que são dois meses, ela chega a casa e liga o sistema de som. Durante o dia diz para si mesma que tem de o vender. Vender leitor de CDs, colunas e amplificador. Eliminar a sombra, o fantasma, a culpa. Mas ainda não consegue. É como se a prova da teimosia dele se tivesse transformado em algo de bom. Como se, agora, todas as recordações fossem boas ou, pelo menos, servissem um propósito. Sabe que tem de lutar. Que tem de ultrapassar esta fase. Olha para a pasta que ficou na entrada, dentro da qual está o computador portátil. Depois roda a cabeça novamente, apoia-a nas almofadas do sofá e fecha os olhos. Amanhã. Amanhã procurará um site onde se vendam coisas destas.