José António Abreu @ 08:44

Seg, 05/03/12

Folheio uma revista quando Susana se senta a meu lado no sofá. Fá-lo devagar, como se procurasse não me incomodar. A almofada afunda-se com um suspiro quase inaudível e um tinido metálico apenas ligeiramente mais forte. O televisor está desligado e ela deixa-o assim. Também não pega no livro que anda a ler, pousado na pequena mesa colocada entre o sofá e a TV. Fica apenas sentada, olhando em frente. Baixo a revista. Rodamos a cabeça simultaneamente. Olhamo-nos nos olhos. Ela diz: «Tenho que falar contigo.» Parece cansada. Não é novidade – há pelo menos dois anos que não é novidade. Trata-se de um cansaço denso e triste que suponho partilhar. Mas hoje qualquer coisa está diferente. A postura é mais rígida, a voz tem pequenas oscilações, o medo nos olhos está mais brilhante. A relutância que é agora habitual, mesmo quando nada diz ou faz, a reserva que passou a fazer parte dela, uma área restrita a que não consigo aceder, está mais intensa. É como se tivesse acabado de espreitar por uma porta entreaberta e assistido a uma cena perturbante que preferiria não ter de partilhar comigo. Sinto mais perplexidade do que receio, em grande medida porque o nível de receio já não apresenta flutuações significativas. A perplexidade, essa é fácil de explicar: por esta altura, nenhuma visão deveria surpreender Susana. Como sucede comigo, todas lhe deviam ser familiares. É talvez por estar a pensar nisto que não reajo às palavras que se seguem. Não de forma visível, pelo menos. A frase – curta, entoada tanto com os olhos como com a boca – permanece entre nós. Consigo vê-la, o ar quente e adocicado dos pulmões de Susana formando as palavras «Estou grávida» como nuvens ténues em céu limpo. As palavras começam a girar, primeiro devagar, depois cada vez mais depressa até serem apenas uma mancha que me entontece e faz ter vontade de vomitar.

 

A gravidez decorreu sem problemas, excepção feita à sensação incómoda de que a nossa vida estava prestes a mudar. Suponho que todos os casais em vias de trazer o seu primeiro filho ao mundo têm essa sensação. Porém, duvido que encarem o facto como uma ameaça tão monumental como Susana e eu encarávamos. A nossa relação estava fortemente ancorada em nós os dois. Desde o momento em que decidíramos viver juntos havíamo-nos dedicado a criar um casulo à nossa volta; dentro dele estávamos confortáveis, quase sem noção do que se passava no exterior. Vivíamos numa bolha transparente ligada ao resto do universo – ao universo dos outros – por três ou quatro canais estreitos. Era assim que desejávamos; era assim que nos sentíamos bem. Isto tornou-se especialmente verdade após a mudança para Espanha. As nossas famílias estavam noutro país, tal como os poucos amigos a quem ainda se podia aplicar a classificação. Esta criança era um ponto de viragem e um teste.

Nunca considerámos a hipótese de efectuar um aborto – juro-to, Patrícia. Tínhamos apenas medo de não conseguirmos ser o tipo de pais que qualquer criança merece e que uma criança nos afastasse um do outro: inevitavelmente, o foco que cada um de nós apontava ao outro, e apenas ao outro, iria mover-se para, ou alargar-se a, uma terceira pessoa – ainda que, na realidade,  essa pessoa fosse parte de nós.

 

Adorávamos o país basco – ou, para ser mais preciso, Navarra. Por causa da paisagem, por causa da liberdade de ninguém nos conhecer ou chatear, por causa da maneira de ser dos bascos, orgulhosos, bruscos, eles próprios reservados. A decisão de nos mudarmos não fora fácil. Depois de sair da universidade com uma licenciatura em engenharia mecânica trabalhei quase cinco anos numa fábrica de aglomerados de madeira. Não fazendo ondas e mostrando disponibilidade constante, subi rapidamente de estagiário a director-adjunto da produção. Quando a companhia proprietária da fábrica adquiriu um grupo espanhol do mesmo sector, fui convidado para liderar o projecto de modernização de uma das fábricas espanholas. Seria uma mudança temporária – um ano, catorze meses no máximo –, durante a qual supervisionaria o desmantelamento da velha prensa de oito pisos, a transferir para África, e a instalação de uma nova prensa contínua de trinta e cinco metros de comprimento. Era um projecto aliciante que, por causa de Susana, eu não desejava integrar. Contudo, sabia não poder recusar a oferta mantendo esperanças de subir na hierarquia da empresa. Há oportunidades que são testes. Recusá-las equivale a falhá-los. E, no fim de contas, era uma promoção.

Susana reagiu mal. Andou deprimida durante vários dias mas, no final, acabou por assumir a decisão – por lhe parecer a escolha racional e por medo: por medo de que, apesar das minhas garantias de que não tinha vontade de aceitar a oferta, eu a viesse a culpar no futuro por tê-la recusado. (Nunca o faria.) Quando ela disse: «Acho que deves ir», senti medo. Enquanto ela fosse contra, eu podia evitar analisar a minha própria vontade que, de resto, se contradizia a cada instante. Aceitei. Por cobardia. Na esperança de que tudo acabasse por dar certo.

(Não sou religioso ou, pelo menos, para grande desilusão dos meus pais, não acredito verdadeiramente num Deus omnisciente mas não posso evitar pensar como as coisas acabaram por corresponder aos receios de Susana: arrependo-me hoje de ter aceitado o convite e suponho que a poderia culpar pela decisão e, por conseguinte, por tudo o que se seguiu – mas não o farei. Não a culpo por nada.)

Nos primeiros tempos estava sozinho e estar sozinho era uma situação a que já não me encontrava habituado. Susana e eu não nos separáramos por mais de um dia completo desde muito antes do nosso casamento. Talvez seja por isso que não consigo recordar esses meses com nitidez: parecem-me um amontoado de dias iguais, em que nada sobressai. Como se, por terem sido passados longe de Susana, os tivesse arrumado num baú de coisas sem importância. Ou talvez a intensidade do que se passou depois tenha obliterado o que ocorreu antes. Ou, ainda, talvez esteja apenas a dramatizar, a recusar acontecimentos e pormenores perfeitamente banais. Faço isso, por vezes. Seja como for: aqueles meses foram uma época de trabalho intenso, em que passei mais horas na fábrica do que fora dela, em que, a cada manhã e a cada noite, passava longos períodos ao telefone com Susana. Nunca parecia haver algo verdadeiramente significativo para dizer mas não creio que alguma vez nos tenha faltado assunto. Regressava a Portugal um fim-de-semana por mês. Abraçava e beijava Susana com uma alegria temperada pela sensação de desperdício, de tempo perdido. Esforçávamo-nos para que os fins-de-semana fossem aproveitados ao máximo mas havia sempre a sensação de que tudo era a prazo. Quase não saíamos de casa. Por vezes, nem chegava a visitar os meus pais. Ficavam irritados e demonstravam-no nas conversas telefónicas e nos encontros seguintes. Pouco me importava. (Quanto aos pais de Susana, a mãe morrera anos antes e o pai não fazia questão de me rever, nem eu a ele.) Eu e Susana fazíamos amor com uma intensidade – e ferocidade – que nunca havíamos experimentado. A despedida, no domingo à noite, era o momento mais doloroso. Por várias vezes pedi a Susana que não se deslocasse ao aeroporto. Nunca acedeu. Em todos essas despedidas, em todos esses fins-de-semana, lamentei a decisão de ter aceitado o convite. A minha vida em Espanha, por absorvente que o trabalho fosse  (e tem de ser esta a razão para o período me surgir indistinto), não existia. A minha vida estava aqui.

(Posso estar a exagerar. Posso estar a ser insuportavelmente romântico. E então? Pobre de quem nunca experimentou algo assim e se vê impelido a desdenhar. No que a mim e a Susana diz respeito, aquele período foi o segundo mais duro da nossa vida. Nem a adolescência, não propriamente simples para qualquer de nós, se lhe comparou. Mas aqueles meses serviram igualmente para reforçar a força cósmica – amor, na falta de termo menos gasto – que nos unia.)

 

(continua depois de amanhã)