José António Abreu @ 08:40

Qua, 07/03/12

Quase no final da renovação da linha produtiva, o presidente do conselho de administração da empresa deslocou-se a Navarra. Após a visita, convidou-me para assumir a direcção geral da unidade. Não fui apanhado de surpresa: ponderara a hipótese de me fazerem aquele convite inúmeras vezes. Declinei a oferta. Ele sorriu perante a minha resposta pronta, quase precipitada, e disse-me para pensar no assunto. No dia seguinte, o responsável pelas operações em Espanha veio falar comigo: aumentar-me-iam significativamente o salário, forneceriam carro e casa, apoiariam a mudança de Susana. E – ele era basco e tinha orgulho na voz quando o disse – sabiam que eu apreciava a região. Que razões podia ter para recusar? Pedi tempo para reflectir.

Deixar o universo familiar e condicionado em que vivêramos antes de eu ir para Espanha — os meus pais, presos em rotinas de cansaço e recriminação, o pai de Susana, prestes a casar novamente, meia dúzia de amigos — por um ambiente totalmente novo… Por que não? E todavia, ao contar a Susana pelo telefone, podia sentir a dúvida propagar-se através da linha. No fim-de-semana seguinte em que estivemos juntos havia tensão no ar. Durante a noite de Sexta e parte de Sábado evitámos o assunto. Finalmente, Susana perguntou: «Queres ir?» Havia uma seriedade na voz dela que eu conhecia bem — usava aquele tom quando entendia ter chegado a altura de tomar uma decisão. Tergiversar seria uma cobardia da minha parte. Respondi: «Honestamente, sim. Mas eu já estou habituado. As mudanças mais significativas seriam para ti.»

A carreira profissional de Susana passara por duas fases distintas. Depois de terminar a licenciatura em Português-Francês substituíra durante alguns meses uma professora da quarta classe a quem fora diagnosticado cancro. Apesar de curto, este período fora suficiente para que ela percebesse não ser aquilo que desejava fazer. Não tinha paciência para ensinar. Não tinha paciência para aturar os alunos, para a forma como falavam durante a aula, como ignoravam as indicações delas, como estavam cheios do que ela certa vez designou como «orgulho da ignorância», como os pais pareciam não se importar e, com frequência, até partilhar e reforçar estas características. Mas, acima de tudo, desgostava-a a forma como rapidamente deixou de se importar. Depois desta experiência, fez um curso de tradução e começou a traduzir livros a partir do Francês. Traduzir dá pouco dinheiro e o número de edições de autores franceses é hoje em dia reduzido, o que a forçava a suportar períodos de inactividade ou a aceitar a tradução de manuais de instruções de máquinas domésticas ou industriais para empresas de origem francesa. Apesar disso, gostava do que fazia. Em muitos dias nem sequer abandonava o pequeno T2 que ocupávamos nos subúrbios do Porto.

Susana respondeu à minha preocupação dizendo: «Posso trabalhar em Espanha. Já inventaram uma coisa chamada correio electrónico.»

Por isso mudámo-nos para a vila de… não, o nome é irrelevante. A localização exacta também não interessa. Não é difícil de descobrir mas não a vou mencionar. O que aconteceu ali podia ter acontecido noutro local qualquer. E, na realidade, não nos mudámos exactamente para a vila mas para uma casa de dois pisos situada a cerca de um quilómetro, junto a uma estrada pouco movimentada desde a construção de uma alternativa mais larga e rápida. Mas a fábrica ficava perto, a menos de três quilómetros, e a localização era sossegada. Achámo-la perfeita. Contaram-nos que pertencera a uma família que emigrara para a Suiça cerca de vinte anos antes. Regressavam a Espanha pelo menos uma vez por ano, como fazem os emigrantes portugueses, tendo ordenado a construção da casa meia dúzia de anos antes, esperançados num regresso próximo. Haviam usufruído dela apenas um Verão, antes de voarem para a morte numa estrada dos Alpes. Os filhos consideravam-se mais suíços que espanhóis e decidiram não regressar. A casa fora vendida e a empresa arrendara-a para nós.

 Era um edifício ligeiramente anacrónico, misturando detalhes típicos da habitação basca (a “etxea”, termo a partir do qual nasceram tantos apelidos da região) com pormenores das tradicionais casas de montanha suíças. Tinha o formato de um cubo com um telhado pontiagudo, em quatro águas: a primeira vez que a vi pensei imediatamente em dois blocos lego sobrepostos (um cubo e uma pirâmide), e essa imagem renovava-se todos os dias quando regressava da fábrica. As paredes eram brancas, com as soleiras de portas e janelas pintadas de preto. No rés-do-chão tinha uma sala enorme, uma cozinha onde tomávamos as refeições, uma casa de banho e um átrio de onde saía um lance de escadas para o piso superior. No andar de cima existiam três quartos (transformámos um deles em escritório para Susana trabalhar) e duas casas de banho. Havia ainda um sótão, acessível através de um alçapão — pormenor que me pareceu deliciosamente cinematográfico. Nas traseiras, um terreno com aspecto abandonado, cercado por um muro de pedra, ocupava o espaço disponível antes da encosta adquirir uma inclinação acentuada. Junto à porta da cozinha, existia ainda uma pequena arrecadação, onde praticamente só entrávamos para substituir a botija de gás para o fogão (a água era aquecida por um cilindro eléctrico). O edifício mais próximo – um aviário – ficava a cerca de cinquenta metros, mais abaixo na encosta e as curvas da estrada escondiam as casas mais próximas.

Era o sítio perfeito para nós.

 

Os primeiros meses foram de incerteza e exploração. Susana e eu começámos a nossa vida em Navarra como dois cegos tacteando as redondezas com uma bengala branca. Não éramos sociáveis mas isso não constituía um problema. Excepção feita aos meus colegas de emprego, não conhecíamos ninguém e podíamos seleccionar o grau de intimidade que aceitávamos. A curiosidade dos locais era contrabalançada por uma certa reserva – orgulho, mesmo – que os levava a não fazerem demasiadas perguntas. Quase como se nos dissessem que éramos bem-vindos mas que não esperássemos encaixar facilmente na sua comunidade. Que fazê-lo exigiria um esforço. Depressa se deve ter tornado claro que nós não estávamos dispostos a realizá-lo. Através do pessoal da fábrica, ou por via das inevitáveis visitas às lojas para comprar roupa ou alimentos, fomos conhecendo algumas pessoas mas nunca aceitámos um grau de intimidade que nos levasse a ir jantar na casa de alguém ou a convidar outras pessoas para nossa casa (com um par de excepções que, não tendo corrido mal, apenas confirmaram a sensatez da nossas reserva).

Havia também a questão da língua. Com mais de um ano de presença na região, eu era capaz de articular umas quantas frases numa mistura de euskera e de castelhano mas Susana, apesar da sua queda para línguas e das suas visitas mais frequentes à aldeia, nunca aprendeu verdadeiramente a falar nem basco (uma das línguas mais complexas da Europa, explicaram-me uma vez, com sintaxe, gramática e vocabulário aparentemente sem relação entre si) nem castelhano. Não é pois de estranhar que os locais nos deixassem em paz, aceitando-nos com uma impassibilidade que só espelhava a nossa. Como de costume, o nosso isolamento era-nos inteiramente atribuível.

Mas na verdade não sentíamos falta de contacto humano. Adorávamos estar sozinhos na casa: após tantos meses de separação, encontrarmo-nos juntos, encaixados num sofá, lendo ou rindo dos programas televisivos, era definitivamente a nossa forma preferida de passar o tempo. Era como se tivéssemos recuperado o casulo que tínhamos no Porto, redecorado e transferido para um lugar mais exótico do universo. Aos fins-de-semana metíamo-nos no carro e percorríamos a região, parando com frequência para tirar fotografias, fazer piqueniques, ou apenas para nos sentarmos nas rochas apreciando a paisagem. Decidimos que gostávamos de San Sebastian e que, com ou sem Guggenheim, não gostávamos de Bilbao. Adorávamos passar umas horas em Castro Urdiales, a caminhar ou sentados a olhar o mar, excepto nos meses de Verão, em que havia demasiados turistas. Evitámos sempre Pamplona por altura das largadas de touros. Aqueles primeiros meses encontram-se entre os tempos mais descontraídos que alguma vez tivemos — ou, posso afirmá-lo sem receio de me enganar, alguma vez teremos. O nosso afastamento do mundo adquirira uma lógica, uma consistência que teria sido impossível de conseguir em Portugal, onde familiares e amigos insistiam em intrometer-se na nossa vida. Em Espanha, estávamos sozinhos um com o outro, em território desconhecido, o que só servia para aumentar a nossa sensação de proximidade.

Passaram meses e tudo era exactamente como devia ser.

 

(continua depois de amanhã)