Foi numa Sexta-Feira à noite. Estava frio mas ainda não acendêramos a lareira. O vento, forçado a contornar a casa ao subir encosta, assobiava nas soleiras das portas e das janelas. No televisor, Don Corleone sussurrava em castelhano. Não sei por que recordo estes pormenores mas tenho a certeza de que estão correctos. Eu encontrava-me sentado na nossa sala pouco mobilada, tentando reunir forças para mudar de canal (gerava-se em nós um estranho fascínio sempre que víamos programas dobrados em castelhano) quando Susana veio da cozinha e se sentou na outra ponta do sofá. Pediu-me para desligar o televisor. Brando desapareceu por entre ruído de estática. Durante segundos, Susana e eu permanecemos imóveis e silenciosos, como que aguardando pelo desvanecimento dos estalidos provenientes do ecrã. Finalmente, ela disse: «Estou grávida.» Deixou que eu absorvesse as palavras e só então esboçou um sorriso — um sorriso tímido, expectante, apologético, que era também uma questão.
Eu não sabia a resposta. Permaneci em silêncio durante muito tempo, vendo a esperança desaparecer da face dela e ser substituída por uma mistura de desapontamento e resignação. Eu estava consciente de que necessitava de dizer qualquer coisa mas sentia-me incapaz de o fazer; de proferir as palavras que anulariam a tensão do momento, que tornariam aquela gravidez não apenas algo inesperado e assustador, mas também algo de excitante — um projecto arriscado mas estimulante que enfrentaríamos juntos.
«Não estás satisfeito», disse Susana. Não era uma pergunta.
Eu disse: «Não tenho a certeza. Tu estás?»
Susana encolheu os ombros. Eu disse: «Sinto-me bem na nossa situação actual.»
Mas juro-te, Patrícia: nunca ponderámos sequer a possibilidade de realizar um aborto.
No passado, a pergunta surgira com frequência: quando iríamos ter filhos? Respondíamos tão bruscamente que a maioria das pessoas marcava a questão como «sensível» e evitava colocá-la novamente. A nossa irritação devia-se mais ao facto de sermos perguntados do que ao tema. Nos primeiros tempos, Susana e eu chegáramos a discutir o assunto. A ideia de ter filhos não era apelativa para nenhum de nós, pelo menos no curto prazo. Era algo que apenas aceitávamos como possibilidade para o futuro. Eu nunca me sentira confortável junto de crianças – ficava tenso e solícito, parecendo falso aos meus próprios olhos, ou desatento e impaciente. Susana tinha muito mais jeito mas acabava sempre a realçar o esforço que as crianças exigem. A atenção constante que é necessária. O desgaste que provocam. E assim ter filhos converteu-se numa possibilidade não descartada mas adiada para um futuro que nunca parecia aproximar-se. De tal modo que, desde a minha ida para Espanha, nunca a voltáramos a abordar. Agora, a realidade impusera-se e, por ter sido apanhado de surpresa (ou por mais do que isso?), eu não conseguira dar a Susana todas as garantias que ela desejava. Por ínfima diferença que uma reacção mais clara pudesse ter feito, ainda hoje preferia não ter transmitido aquela dúvida.
A gravidez foi um período estranho. Havia uma falta de à-vontade entre nós que era quase como se tivéssemos regressado aos primeiros tempos da relação. O corpo de Susana voltara a ser algo de misterioso e ligeiramente ameaçador. Observava-o quando ela saía do banho e se esfregava com a toalha. Pedia-lhe para ficar quieta ou para se deitar na cama e pesquisava-o à procura de mudanças. Acariciava-lhe o ventre, que nas primeiras semanas mostrava apenas a ligeira curvatura que sempre tivera, tentando senti-lo expandir ou detectar sinais de vida (de uma vida diferente) no seu interior. Era ainda demasiado cedo. Nessa fase o sexo voltou a ser um acto exploratório: quase como se estivesse a praticá-lo com uma nova encarnação de Susana. Tudo ainda era ela, parecendo exactamente como sempre fora, mas ao mesmo tempo tudo era ligeiramente diferente. Sentia estar a tocá-la com uma reserva anormal, que temia pudesse constituir o prenúncio do nosso inevitável afastamento. Mas então, quando a barriga começou a aumentar e a realidade da gravidez se tornou fisicamente evidente (quase obscena, na forma impiedosa como o corpo de Susana era forçado a dilatar), nasceu (ou talvez tenha apenas despertado) em mim uma tendência para a transgressão. Houve alturas em que penetrar Susana me parecia um acto de desafio, uma espécie de pecado jubilatório, que me permitia unir-me a ela apesar da presença de forças inimigas. Era como se fodesse um acto de Deus. Como se Lhe dissesse que não ia vencer-nos. Finalmente, após cinco ou seis meses, o acto sexual tornou-se ainda outra coisa. Susana ficava quase sempre por cima, cansando-se depressa, e eu olhava-a fixamente nos olhos. Fazia-o para tentar descobrir se a magoava mas também de forma a evitar reparar como o corpo dela se deformara. Algo estava muito errado: aquela pessoa com barriga dilatada e mamas pesadas não era ela, nem uma nova encarnação dela, mas uma pessoa completamente diferente, com quem eu tinha sexo que, não sendo totalmente insatisfatório, também não era agradável. Sentia-me quase como se enganasse Susana ao ter relações sexuais com esta mulher. E então Susana disse-me que era melhor evitarmos o sexo durante o último par de meses de gravidez e, se a minha reacção imediata foi de alívio, mais tarde senti uma estranha sensação de privação. Como se me houvesse sido negada uma parte indispensável da vida em comum. Como se uma entidade estranha (não tu, Patrícia, nunca pensei que fosses tu) me estivesse a negar um direito que adquirira ao casar com Susana, um direito que julgara irrevogável. Em nenhum outro período desde a adolescência (nem sequer durante o tempo que passara sozinho em Espanha) me masturbei com tanta frequência e me senti tão sujo por fazê-lo.
Hesitámos quanto a saber ou não o sexo do feto antes do parto. Susana perguntou-me a opinião. Encolhi os ombros. Não desejava passar o ónus da decisão para ela mas era-me indiferente. Perguntou-me então se preferia rapaz ou rapariga. A resposta foi imediata: «Rapariga.» Sorriu. Sorriu ainda mais (e apertou-me a mão) quando a médica que fazia o exame disse: «Es una chica.» Sei que também sorri mas não me lembro de ter dito alguma coisa.
O parto foi difícil. Doze horas depois do início do trabalho de parto, os médicos decidiram executar uma cesariana, receosos de que o bebé pudesse estar a sofrer. Eu não tinha dúvidas de que Susana estava. Permaneci ao lado dela, zangado com os médicos mas também comigo – pela minha inutilidade e por ser responsável por isto estar a acontecer. Era um erro, que nunca compensaria os riscos e a dor que causava. Finalmente Patrícia foi arrastada para fora de Susana, chorando de medo e de incompreensão, Susana foi sedada para poder descansar, e eu afundei-me numa cadeira do hospital tentando lidar com as emoções. Sentir o corpo de Patrícia nos meus braços foi uma experiência simultaneamente exultante e aterradora, em que grande parte do terror vinha não do medo de a perder (existia também esse medo, claro, quase como se ela pudesse parar de respirar apenas porque eu não lhe estava a pegar da forma correcta) mas de não conseguir antever as mudanças que aquela pequena criatura cor-de-rosa, enrugada, feia e atraente ao mesmo tempo, causaria na minha relação com Susana – até àquela gravidez, ou talvez mesmo até àquele ponto, tão perfeita e linear quanto eu alguma vez tinha desejado que pudesse ser. Horas mais tarde, Susana e eu conversámos pela primeira vez depois do parto e percebi que sentia o mesmo. A nossa pequena e controlada bolha tinha acabado de se expandir e, porque Patrícia teria necessidades, em breve desenvolveria novas ligações ao mundo exterior. «Talvez nos fizesse falta», disse Susana. Encolhi os ombros, tentando não mostrar cepticismo.
(continua depois de amanhã)