Para ser sincero, no início as mudanças não foram significativas. Pelo menos para mim, que saía de casa de manhã cedo e só voltava à noite. (Houvera uma fase, logo após Susana se mudar para Espanha, em que ia almoçar a casa mas depois Susana convencera-me a não o fazer: «Perdes muito tempo», explicara-me, «e obrigas-me a fazer almoço todos os dias.») Assim, era Susana quem levava Patrícia ao médico, quem lhe comprava roupas, comida, a maioria dos brinquedos. Patrícia apenas me forçava a interagir com estranhos quando se sentia mal durante a noite e saíamos os três a correr para o hospital, as luzes do carro varrendo a estrada com um nervosismo enjoativo, eu e Susana quase sempre em silêncio (o que há para dizer nestas alturas que não pareça deslocado e supérfluo?). As doenças de Patrícia nunca se revelaram graves mas a sensação de urgência nunca decresceu. De cada vez, era como se precisássemos não só de confirmar que ela ficaria bem mas também de que não tínhamos culpa de ela estar doente – desconheço o que sucede com os outros casais mas, para nós, que nunca havíamos desejado filhos, tornava-se difícil evitar a sensação de não estar à altura da tarefa. Felizmente Patrícia foi um bebé saudável e não nos obrigou a viagens destas mais do que três ou quatro vezes durante o primeiro ano de vida. Dormia quase sempre bem, acordando-nos somente às horas a que tinha de ser alimentada.
Se tenho dificuldade em classificar esses primeiros meses da vida de Patrícia como exaltantes, não posso deixar de considerar que foram ainda, tudo considerado, um período de relativa felicidade.
«Olá, papá.»
Eu apoiava um joelho no chão e ela saltava para os meus braços. Sentia-lhe o peso nos braços, o cabelo no pescoço, o calor no peito.
«Olá, pequenina», dizia eu, «tive saudades tuas.» Era importante para ela que lho dissesse. Quando eu não o fazia de imediato, nunca deixava de o perguntar.
Ficávamos assim um instante e depois eu largava-a e erguia-me para enfrentar Susana. Beijávamo-nos mas não com paixão nem durante muito tempo. «Papá, anda ver o meu desenho.» Susana e eu sorríamos um para o outro. Eu tinha a sensação de ver indícios de cansaço em torno dos olhos e da boca dela – as rugas permanentes de cada lado da boca eram recentes, como o eram as marcas escuras sob os olhos. À noite, na cama, por vezes ela perguntava-me se começava a parecer velha. Eu respondia que não mas ela não acreditava. Então eu dizia-lhe que, de qualquer modo, não importava. Apesar de sorrir e até de me abraçar ou beijar, eu percebia que a minha resposta não bastava.
Explicitamente, nunca abordámos as mudanças que Patrícia trouxera à nossa vida. Aqui e ali, expressões como «nos tempos em que não tínhamos a Patrícia» ou «se não fosse a Patrícia» surgiam na conversa mas nunca nos sentámos a falar das alterações que o nascimento de Patrícia impusera à nossa relação. Antes, «nos tempos em que não tínhamos a Patrícia», cada um de nós parecia preocupar-se antes de mais com o outro. Com os interesses do outro, com o bem-estar do outro. Agora, como sempre esperáramos (como sempre temêramos) éramos forçados a levar os interesses de Patrícia em consideração. A satisfazê-los primeiro. E depois descobríamo-nos demasiado cansados para pensar um no outro.
Na verdade, mesmo quando tentávamos focar-nos apenas em nós, algo estava diferente. Um exemplo talvez insignificante, certamente menor: durante anos, eu comprara presentes a Susana. Não apenas no aniversário ou no Natal (desprezávamos pessoas que se limitam ao cumprimento de calendários) mas quando via alguma coisa (um par de sapatos, um livro, um anel) que julgava poder agradar-lhe. Depois do nascimento de Patrícia – e em especial depois de ela começar a andar e a balbuciar palavras e frases – os presentes eram recebidos não com as calorosas demonstrações de afecto do passado mas com um par de beijos e um olhar ligeiramente triste e conformado. E eu passei a comprar-lhe cada vez menos presentes.
E depois as coisas pioraram. Se Patrícia fora um bebé calmo, depressa se tornou uma criança problemática (o termo desagrada-me mas não consigo encontrar melhor). Procurava atenção constante e não admitia ser deixada de fora de qualquer manifestação de ternura. Sempre que Susana e eu nos abraçávamos ou beijávamos, corria para nós e exigia ser abraçada e beijada. Gestos de amor entre nós (entre mim e Susana, quero dizer) eram gestos roubados a Patrícia – ou assim ela parecia considerá-los. Apenas aceitava demonstrações de afecto entre nós que a tivessem como intermediária.
Desconheço as razões para estes ataques de ciúme. Há muito que Susana e eu não éramos sequer particularmente demonstrativos nas nossas manifestações de afecto um pelo outro. Creio que nunca recusámos a Patrícia o carinho que lhe era devido. E, no entanto, ela parecia pensá-lo. Talvez um psicólogo conseguisse detectar um padrão, um acto nosso que ela achasse insuportável, mas nós éramos sempre apanhados de surpresa, ficando sem saber como agir. Os ataques de Patrícia provocavam desconforto entre nós mas causavam ainda mais danos na nossa relação com ela. Faziam com que se transformasse quase numa intrusa, num (tremo ao escrever a palavra) empecilho. A circunstância, inevitável, de ela detectar a nossa reacção só aumentava a sua insatisfação e o nível das suas exigências.
Retrospectivamente, sou capaz de detectar sinais de como o fardo sobre Susana se começou a tornar excessivo. (A menos que o meu cérebro os imagine, num jogo de autodefesa – é demasiado frustrante perceber que nada podia ter sido feito – e, simultaneamente, de autodestruição – se eles existiam, como puderam escapar-me?) Antes de Patrícia nascer, eu lera artigos sobre depressão pós-parto. Nas semanas que se seguiram ao nascimento procurei sinais de depressão em Susana. Nada detectei. À medida que as semanas, depois os meses, depois os anos passavam, fui deixando de pensar no assunto. No que me dizia respeito, as coisas haviam tombado numa rotina suave, pouco excitante mas não inteiramente desagradável. De vez em quando dizia a Susana que ela me parecia cansada, que devia descansar mais, e perguntava o que podia fazer para a ajudar mas aceitava as respostas moles que ela dava e não procurava ir mais além. A frequência, duração, profundidade e humor das nossas conversas reduziram-se até restar pouco mais do que um silêncio resignado. Nas primeiras vezes em que Susana gritou com Patrícia fiquei surpreso mas não acreditei que fosse indício de algo sério. Depois Susana começou também a gritar comigo e senti-me ainda mais estupefacto e também magoado (não costumava haver gritos entre nós). E então, uma noite antes do jantar, Susana esbofeteou Patrícia e eu tive uma conversa com ela mas ela já estava arrependida e eu acabei a abraçá-la. Depois fui fechando os olhos. Julgo que esperava que, mais cedo ou mais tarde, tudo regressasse ao normal, qualquer que fosse agora a normalidade.
Dizem que o amor cega. É verdade. Fechamos os olhos tentando mantê-lo vivo.
(continua depois de amanhã)