Uma boneca partida. Uma boneca grande, assustadoramente real, caída ao fundo das escadas, de peito para baixo, com as pernas ligeiramente abertas, a cabeça virada para a esquerda e para cima, num ângulo que parecia pouco natural sem que fosse fácil explicar porquê. Devagar, com uma consciência enjoativa de cada passo, aproximei-me. Ajoelhei-me, sentei-me sobre os calcanhares. Durante uma eternidade fui incapaz de lhe tocar. Pensava talvez que enquanto não o fizesse a situação não seria real, que ela não precisaria de acordar. Ou que eu não precisaria de acordar. O cabelo, louro e comprido, espalhava-se sobre o pavimento castanho-escuro como um pôr-do-sol desenhado por uma criança – como um pôr-do-sol que ela própria poderia ter desenhado. Os olhos estavam abertos e eu nunca vira neles tanto medo – nem naquelas ocasiões em que ela acordava a meio da noite com um pesadelo e corria a chorar para a nossa cama. O único sangue visível encontrava-se na face esquerda, numa ferida irregular. Olhei para cima, para onde Susana se encontrava imóvel, junto à porta da sala, os braços pendendo ao lado do corpo, os dedos das mãos movendo-se quase imperceptivelmente (ou acrescentarei agora detalhes ao que de facto aconteceu?). Não olhava para mim nem para Patrícia. Mantinha o olhar fixo num ponto ligeiramente ao nosso lado, como se recusasse encarar-nos mas, ainda assim, não pudesse deixar de nos manter dentro do seu campo de visão. Como se desejasse evitar a realidade mas não se atrevesse a negá-la. Eu tinha a pergunta na boca mas adiei-a para mais tarde e voltei a concentrar-me em Patrícia. Toquei-a na face. A temperatura da pele não me pareceu substancialmente diferente da que seria se ela tivesse passado algum tempo no exterior, durante o Inverno. Mas havia mais qualquer coisa — uma espécie de camada sebácea que parecia inumana e me fez estremecer. Era como se Patrícia, a minha filha, tivesse sido na realidade um extraterrestre ocupando o corpo de uma criança. Introduzi a mão esquerda sob a sua face e tentei levantar-lhe a cabeça. Veio tão facilmente que temi que se pudesse separar do resto do corpo. Forcei-me a tactear a parte de trás do pescoço dela. Não consegui sentir a vértebra partida — mas tinha de existir uma, não é verdade? Ou teria a morte ocorrido em resultado de danos na cabeça, provocados pelo embate no pavimento? Neste caso, por que não se via sangue ou uma fractura no couro cabeludo? Fosse o motivo qual fosse — Patrícia estava morta. Permaneci imóvel durante um instante, depois pousei novamente a cabeça dela no chão, retirando a mão devagar para que não batesse nele outra vez, e levantei-me. As pernas ardiam-me mas senti-me grato por isso. Necessitava de uma dor fácil de compreender – e de gerir.
Olhei para Susana. Ela resistiu ao contacto visual durante alguns segundos e depois o nosso olhar encontrou-se. Começou imediatamente a chorar. Dei três passos em frente e abracei-a. Não retribuiu e, quando afrouxei a força do abraço e recuei para a olhar, soltou-se, usando todo o corpo para escapar, e caminhou — não correu — para o interior da sala. Rodei e olhei novamente para o corpo de Patrícia, ainda pequeno e imóvel e desprotegido e dolorosamente belo. A cena — toda a sequência de eventos, na realidade — mantinha uma pátina de surrealismo, parecendo impregnada de uma lógica estranha, deformada, que eu sentia ter obrigação de descodificar — de certa forma sentia que, se conseguisse descobrir o código, tudo voltaria ao normal. E então percebi que estava a deixar-me tombar em fantasias e senti-me irritado comigo mesmo e fui à procura de Susana.
Estava sentada num canto do sofá, em posição fetal, os braços em torno dos joelhos. Sentei-me a seu lado mas não fiz qualquer tentativa para lhe tocar. A sala estava abafada e o sol desenhava a cruz do caixilho da janela no chão à nossa frente. Perguntei: «O que aconteceu?»
Susana começou a falar de imediato. Senti que tinha necessidade de o fazer e que apenas estivera a aguardar a pergunta. Como se ela mesma precisasse de ouvir a descrição dos acontecimentos. Falou em tom monocórdico e creio não ter olhado para mim uma única vez enquanto descreveu o que se passara. Apesar da prontidão, no início parecia ter dificuldade em seleccionar as palavras e pronunciava-as devagar, como se lhe magoassem a boca. Explicou que Patrícia estivera impossível durante toda a manhã. Enquanto Susana arrumava os quartos e a casa de banho (tínhamos uma empregada mas vinha apenas duas vezes por semana), andara constantemente em torno dela, procurando envolvê-la nas suas brincadeiras. Era uma luta diária que Patrícia ganhava quase sempre mas hoje Susana não estava disposta a deixar-se arrastar. Estava tensa, incapaz de cedências ou compromissos. Dormira mal mas isso não era desculpa. Sentia-se no limiar de qualquer coisa — de um colapso ou de uma explosão.
(A voz de Susana era rouca mas estável. A forma como descrevia os acontecimentos, os pormenores que juntava, fazem-me ainda hoje pensar nas horas que passou à espera, a poucos metros do corpo de Patrícia, revivendo o que sucedera uma e outra vez. Parecia ter chegado não a uma desculpa mas a uma espécie de descrição densa e minuciosa que, pelas exigências de concentração que impunha, lhe permitia continuar a falar. Apeteceu-me várias vezes dizer-lhe que eu sabia como Patrícia conseguia ser irritante, de um egoísmo absoluto, que ela não precisava de me contar todos aqueles pormenores, mas não o fiz. Susana parecia necessitar dos pormenores. De analisar tudo, incluindo as próprias motivações. Deixei-a falar. E se agora conto o que se passou em voz indirecta é porque sou incapaz de fazer justiça ao que ela me disse e à forma como o disse, é porque faço questão de reclamar para mim quaisquer ideias negativas que o relato possa suscitar.)
Tudo se passara finalmente muito depressa. Susana aspirava o chão do nosso quarto. Patrícia continuava em torno dela. A certa altura, puxou o cabo do aspirador, arrancando-o da tomada. Susana gritou-lhe. Patrícia desatou a chorar, Susana mandou-a parar, disse-lhe para sair do caminho mas Patrícia não obedeceu (fazia isso muitas vezes, finca-pé numa posição, corpo hirto, expressão de raiva e martírio). Susana deu-lhe uma bofetada. Com força, na cara. A pancada e o movimento que Patrícia fez para tentar escapar-lhe fizeram-na cair. Bateu com a face esquerda na esquina da cama. Começou a chorar com mais intensidade, levantou-se, evitou Susana, que já estava em pânico, e correu para o andar de baixo. Susana ouviu o grito e o ruído da queda e soube que Patrícia estava morta.
(Nesta altura do relato, lembro-me de me aperceber que Susana não mencionara uma única vez o nome de Patrícia. Continuo sem saber se isso tem algum significado.)
«Por que não me telefonaste?»
Continuando a não me olhar, hesitou pela primeira vez. Encolheu ligeiramente os ombros. Primeiro disse que não sabia mas, após um momento, explicou ter percebido de imediato que Patrícia estava morta. Eu nada poderia fazer. E – disse-o num murmúrio em que se misturava vergonha e raiva – nada era real enquanto mais ninguém soubesse.
(Estou certo de que existe outro motivo: Susana quis poupar-me, adiar o instante em que eu seria confrontado com a morte de Patrícia. Nunca o mencionou mas certas coisas não precisam de ser mencionadas. Não entre nós.)
E então passou horas sentada junto ao corpo de Patrícia, costas contra a parede, joelhos contra o peito. Nunca me contou os pormenores daquelas horas, o que pensou, o que fez, se chorou, se se agrediu (nos dias seguintes, pareceu-me existirem marcas nas pernas, nos braços e no abdómen dela), se recordou as minhas reticências quando me anunciou a gravidez, se foi alguma vez à casa de banho, e eu nunca tive coragem para perguntar. Se o nascimento de Patrícia nos afastara um do outro, criando áreas de desconforto, a sua morte, voltando a deixar-nos sozinhos um com o outro, solidificou alguns desses universos privados. Sei que, a certa altura durante o dia, o telefone tocou e ela não atendeu. Sei-o porque era eu quem ligava e lembro-me – ou estarei novamente a imaginar coisas? – de ficar apreensivo por um momento, antes das solicitações do emprego me desviarem a atenção.
Susana apenas me disse que ficara imóvel, incapaz de raciocinar. «Era como se estivesse tudo em suspenso, à espera da tua chegada.» E agora eu estava em casa e também não sabia o que fazer.
(continua depois de amanhã)