Vira-as de imediato. Ficara junto à porta, sem saber como agir, sentindo que acabara de entrar numa realidade alternativa, num palco onde se representava uma peça na qual era suposto eu desempenhar um papel que nunca me fora enviado para decorar. Haviam passado alguns segundos, não mais do que alguns segundos, e depois eu avançara para Susana. Ela recusara os meus cuidados, estendendo os braços, deslizando no chão, e eu desviara a minha atenção para Patrícia.
Agora, na sala, eu disse: «Temos de chamar uma ambulância. E a polícia.»
Susana permaneceu em silêncio, sem discordar, aguardando apenas que eu tratasse do assunto. Mas eu não peguei no telefone. No interior da minha cabeça, vozes gritavam que chamar as autoridades era a coisa correcta a fazer, a única coisa a fazer. E, no entanto, hesitei. A marca na face de Patrícia, o relato de Susana, o tempo que havíamos demorado – algo me dizia que iríamos enfrentar imensos problemas e que nenhuma vantagem existia em chamar quem quer que fosse. Patrícia estava morta, nada a traria de volta. Havia uma culpa a remir mas não resultava de qualquer crime público, muito menos de homicídio. Susana e eu éramos culpados de outro crime, mais íntimo, pouco adequado a debates legais, à frieza dos tribunais e à exposição mediática. Mas a polícia não veria as coisas dessa forma. Investigaria, faria perguntas, duvidaria. Com a comunicação social a pressionar, não me custava imaginar Susana sendo presa. E para quê? De que forma seria a prisão melhor forma de expiação do que o arrependimento que ela já sentia?
Pensei em chamar uma ambulância e não a polícia. Mas os paramédicos perceberiam que Patrícia morrera horas antes. E chamariam a polícia.
Não sei quanto tempo demorei a dizer as palavras. Sempre que penso naquele dia (e há constantemente no meu cérebro imagens do corpo de Patrícia tombado ao fundo das escadas), o tempo parece-me ter seguido regras diferentes das habituais. A conversa na sala não pode ter durado mais do que alguns minutos – um quarto de hora, talvez – mas surge-me como tendo sido extremamente longa. De qualquer modo, tenham decorrido dez segundos ou dez minutos, eu disse: «Podemos não avisar ninguém.»
Susana encarou-me finalmente mas somente por um instante. Fez a pergunta já a olhar em frente: «O que queres dizer?»
Expliquei-lhe, delineando o plano enquanto falava. Podíamos regressar a Portugal. Havíamos levado uma vida isolada, afastada dos habitantes da região. Talvez ninguém reparasse na ausência de Patrícia durante as semanas seguintes. E, ainda que notassem, podíamos dizer que ela estava em Portugal, com os avós. Às nossas famílias teríamos de admitir que morrera. Diríamos que acontecera na sequência de uma doença ou de um acidente (uma doença era melhor) e que fora enterrada (não, cremada) em Espanha. Recomeçaríamos a nossa vida em Portugal e deixaríamos este acontecimento para trás.
À medida que falava, eu sentia-me cada vez mais assustado mas também cada vez mais desejoso de começar a pôr o plano em marcha, de começar a fazer qualquer coisa. Susana ouviu a minha proposta com a inexpressividade com que efectuara o relato da morte de Patrícia e depois perguntou: «Estás a falar a sério?»
Estava? Sim e não. Havia uma parte de mim que apenas desejava que tudo seguisse os trâmites normais. Mas respondi: «Por que não? Tu… não cometemos qualquer crime mas vai ser como se tivéssemos cometido.»
Não sei se Susana chegou a concordar. Explicitamente, nunca o fez e interrogo-me com frequência se lhe terei tornado as coisas mais difíceis ao evitar que tivesse de assumir publicamente o acto que cometera. Mas trata-se apenas de mais uma entre a miríade de dúvidas com que desde então me debato e não posso permitir-me arrependimentos inúteis. O que fiz, fi-lo por ambos. Para proteger Susana mas também por mim, que não consigo imaginar-me a viver sozinho. No fundo, as minhas decisões decorreram de puro egoísmo.
Deixei Susana na sala e fui em busca de algo com que abrir uma sepultura.
Às vezes as coisas combinam-se de forma tão perfeita que toda a lógica parece apontar numa determinada direcção – por muito questionáveis que direcção e lógica venham a parecer mais tarde. Desconheço o que teria sucedido se na casa não existissem utensílios que me permitissem abrir a cova. Seria, aliás, natural: a casa nunca fora ocupada de forma permanente, o mobiliário não ia além do indispensável para a tornar confortável, nas traseiras não existiam campos de cultivo, apenas um espaço de terra seca à espera de uma família que lá aplicasse relva ou instalasse um grelhador para churrascos ou construísse uma piscina (depois do nascimento de Patrícia, Susana e eu faláramos de aproveitar melhor o terreno mas nunca de forma séria; ainda que nos sentíssemos bem vivendo nela, aquela casa não era nossa). A que propósito haveria de existir uma pá ou uma enxada por ali? E, claro, se não existisse, o meu plano teria entrado em colapso, uma vez que não poderia abrir a sepultura com as mãos ou com uma colher de cozinha. Poderia ter ido comprar uma pá mas era demasiado tarde para encontrar as lojas abertas. E sair, deixando novamente Susana sozinha com o cadáver de Patrícia, estava fora de questão. Para mais, a ideia de enfrentar outras pessoas assustava-me. Receava não conseguir agir naturalmente e deixar pistas óbvias que a polícia viesse a seguir. Duas semanas mais tarde, perante a notícia da nossa partida, perante a ausência de Patrícia, alguém poderia questionar-se sobre o motivo que levara o director da fábrica de aglomerados a comprar uma pá à hora de jantar. Estranhamente, penso que uma parte de mim desejava não encontrar com que abrir a cova. Desejava ver a realidade impor-se, expor o meu plano como o produto de um cérebro perturbado que certamente era, tirar-me o controlo das mãos. É algo que iria perdurar: durante os dias que se seguiram e em todos os dias que decorreram desde então, a sensação, assustadora e atraente em igual medida, de que o curso dos acontecimentos está prestes a sair-nos das mãos nunca me abandonou. Isto não é um relato de suspense e posso admiti-lo já: até hoje, tal não aconteceu. Naquela noite, o primeiro local a que me dirigi foi ao compartimento das traseiras junto à porta da cozinha. Numa das prateleiras que nunca usáramos, por entre lixo e sacos de serapilheira, encontrei um ancinho, uma enxada e uma pá. Reafirmo que não sou crente mas foi quase um sinal divino.
Demorei muito mais tempo a decidir o local onde abrir a cova. Nenhum me parecia seguro. Demasiado perto da casa e os próximos ocupantes (o meu substituto e família) poderiam estranhar o rectângulo de terra revolvido ou expor o corpo por outro motivo qualquer – na construção da tal piscina, por exemplo. Demasiado longe, já do lado exterior do muro, e, para além de não ter o edifício a proteger-me de olhares indiscretos enquanto cavasse, aumentariam as probabilidades do corpo ser desenterrado por cães ou por pessoas abrindo as fundações para uma nova casa ou escavando um poço ou levando a cabo qualquer outra actividade igualmente ridícula. Tive pena de que nas proximidades não existissem árvores – poderiam ter ajudado a esconder o que fazia e, ao mesmo tempo, servirem como uma espécie de memorial, um sinal de que Patrícia não fora esquecida. Mas apenas vegetação rasteira forrava a encosta. Enquanto a luz do dia se desvanecia num pôr-do-sol nebuloso, caminhei para trás e para a frente, achando defeitos em todas as hipóteses que avaliava. Acabei por escolher um ponto do lado de fora do muro, quase encostado a ele, onde a terra era mais escura (e, esperava eu, mais mole) e a cova apenas se veria subindo para cima do muro ou descendo a encosta em direcção à casa. Era praticamente noite cerrada quando cravei a lâmina da enxada no terreno.
Cavei durante horas, mergulhado numa escuridão quase completa. Havia uma luz por cima da porta da cozinha mas era fraca e o muro bloqueava-lhe o efeito. Eu tinha uma lanterna mas mostrava-se inútil e, de qualquer modo, eu temia usá-la. De início, o progresso pareceu-me nulo. Contrariando as minhas expectativas, a terra estava dura e seca, emitindo um ruído áspero de cada vez que entrava em contacto com uma das lâminas. Primeiro cavei de fora, com a enxada, depois do interior da cova, com a pá. Depressa enfrentei problemas com a colocação da terra solta. Ao decidir abrir o buraco mesmo junto ao muro, eliminara um dos lados onde, em terreno aberto, poderia colocar terra. Para agravar a situação, a inclinação do terreno, apesar de ligeira naquele ponto, fazia com que a terra colocada do outro lado depressa começasse a deslizar novamente para dentro do buraco. De cinco em cinco minutos, eu era forçado a arrastá-la para mais longe, o que atrasava tudo. Felizmente, protegido pelo muro e pela casa umas dezenas de metros mais à frente, devia ser praticamente invisível a partir da estrada – onde, de resto e como de costume, o trânsito era reduzido (ainda assim, obsessivo como sou mas também para evitar pensar no que fazia, cheguei a contar os segundos entre veículos). De cada vez que ouvia um carro aproximando-se, baixava-me e permanecia imóvel até o ruído se extinguir. A partir de certa altura, a lâmina da enxada começou a oscilar em torno do cabo, dificultando ainda mais as coisas. De alguma forma, esperara que se a terra se fosse tornando mais mole com a profundidade mas isso não aconteceu. Senti um desapontamento estupidamente intenso ao percebê-lo. Também não fazia ideia da profundidade conveniente. Quanto mais fundo, melhor, dizia-me. Por isso (e talvez por receio da fase seguinte) fui cavando e cavando e cavando mais um pouco até já só conseguir sair do buraco apoiando os braços na sua borda e usando pés e pernas nas paredes laterais para me impulsionar. Quando finalmente parei, a cova tinha quase a minha altura – de pé lá dentro, apenas a minha cabeça permanecia de fora. Pousei a pá, saltei o muro, sacudi a terra da roupa e entrei em casa.
Esforçara-me por não pensar no momento em que teria de ir buscar o corpo de Patrícia. Perguntara-me algumas vezes o que estaria Susana a fazer, a pensar, a sentir. Forçada por mim, depois de tantas horas sozinha com o cadáver da filha, a suportar mais umas quantas. Passei pela entrada, onde a presença do corpo de Patrícia mantinha toda a incongruência, e entrei na sala. Susana encontrava-se estendida no sofá. Tinha os olhos fechados mas não dormia. Deixei-me estar um par de segundos a olhá-la e depois saí novamente.
Subi as escadas para o primeiro andar e fui buscar um cobertor ao quarto de Patrícia. Escolhi um cor-de-rosa, felpudo, que ela usara para se embrulhar durante o Inverno enquanto via televisão na sala. Desci e estendi-o sobre o corpo. Puxei Patrícia na minha direcção, fazendo-a rodar para dentro do cobertor. Depois peguei-lhe ao colo, dobrando o excedente do cobertor em torno da cabeça e dos pés dela, e saí de novo para o terreno das traseiras. Apagara a luz e foi às escuras que caminhei até ao muro. Pousei o cobertor com Patrícia em cima dele e saltei para o outro lado. Peguei novamente no cobertor, pousei-o junto à borda da cova e, pela última vez, saltei para o seu interior. Arrastei o cobertor para os meus braços, baixei-me e pousei-o, com o corpo de Patrícia dentro, junto aos meus pés. Depois, procurando, por uma qualquer razão obscura e totalmente ilógica, que não se verificasse queda de terra, trepei até à superfície, liguei a lanterna e apontei o feixe lá para baixo.
Exagerara nas dimensões da cova. O volume com o corpo de Patrícia ocupava pouco mais de três quartos do comprimento e cerca de dois terços da largura. Era uma visão incongruente mas também apaziguadora: o cobertor cor-de-rosa acrescentava à cena uma componente de surrealismo e, por momentos, senti que não estava a enterrar uma pessoa mas um brinquedo, um peluche gigante que se estragara. O meu relógio marcava uma da manhã. Desliguei a lanterna. Não houve lágrimas nem orações. Limitei-me a pegar na pá e a encher a cova de terra. Foi rápido mas parecia sobrar terra. Tentei alisar o monte com a pá. Cerrei os maxilares e saltei-lhe em cima. Com a pá, retirei a terra em excesso e espalhei-a pelas redondezas. Decidi que naquele momento nada mais podia fazer. Na manhã seguinte reavaliaria a situação.
Sentia-me transpirado e sujo. Fui recolocar os utensílios na prateleira de onde os retirara, peguei num balde, num pano e numa esfregona, subi ao primeiro andar, lavei a esquina da cama onde a cabeça de Patrícia batera, desci as escadas, lavei a zona do pavimento onde o corpo dela ficara caído, fui novamente à cozinha, passei balde, esfregona e pano por água várias vezes, guardei-os e dirigi-me para a sala. Sentei-me ao lado de Susana. Deixei passar alguns segundos e apertei-lhe a mão. Um pouco mais tarde, ela retribuiu.
(continua depois de amanhã)