José António Abreu @ 08:47

Sab, 17/03/12

Não sei se sou um mentiroso excepcional, se as pessoas não prestam tanta atenção aos outros como estes julgam (ou, quando têm algo a esconder, receiam), se tivemos apenas imensa sorte. Ninguém pareceu suspeitar de nada. Apresentei a minha demissão três dias depois da morte de Patrícia. Houve esforços para me convencer a ficar, se não naquela unidade, pelo menos noutra fábrica do grupo, mas eu sabia não poder aceitar. Demasiadas pessoas, em Espanha e em Portugal, sabiam da existência de Patrícia. Mais cedo ou mais tarde, haveria perguntas. Por isso recusei permanecer na empresa e recusei dizer quem me tinha feito uma proposta melhor e no processo destruí todo o respeito que conquistara ao longo dos anos.

Os momentos de tensão foram demasiado frequentes para que os descreva a todos. De certa forma, é mais correcto afirmar que existiu apenas um, contínuo, em que a intensidade do nosso medo flutuou mas nunca desapareceu. Era-nos impossível pensar noutra coisa — sei que posso falar por Susana — e quando o cérebro procurava escapar obrigávamo-lo a recentrar-se, a lembrar o que se passara e a situação em que nos encontrávamos. Permitir outros pensamentos parecia uma saída fácil, uma traição à memória de Patrícia.

E, todavia, parece-me hoje que a maioria desses momentos de tensão nasceu dos nossos temores e não de ameaças reais.  O medo era real, a sensação de falsidade constante mas o nosso planeamento e a nossa execução acabaram por se revelar quase perfeitos. Tivemos sorte, logo de início, quando a mulher-a-dias telefonou a dizer que estava doente e não podia vir no dia em que estava previsto. Isso deu-nos um fim-de-semana. Queimámos parte da roupa de Patrícia na lareira e, na Segunda-Feira seguinte, dissemos-lhe que ela estava em Portugal, em casa dos avós. Quando os meus colegas de trabalho organizaram um jantar de despedida, decidimos que eu iria mas que Susana ficaria em casa (de qualquer modo, ela recusava-se a ir), o que permitiria evitar chamar a atenção para a ausência de Patrícia. Quando o meu pai fez sessenta anos, telefonei-lhe tarde (por muito que ele me achasse distante, seria estranho não lhe ligar) e, quando pediu para falar com Patrícia, expliquei-lhe que já estava a dormir. Dúzias de ocasiões como estas foram enfrentadas da melhor forma que conseguimos, sempre à espera de que algo corresse mal, sempre surpreendidos (mais eu, Susana pouco falava) quando, uma e outra vez, isso não sucedia. Podia descrevê-las em pormenor. Tornar aquelas duas semanas num filme de suspense barato. Mas não o farei. Não tenho qualquer desejo de relembrar aqueles momentos. Foram – acabaram por ser – irrelevantes. Porém, sinto necessidade de salientar quão forte Susana teve de ser. Procurava não sair de casa e ter de enfrentar outras pessoas mas algum contacto era inevitável. As conversas com a empregada, por exemplo, exigiam-lhe um esforço titânico: lembro-me do sorriso desesperado que afixava quando um dia cheguei a casa e a mulher não parava de falar acerca da neta. Aproveitei para lhe dizer que não precisava de voltar, uma vez que estávamos a dias de regressar a Portugal. «Mas ainda falta uma semana», contrapôs. Expliquei-lhe que não valia a pena porque a casa iria estar uma confusão assim como assim e garanti-lhe que o mês lhe seria pago na totalidade. Passei os restantes dias temendo que ela houvesse desconfiado de alguma coisa mas, mais uma vez, nada aconteceu. As pessoas gostam de falar e estou convencido de que contou a muita gente como nós éramos estranhos mas não terá feito mais do que isso.

No fim-de-semana antes de regressarmos a Portugal grelhei quase vinte quilos de carne de porco, cortada como se fosse fiambre. Permiti que as fatias ficassem bem esturricadas e desfi-las para dentro de um tupperware. Foram estas cinzas que apresentámos às nossas famílias como sendo as de Patrícia (dentro de uma urna comprada numa funerária de Oviedo aquando do regresso).

Fui verificar a sepultura todos os dias. Normalmente fazia-o depois de anoitecer mas, por vezes, também durante as horas de luz. Chegava junto do muro num passeio que tentava que parecesse casual, saltava para o lado de lá e subia a encosta como se estivesse a dar um passeio – como se estivesse a aproveitar os últimos dias para fixar os encantos do local na memória. Quando saltava do muro abaixo e, mais tarde, quando descia a encosta de regresso a casa, aproveitava para verificar se a zona de terra revolvida se notava muito. Notava-se imenso. Para tentar disfarçá-la, na terceira noite após o enterro cavei ao longo do muro, quatro ou cinco metros para cada lado da cova. Tinha esperanças de que cerca de uma dezena de metros de terra revolvida fizesse pensar que tinham andado ali a introduzir um tubo ou qualquer coisa do género mas, na realidade, não fazia. Não dando já ideia de uma sepultura, continuava a parecer estranho.

Susana nunca me perguntou onde enterrara Patrícia mas um dia, ao regressar da empresa, encontrei-a do lado de fora do muro, olhando para a zona de terra solta e escura. Tentei evitar pensar há quanto tempo lá estaria e se alguém a teria visto e levei-a para casa, caminhando ao longo do muro até à estrada com o meu braço direito em torno da cintura dela – como se passeássemos, esperava eu. Não falámos. Nessa época falávamos pouco. Todas as palavras se haviam tornado inadequadas.

Vinte e três dias após a morte de Patrícia deixámos Espanha.

 

Não sei o que vai acontecer. Não sei se alguma vez o corpo será descoberto. Mesmo que não seja, há pontas soltas: por exemplo, não temos certidão de óbito. De cada vez que ligo a televisão, folheio um jornal, respondo à campainha da porta ou abro a caixa do correio espero o pior. O mesmo acontece com Susana. Nos últimos dois anos a nossa vida tem sido tão confinada que é quase como estarmos na prisão. Mas estamos presos juntos e isso tem um valor inestimável. Dependemos um do outro mais que nunca. A nossa relação está indelevelmente marcada pela morte de Patrícia. Antes, havia uma componente de desespero mas agora essa componente é tão forte que chega a ser uma dor física. De cada vez que fazemos amor, dói-nos olhar nos olhos do outro. De certa forma, o nosso amor nunca esteve tão forte. Mas depender tanto dele esgota-nos, deixa-nos exaustos.

Susana nunca se perdoou e suspeito que às vezes julga que a culpo pelo que aconteceu. A dor nos olhos dela durante o acto sexual é tanto expressão dos seus sentimentos por mim quanto um pedido de desculpa. Mas eu perdoei-a. Totalmente. Sem restrições. É em mim que encontro razões para culpa. Por um lado, sinto que me alheei do crescimento de Patrícia e que recusei ver os indícios de que nem tudo estava bem (ou, pelo menos, agir sobre eles). Por outro, devido ao que sucedeu, às vezes sinto que tenho um ascendente sobre Susana. Que a consigo controlar. Não desejo isso. Somos iguais, como sempre no passado. A bofetada, demo-la juntos. O encobrimento, fizemo-lo juntos. Se alguma vez formos acusados do crime, somos ambos culpados.

Não tenho a certeza de estar arrependido do que fiz. Às vezes penso que sim, noutras acho que procedi da melhor forma possível. Julgo que a ideia de enterrar Patrícia me surgiu por acreditar – ou desejar acreditar – que, fazendo-o, poderíamos rapidamente passar por cima do que sucedera e seguir em frente. Foi um erro. O que fizemos, do início ao fim, é um fardo muito mais pesado. Devíamos ter chamado a polícia, explicado que fora um acidente, arcar com as consequências. Desta forma, ficou tudo dentro de nós – dentro de Susana, em particular. A exposição pública e um castigo – se chegasse a existir: a morte de Patrícia foi um acidente – poderiam ter permitido uma expiação menos interior e mais eficaz. Mas, claro, o castigo poderia ter sido a prisão e a possibilidade de ser afastado de Susana, para mais sabendo-a a sofrer, continua a revelar-se-me insuportável.

Enfrentar famílias e conhecidos foi mais difícil do que esperávamos. Por muito que proclamassem não quererem forçar-nos a reviver o que acontecera, assaltaram-nos com pergunta após pergunta. Sempre que nos foi possível, evitámos responder. Isso desagradava-lhes. Deixava-os irritados. Como se tivéssemos que satisfazer curiosidades mórbidas. Como se tivéssemos uma qualquer espécie de dívida para com eles. Felizmente, o passado jogava a nosso favor. Sempre estivéramos à parte, sempre fôramos outsiders que nunca haviam cedido a desejos de terceiros. Porque nos conheciam, todos acabavam por encolher os ombros e, por entre resmungos, deixar o assunto cair.

Encontrei um novo emprego menos de um mês após o regresso. Susana dizia-se incapaz de se concentrar e apenas retomou a actividade meio ano depois. Numa coincidência irónica e perturbadora, o primeiro livro que a editora lhe enviou para tradução era sobre como lidar com crianças.

Temos estado à espera. Podemos ter dias, podemos ter o resto das nossas vidas. Não dizer que tenhamos a vida em pausa porque, fora dos nossos cérebros, tudo está como gostaríamos que estivesse. Dispusemos de dois anos para nos habituarmos a viver de acordo com estas premissas e julgo que estávamos a conseguir fazê-lo. Esta nova mudança no rumo dos acontecimentos é totalmente inesperada.

Pouco depois de regressarmos sugeri fazer uma vasectomia. Discutimos o assunto e chegámos à conclusão de que era melhor mantermo-nos tão discretos quanto possível. Talvez mais tarde. Afinal, Susana tomava a pílula. Toma a pílula. Algo correu terrivelmente mal.

Susana continua a agarrar-me as mãos. Olha-me em silêncio. Olho-a também, tentando perceber se já tomou uma decisão. Apenas detecto medo e tristeza. Mudo a posição das nossas mãos, de modo a ser eu a segurar as delas. Inclino-me para a frente e beijo-a nos lábios. Estão frios e secos. Digo: «Amo-te» porque, independentemente do que viermos a dizer e a fazer, quero que isso fique claro.