José António Abreu @ 08:40

Sex, 20/04/12

Vamos tomar um café à hora de saída do emprego. Eu proponho e César aceita após um instante de hesitação. Ficamos na mesa do canto, como fazemos sempre que ela está livre. A empregada cumprimenta-nos. Sorrio-lhe, digo-lhe boa tarde, trato-a pelo nome, Anabela. César limita-se a dizer boa tarde. Observo as ancas dela enquanto se afasta. Digo: «Está cada vez melhor. Andar de um lado para o outro com a bandeja na mão deve fazer bem aos glúteos.» César esboça um sorriso mas mal roda a cabeça.

«O que se passa contigo?», pergunto.

«O que queres dizer?»

«Pareces em baixo.»

Encolhe os ombros. Hesita. «É demasiado ridículo para contar.»

«Bom, agora não tens alternativa. Até porque eu adoro histórias ridículas. E sou especialista nelas, embora normalmente como personagem principal.»

Ele deixa passar uns segundos. Não me olha; é como se avaliasse as minhas palavras, tentando separar a parte verdadeira da parte falsa, o humor introduzido apenas para efeito cómico da sinceridade. Ou se calhar nem as ouviu. Se calhar nem é relevante ser eu quem ali está e a questão que analisa prende-se com ele próprio. Prende-se com saber se deve contar a alguém a tal coisa ridícula.

Acaba por dizer: «Sabes que costumo ir correr à beira-rio, entre a Afurada e Lavadores?»

«Hum, acho que já mo tinhas dito.»

A empregada regressa com os cafés e permanecemos em silêncio enquanto ela os coloca sobre a mesa. Desta vez faço um esforço para não a observar enquanto se afasta. César rasga o pacote da açúcar, despeja-o na chávena, mexe o café. Só então recomeça a falar: «Lembras-te de eu te contar que uma ou duas vezes por semana vou correr junto ao rio, do lado de Gaia?»

«Talvez.»

«Tu até me disseste que correr é das coisas que mais detestas.»

«Sim, já me lembro. E então?»

Pára de mexer o café e pousa a colher no pires. Ergue os olhos.

«Sabes como no Inverno anoitece cedo, às cinco e tal é de noite? E mesmo em Fevereiro ou no início de Março, antes da mudança da hora, às seis e meia, sete, já pouco se vê?» Faço que sim com a cabeça, mais para o incentivar a continuar do que por ser necessário responder a algo tão evidente. «Na zona da Cabedelo, ali junto ao areal, há uma série de candeeiros ao longo do percurso destinado a pedestres e ciclistas. Às vezes, não sei porquê, alguns apagam-se. Não costuma acontecer a todos, apenas a alguns. Às vezes só ficam apagados dois ou três segundos, outras vezes parece que nem chegam a acender.» Bebe um gole de café. Mastiga o gosto que lhe fica na boca e depois continua: «Costumo deixar o carro naquele parque mesmo ao lado da Afurada, de onde há uns anos tiraram as barracas dos pescadores e agora estão a acabar de construir a marina. Numa tarde do final de Fevereiro vinha a regressar, depois de ter ido dar a volta na zona das praias, a seguir ao hotel Casa Branca. Eram sete e tal, para aí umas sete e meia, já estava bastante escuro. Fiz aquela curva à direita, a descer, que separa a zona do mar da zona do rio, e apercebi-me de que os candeeiros estavam apagados. Quando entrei na zona escura fiquei quase sem ver. Um gajo qualquer passou por mim, a correr na direcção oposta, e só lhe vi o vulto quando ficou para aí a um metro de distância. Por acaso apercebera-me antes mas só por causa do som dos passos e da respiração ofegante. Em parte, deve ter sido o barulho que ele fazia que provocou o que aconteceu a seguir. Nem segundos depois de ele passar, apercebi-me de um vulto mesmo à minha frente, a correr na minha direcção. Travei mas era tarde demais e chocámos de frente. Ela (era uma mulher) deu um grito (eu nem me lembro se cheguei a gritar) e, instintivamente, agarrámo-nos um ao outro. Nem sei como mas conseguimos não cair. E então vem a parte verdadeiramente estranha. Em vez de nos largarmos de imediato, sabes como é, pedirmos desculpa, perguntarmos se estava tudo bem, em vez disso, quando nos conseguimos equilibrar continuámos abraçados mais um instante, como se quiséssemos ter a certeza de que não íamos mesmo cair. Eu não a via mas sentia que era magra, que tinha o corpo firme, e não me parecia muito alta. Lembro-me de sentir as mamas dela encostadas ao estômago e a transpiração dela nos meus braços, e de notar o cheiro e a respiração a bater-me no pescoço. Foram só dois ou três segundos, sabes, e talvez eu agora até imagine mais do que realmente aconteceu, mas é como se tivéssemos passado uma barreira, como se aquele tempo tivesse tornado impossível separarmo-nos e pedirmos desculpa, como seria normal, e seguirmos cada um para seu lado. Isto se calhar não faz sentido nenhum...»

«Faz. Continua.»

Dou uma olhadela à sala do café. Felizmente, as mesas mais próximas estão vazias.

«Beijámo-nos. Não sei como aconteceu. Mas, caramba, beijámo-nos a sério. Estávamos os dois sem fôlego por causa da corrida e precisávamos de respirar com frequência mas voltávamos a beijar-nos logo a seguir, como se não pudéssemos deixar passar muito tempo ou aquilo ia tudo por água abaixo. Empurrei-a para o lado da encosta, ou se calhar foi ela que me puxou, meti-lhe as mãos por baixo da camisola e tirei-lhe o soutien. Entretanto ela já tinha as mãos dentro dos meus calções e continuávamos a beijar-nos, e eu só sabia que ela tinha um hálito quente mas não desagradável, também naquela altura tudo me pareceria excitante, nada me faria parar, e então tirei-lhe as calças e ela baixou-me os calções e... bom, e fodemos. Não durou muito tempo, estávamos demasiado excitados – quer dizer, eu estava demasiado excitado – mas foi de loucos. Tínhamos os corpos tão transpirados e eu tinha tanto calor e continuávamos com dificuldades para conseguir respirar que... enfim, já ficaste com a ideia.» 

«Foda-se, fiquei com mais do que uma ideia, fiquei com tesão.»

O sorriso dele é fugaz.

«Desculpa.»

«Não há problema. Acho que já não ficava assim só por causa de um relato desde o primeiro ano da universidade. Tinha um colega de apartamento, mais velho – acho que já te falei dele – que fazia questão de nos contar as suas aventuras amorosas. Eram fantásticas mas descobrimos passado uns tempos que ele as ia buscar às cartas da Penthouse americana.»

César cora ligeiramente. Baixa os olhos para a chávena de café.

«Tudo o que te disse é verdade.»

«Eu sei, eu sei. Não estou a dizer o contrário. Não passou ninguém enquanto vocês fodiam?»

«Achas que reparei?»

«Ok, foi uma pergunta estúpida. E depois? Quando acabaram.»

«Depois foi super rápido. Separámo-nos e eu estava a puxar os calções para cima e a tentar pensar no que dizer quando ela se antecipou e desatou outra vez a correr na direcção do mar.»

«E tu o que fizeste?»

«Eu fiquei parado feito parvo, pá. Lembro-me de pensar que devia ir atrás dela mas não fui. Acho que, subconscientemente, pensei que era melhor deixar as coisas assim. Vim-me embora.»

«Voltaste a vê-la?»

«Não.»

«Tens vontade?»

Ergue os olhos.

«Ouve, isto não tem lógica nenhuma. A gaja pode ser casada, pode ser feia, pode gostar de música pimba, pode ter mil e um defeitos. Pode ser demasiado velha para mim, ou demasiado nova. Mas, ainda assim, sempre que vou correr ponho-me a olhar para todas as mulheres por quem passo, tentando perceber se é aquela e se por acaso não anda também a tentar encontrar-me.»

«A vida nem sempre é lógica», digo, e durante um par de segundos fico a pensar como me irrita não conseguir evitar os lugares comuns. «Mas acho que deves encarar o que se passou como uma experiência. Uma experiência do caraças, diga-se de passagem. Eu não me importaria de que uma coisa assim me acontecesse. Acho que nenhum gajo heterossexual se importaria. No fundo, isso é uma fantasia masculina concretizada. Podia estar mesmo nas cartas da Penthouse»

Sorri. Empurra a chávena.

«Até é um bocadinho pirosa», diz.

«Não me parece.»

Encolhe os ombros.

«Seja como for, às vezes penso que não passou mesmo disso. De uma fantasia. Um sonho.»

«Não seria um mau sonho.»

«Porque, estás a ver, se tivesse sido verdade já a devia ter encontrado outra vez, não achas? Apesar de não sabermos bem o aspecto um do outro, já devíamos ter-nos cruzado e como é possível que não percebêssemos de imediato? Quer dizer, eu agora passo a vida a examinar as mulheres que correm naquela zona. Honestamente, acho que chego a assustar algumas. E já nem olho só para aquelas que me parece terem a estatura e a configuração física certa. Começo a duvidar das minhas próprias recordações, percebes?, e olho para quase todas, agora. Tento perceber se é possível que tenha sido aquele cabelo que agarrei (ela estava de rabo de cavalo, sabes) e aqueles lábios que beijei e aquele corpo... fiquei com a sensação de que ela tinha um rabo – não gordo, mas cheiinho. Assim um bocadinho para o largo. Mas entretanto comecei a pensar que quando estamos na cama com uma gaja magra – enfim, tirando aquelas mesmo muito, muito magras – e lhe apalpamos o rabo, ele acaba sempre por surpreender um bocadinho, por ter mais carne do que parecia, sabes?»

«Hã-hã.»

«E então olho para as gajas todas, e para os rabos todos, e para os cabelos todos, e para gajas que me parecem mais baixas do que ela e mais altas do que ela. Enfim, olho para as gajas todas. E elas percebem, claro, e às vezes, quando estão gajos com elas, eles também percebem. Qualquer dia partem-me a cara.»

«Desiste.»

«Não consigo. Pelo menos para já.»

«Ouve, tu próprio o disseste: ela pode ser casada, ou ter cá estado pouco tempo, ou... sei lá, deve haver milhares de razões para não ter voltado a aparecer ou para andar a tentar passar despercebida. Pode ser freira. Pode ter engravidado.»

«Obrigadinho.»

«Desculpa. Sabes como eu sou. Mas acho que não deves fazer grandes filmes à volta dela. Tu próprio o disseste: não a conheces. Apenas fizeste sexo com ela.»

«Nem mais.»

Faz sinal à empregada. Tira moedas do bolso enquanto ela se aproxima.

«É para pagar», diz. «Pode ser os dois.»

«Ei, não me vais pagar o café.»

«Esquece.»

Coloca uma moeda de dois euros no tabuleiro. Enquanto a rapariga faz o troco, pergunto-lhe: «Diga-me uma coisa, Anabela, costuma fazer jogging

César deita-me um olhar de advertência mas ignoro-o. Ela responde: «Não, não gosto de correr. Mas às vezes vou ao ginásio. Porquê?»

«Era só para saber. Tinha de haver uma razão para estar em tão boa forma.»

Ela olha-me, desconfiada, mas acaba por sorrir. Um elogio é um elogio.

César recolhe o troco e saímos para o passeio. A temperatura está amena mas a luz do Sol já só ilumina o topo dos prédios. Pergunto: «Vais-te embora ou ainda voltas ao escritório?»

«Vou-me embora», diz. Sorri, encolhe ligeiramente os ombros. «Vou correr à beira-rio.»




José António Abreu @ 12:24

Seg, 30/04/12

 

Andréa: não se preocupe; pode deixar links à vontade. Eu é lhe peço desculpa por não ter respondido mais cedo mas tenho andado meio ausente (vamos ver se nos próximos dias tenho tempo para acabar mais um ou dois contos). Obrigado pelos elogios. Quanto a nunca mais o voltar a encontrar, as histórias incompletas são frequentemente as mais perfeitas - nas completas, os finais felizes são raros. :)