José António Abreu @ 20:49

Ter, 01/05/12

As pessoas horrorizam-se com o particular, com o específico. Se enviasse para os jornais estas considerações, poucas pessoas as leriam. Talvez nem fossem publicadas. Mas se descrevesse uma morte concreta, fornecendo pormenores sobre como tudo acontecera (as súplicas, os gritos, os familiares ou o Deus por quem a vítima – que termo impróprio – havia clamado, o pequeno sinal que tinha sob o seio esquerdo e o prazer que me dera cortá-lo, logo antes de lhe fazer o mesmo ao mamilo), nesse caso as pessoas leriam com fascínio. Duzentas mil mortes num tsunami no Extremo Oriente seriam nada sem imagens. Uma morte, com as imagens certas, ou até mesmo só com as palavras certas, causa mais horror. Imagino objecções: o tsunami tem causas naturais, não há maldade envolvida. Bom, talvez (a menos que se acredite em Deus, caso em que todo o horror devia ser dirigido para Ele, porque afinal mata muito mais e de formas mais variadas e criativas do que eu alguma vez terei hipótese de fazer). Mas uma pessoa que fica entalada sob os escombros de uma casa, que tem as pernas esmagadas e demora dias a morrer, passa por níveis de sofrimento tão intensos e bastante mais prolongados do que aqueles que eu tenho possibilidade de infligir (não por falta de esforço da minha parte, note-se). E nem sequer chega a ver o rosto do responsável pela sua morte. Eu mostro-me. As minhas vítimas (que termo irritante) vêem-me. Sabem sempre quem as mata. Como escrevi antes, as mais inteligentes chegam a perceber por que morrem.

Mas é possível que ainda venha a descrever alguns casos. Afinal, dizem que recordar é viver. Como, de resto, matar também o é. DeLillo escreveu-o em Ruído Branco (sim, gosto de ler): matar é uma forma de afastar o medo da morte. Quando é outro que morre, comprova-se a própria vida. Inteligente, apesar de ligeiramente presunçoso. E um tudo-nada teórico. Mas que experiência prática tem DeLillo?