José António Abreu @ 05:59

Qua, 20/04/16

Polícia. Questões em tom de voz neutral. Como se lhes fosse indiferente. Mais questões em tom de voz pressionante, até mesmo ameaçador. Como se soubessem. Mas não sabiam. Ele não tocara no homem. Nem sequer abrira a janela.

Exigiram que os acompanhasse à esquadra, um edifício feio, com o ambiente de um velho hospital de província, excepto pelo cheiro, mais indefinível embora não mais agradável. Quase duas horas em torno das mesmas perguntas, de preenchimento de papéis, de assinaturas. Finalmente mandaram-no embora.

Devagar, por entre o tráfego agora esparso, conduziu até casa.

 

Lamentava? Sentia remorsos? Honestamente, não. Sabia que devia sentir. Sabia que aquele homem, ainda que podendo ser estúpido e desprovido de civismo, não deveria ter morrido naquele momento, daquela forma. Teria família, colegas de trabalho, até mesmo amigos que, em resultado de apreço genuíno ou de auto-piedade (a morte dos que nos estão próximos é sempre um golpe contra nós), chorariam o seu desaparecimento. Ainda assim, recusou-se a sentir remorsos. Na sua raiva quotidiana, nos seus contactos diários com vítimas de acidentes, ganhara consciência da fragilidade e irrelevância da vida – de qualquer vida, incluindo a sua própria. Apenas umas quantas pessoas tão irrelevantes como o homem da Toyota chorariam a morte dele. O mundo continuaria a girar. As pessoas continuariam a sair para o emprego de manhã e a regressar a casa à noite. As estradas continuariam sobrelotadas. Aquele homem era tão importante como qualquer dos milhares de outros que naquele dia haviam morrido, em casa ou em hospitais. Tão importante como as dezenas ou centenas que tinham certamente falecido num atentado bombista algures no planeta. Tão importante como a velha que Raskolnikov assassinava em Crime e Castigo – com a diferença de que ele não se deixaria submergir pelo remorso. Até mesmo pessoas famosas – que importância têm? Menos de 0,1% da população é verdadeiramente relevante – por boas ou más razões.

Claro que não ficara satisfeito. Nunca desejara verdadeiramente matar alguém. Mas talvez o que mais o incomodasse era ver-se forçado a admitir – e tinha de o fazer porque detestava hipocrisias - que aquela capacidade, ambicionada durante anos a fio, deixara tão rapidamente de lhe dar prazer.

 

No dia seguinte teve outro desentendimento com o chefe. Mais uma vez, o seu trabalho – talvez a única coisa que ele estava certo de fazer bem – era questionado, naquela forma aparentemente benigna que lhe dava volta ao estômago e o deixava com vontade de ver quão alto conseguiria gritar. Enquanto o chefe falava, debitando platitudes em tom seráfico, a raiva subia-lhe em ondas sucessivas das entranhas até à garganta e aos maxilares. A certa altura percebeu que evitava olhar o chefe de frente. Imaginou até os títulos das notícias: «Olhos Mortais», «Não deixe que este homem olhe para si», «O verdadeiro X-Men». Reprimiu um sorriso a custo e percebeu que a raiva quase desaparecera.

Mais tarde, regressando a casa, fez estoirar mais quatro pneus e sentiu-se bem.

 

Na rua, quatro homens jogavam futebol. Os veículos tinham de abrandar, por vezes de parar, enquanto os homens se desviavam. Numa dessas ocasiões, um dos jogadores fingiu ir pontapear a bola na direcção do carro. Pouco depois, um remate mal direccionado levou a bola a embater num veículo estacionado. Por trás do vidro, cerca de dez metros acima do nível da rua, ele ouviu o ruído do impacto – um som ressoante com uma componente metálica. Os jogadores continuaram como se nada tivesse sucedido. O carro dele estava a salvo mas, ainda assim, ele sentiu uma golfada de raiva. Imaginou-se a apontar um espingarda com silenciador à cabeça de cada um daqueles homens e a premir o gatilho. Plop. Plop. Plop. Plop. Viu Christopher Walken, n’O Caçador, com sangue esguichando da cabeça. Depois apercebeu-se de que não se podia autorizar pensamentos daqueles. Agora eram demasiado perigosos. Podiam tornar-se realidade. Virou costas à janela.

Ligou o televisor. No ecrã surgiu a imagem de um repórter de pé numa rua onde tinha ocorrido um atentado. O repórter não sabia grande coisa do que se passara mas falava ininterruptamente porque em televisão – e cada vez mais na vida real - o silêncio não pode ser autorizado. Manteve-se a assistir durante um par de minutos mas depois sentiu a incongruência de tudo aquilo – de estar em pé no seu apartamento, defronte do televisor, de chinelos e t-shirt manchada de café, vendo uma não-notícia sobre acontecimentos verdadeiramente importantes (ou será que já nem sequer o eram?) – e desligou o aparelho. Permaneceu imóvel durante algum tempo. Do exterior, subiu o ruído de uma buzina de automóvel, a que se seguiu um coro de assobios e insultos. Resistiu à tentação de espreitar. A imagem do homem da Toyota caído no pavimento, com a face deformada pela surpresa e pela dor, assaltou-o mais uma vez.

Escorraçou a imagem, fechando os olhos e abanando a cabeça. Tentou decidir o que fazer. Qualquer coisa faltava – mais ainda agora que a televisão estava desligada. Olhou em volta. Música, livros, filmes, acesso à internet — tinha tudo isso mas nada parecia adequar-se. Devagar, dirigiu-se à casa de banho. Tentou urinar mas o fluxo saiu num espasmo e extinguiu-se. Guardou o pénis, puxou o autoclismo e voltou-se para o lavatório. Enquanto esfregava as mãos uma na outra, examinou-se no espelho. A imagem reflectida era claramente ele e, todavia, era também uma pessoa desconhecida, que mantinha segredos, ilusões, desapontamentos, fúrias e vergonhas que lhe escapavam – pior, que o enojavam. Olhou para os olhos daquela pessoa e percebeu, com uma nitidez assustadora, como ela lhe desagradava. Fechou a torneira e limpou as mãos. Inclinou-se para a frente, as mãos no rebordo do lavatório, o nariz quase a tocar o espelho. Olhou para o lado direito da cabeça, para a zona ligeiramente atrás e acima do olho. A artéria via-se – à justa – mas não pulsava. Era um canal discreto e delicado que o fez pensar num embrião – naqueles tecidos translúcidos que se vêem nas fotos de seres em desenvolvimento dentro do útero. Desconhecia o nome daquela artéria. Após o incidente fizera menção de pesquisar mas esquecera-se. Continuou a olhar para ela, tão incongruentemente fina e vital. Tentou detectar a pulsação mas falhou. Os olhos começaram a arder-lhe mas resistiu ao desejo de pestanejar. Continuou a observar a artéria – anónima, indefesa – que insistia em desempenhar o seu papel com suave obstinação. A casa de banho começou a dissolver-se em torno dele. O lavatório a que as suas mãos se agarravam transformou-se numa mancha. Reais, nítidos, eram apenas os seus olhos, à beira da ignição, e a pequena artéria na sua têmpora – ainda e sempre plácida, ainda e sempre indiferente. Receoso de não conseguir aguentar durante muito mais tempo, de ser derrotado pelo próprio corpo, fechou os olhos, tentando mantê-los imóveis por trás das pálpebras. Duas lágrimas, grossas e pesadas, deslizaram-lhe pelas faces. Respirou fundo, cerrou os maxilares, cravou as mãos no rebordo do lavatório e, antes da ardência desaparecer por completo, abriu novamente os olhos.




José António Abreu @ 05:58

Ter, 19/04/16

Arredores de outra cidade, o mesmo problema. Era hora de almoço, devia ter acontecido um acidente mais à frente. Sentado no carro, ele reparava como o fumo dos escapes conferia ao ar uma tonalidade cinzento-azulada. Buzinadelas de protesto faziam ricochete no interior da sua cabeça como bolas numa máquina de flippers. Estava cansado. Passara a manhã a investigar um incêndio no pavilhão de uma fábrica de componentes plásticos para a indústria automóvel. O incêndio começara numa cabina de pintura que possuía um sistema automático de extinção. Como seria de esperar, este encontrava-se inactivo. Havia extintores no pavilhão mas, em vez de os usarem, os dois trabalhadores no local haviam fugido. E, muito embora a fábrica até desse ideia de estar bem organizada, a causa do incêndio resumia-se à justificação habitual: “Sabe como é, estas coisas acontecem.” O ponto positivo era todos os indícios apontarem para simples incompetência.

Não viu o Honda vermelho de imediato. Veio da direita, de uma rua secundária, no momento em que a fila começou a andar. Normalmente ele deixava entrar os veículos naquelas circunstâncias. Mas já se encontrava em movimento quando reparou no Honda. O seu aparecimento repentino até o assustou, fazendo-o guinar para a esquerda – mas não parar. O condutor do Honda apitou um protesto. Ignorou-o. Pelo retrovisor, viu o Honda entrar na fila imediatamente atrás do seu carro e, num movimento contínuo, sair dela para a desimpedida faixa da esquerda (algo natural para quem pretendesse virar à esquerda cem metros adiante). Quando o espelho retrovisor direito do Honda embateu com estrondo no espelho do lado esquerdo do carro dele, fazendo-o dobrar no sentido errado (mas, verificá-lo-ia depois, sem o partir), foi – outra vez – apanhado de surpresa. Era ilógico e irritante que ainda conseguissem surpreendê-lo mas a verdade é que ficou sem reacção durante um par de segundos. Depois rebentou o pneu traseiro direito do Honda vermelho, que já estava a mais de trinta metros e ainda ganhava velocidade.

O Honda guinou bruscamente para a esquerda e embateu na divisória de betão. A traseira subiu e rodou no ar. O Honda deslizou de marcha-atrás contra a divisória ao longo de vários metros e parou. Seguiu-se uma pausa durante a qual o tempo pareceu ficar suspenso e depois várias pessoas saíram dos carros e correram para o Honda.

Ele deixou-se estar. Viu o condutor do Honda – um tipo de vinte e poucos anos, baixo, magro, barba por fazer, envergando calças e blusão de ganga – sair do carro, aparentemente sem ferimentos. Viu como o outro olhava na sua direcção. Suportou o olhar mas não sorriu. Tão depressa quanto pôde, saiu dali.

 

Ter o poder de causar acidentes graves era uma realidade que o perturbava. Certos actos mereciam punição – isso mantinha-se claro. Mas devia a punição incluir o risco de vida? E quanto a inocentes que pudessem ser atingidos? Até ao momento, rebentara pneus em situações de velocidade reduzida: tentativas de entrada em filas, utilização da faixa bus, descrição de rotundas pelo exterior, paragem em cima de passadeiras, desprezo pelo semáforo vermelho...  Contudo, não era difícil imaginar um cenário de destruição numa auto-estrada: um automóvel (conduzido por uma daquelas pessoas que recusam usar as faixas da direita ou que começam a fazer sinais de luzes a duzentos metros de distância, por exemplo) descontrolado, guinchos de pneus em travagem, choques sucessivos – e, depois, corpos espalhados pelo asfalto, sirenes de ambulância, polícias tentando manter a ordem, bombeiros cortando chapa para retirar alguém preso dentro de um dos veículos…

Não desejava aquilo. Apenas que os filhos da puta sem civismo sofressem um pouco. Teria de ser cauteloso.

 

«Sentes-te bem?»

Por causa do papel que desempenhava, o chefe achava-se na obrigação de fazer perguntas como aquela regularmente. Mas fazia-as com convicção nula. Muitas vezes, nem esperava pela resposta.

«Ando cansado», respondeu ele, aceitando jogar a pequena charada. Poderia ter dito: «Estou óptimo», que o resultado seria o mesmo.

«Levas tudo demasiado a sério», disse o chefe. E depois: «Viste o Benfica?»

 

As duas faixas fundiam-se numa quarenta metros adiante. Toda a gente o sabia. Havia sinalização vertical. Havia marcações no pavimento, perfeitamente visíveis. E, todavia, muitos condutores ignoravam a fila já constituída – naquela altura, nem sequer muito comprida – e mantinham-se na faixa da direita até à zona da junção. Conseguiam ultrapassar quatros ou cinco carros, se tanto.

Ele parou no término da fila. Chegou ao ponto de aglutinação trinta segundos mais tarde. Havia um furgão Toyota na faixa da direita, meio carro à sua frente. Nem sequer tinha o pisca ligado. Ignorou-o e avançou. Ouviu uma buzinadela mas manteve os olhos no carro da frente. Naquele instante, não poderia dizer se o condutor da Toyota era novo ou velho, magro ou gordo, se tinha cabelo comprido ou era careca. Pelo retrovisor, viu a Toyota entrar na fila logo atrás do seu carro.

A fila parou. Instinto ou experiência fizeram-no consultar novamente o retrovisor. Viu um vulto a abandonar o volante da Toyota. Pelo espelho da porta viu o homem – não muito alto, careca, gordo – aproximar-se. Sentiu um instante de pânico. Atabalhoadamente, verificou que a luz indicativa do trancamento das portas estava acesa. Quando o homem bateu no vidro, manteve o olhar fixo em frente. Isso pareceu apenas irritá-lo mais. Berrando se não o tinha visto, bateu com força no vidro e tentou abrir a porta. Finalmente, ele rodou a cabeça e olhou para o homem. Tinha a cara vermelha mas não a cabeça. A cabeça era branca. Vestia calças de ganga e um pólo com os botões desabotoados. O pescoço e a zona do externo eram tão vermelhos como a cara. Tinha poucos pêlos, excepto no nariz, e suava profusamente.

«O que é que quer? Desapareça.»

Foi um erro. O homem aumentou o tom dos insultos e bateu ainda com mais força na janela. Depois deu um pontapé na porta.

A cabeça do homem tinha-o perturbado de imediato. Por causa da cor, da transpiração, dos pêlos no nariz e da artéria que pulsava na têmpora direita. Mais tarde, ele perguntar-se-ia se tinha mesmo sentido raiva suficiente para aquilo suceder. Se tinha – e claro que tinha; o resultado não deixava margem para dúvidas –, fora certamente mais difusa, menos consciente do que em qualquer outra situação anterior. Ter-se-á visto a sair do carro e a pregar um murro na cara do outro homem; ter-se-á visto a pontapeá-lo enquanto ele se encontrava no chão; nunca se imaginou a rebentar-lhe a artéria.

Não houve esguicho de sangue. Apenas dor súbita na cara do homem, que se agarrou à têmpora direita, emitiu um grito estranhamente agudo e tombou no pavimento.

Ele permaneceu dentro do carro, ouvindo o homem gritar. Após uma mão-cheia de segundos, viu-o levantar-se, agarrado aos rails de metal que delimitavam a via a partir daquela zona, e tentar correr na direcção da carrinha. Viu-o cair quase de imediato.

Abriu a porta e saiu. Evitando olhar para o homem, fazendo um esforço para se abstrair dos gritos, marcou 112 no telemóvel. O veículo do INEM demorou vinte minutos a chegar. O homem já estava morto.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 05:57

Seg, 18/04/16

Jantou uma lata de atum com meia lata de feijão frade. Misturou tudo, acrescentou azeite, levou dois minutos ao microondas. Lavou prato, copo e talheres, e sentou-se na sala, pequena e demasiado cheia, com o portátil e um livro pousados no sofá ao seu lado. Forçou-se a ver as notícias. Depois fez zapping. Encontrou novelas, reality-shows, talk-shows, debates sobre arbitragens e foras-de-jogo de jogos de futebol, séries, um ou outro filme. Pensou que nessa noite já ingerira enlatados suficientes (a ironia fê-lo sorrir) e desligou o televisor. Lembrou-se de um velho tema de Bruce Springsteen (57 channels and nothin’ on), lançado numa época em que a televisão portuguesa apenas tinha dois canais, e recordou a sua ingenuidade ao pensar que o Boss estava maluco: com 57 à disposição, como seria possível nada de interessante estar a dar? Ainda pensou em colocar o CD no leitor mas a ideia rapidamente lhe surgiu como pueril. Tentou trabalhar mas descobriu que não conseguia concentrar-se. A certa altura, começou a ouvir pancadas, risos e o som de uma televisão no apartamento de cima. Conhecia mal as pessoas que lá viviam. Um casal de trinta e tal anos, sem filhos – por enquanto. Tornou a ligar o televisor mas os sons provenientes do outro apartamento subsistiram. Ficou a ouvi-los, olhando para o ecrã sem tentar extrair sentido das imagens mas mudando frequentemente de canal. Foi deitar-se perto da meia noite.

 

Acordou com dor de cabeça. O mais pequeno movimento fazia o cérebro pulsar uma onda de dor. A descida para o nível das garagens, no elevador que arrancava e parava com safanões e um estoiro metálico, deixou-o nauseado. O ruído do motor do carro era suficientemente abafado para não o incomodar mas o rádio renasceu numa explosão sonora que o entonteceu. Desligou-o com uma pancada, manobrou por entre os pilares e pela rampa acima, avançou para o término da fila.

Progrediu no pára-arranca habitual durante dez minutos, vendo carros dar o golpe duzentos, depois cem, depois cinquenta metros à sua frente. Atingiu por fim a zona de combate. Como habitualmente, colou a frente do carro à traseira do que o precedia – uma carrinha Mitsubishu conduzida por uma mulher que passava a mão no cabelo a cada cinco segundos. A primeira tentativa surgiu de imediato. Resistiu. Suportou uma segunda. A terceira foi mais agressiva – como se o outro condutor estivesse disposto a causar um acidente para entrar na fila (e quem sabe? Talvez estivesse). Agarrou o volante com força, pressionou a buzina, resmungou “Filho da puta” e assestou o olhar no pneu dianteiro do lado direito do outro carro. O estoiro foi imediato. Como na véspera, a frente do veículo teve um breve movimento ziguezagueante – quase parecia uma reacção de surpresa – e depois imobilizou-se.

Desta feita não houve paz. Apenas júbilo selvagem – que demonstrou, rindo abertamente ao ultrapassar o outro carro.

 

Não podia ser coincidência. Não duas vezes. Depois de se acalmar, perguntou-se o que diabo estaria a acontecer. Sentiu-se mesmo – agora sim – um pouco assustado. Mas rapidamente decidiu que não havia forma de chegar a uma conclusão racional – e, por conseguinte, a atitude mais racional era nem sequer tentar encontrá-la. Iria apreciar – e utilizar plenamente – este poder durante tanto tempo quanto lhe fosse possível. Quando desaparecesse, encolheria os ombros e seguiria em frente. Até lá, obrigaria aqueles filhos da puta a pagar caro todas as tentativas de fazerem dele um idiota. Raiva era a resposta – bruta, não diluída, honesta. Era isso que tinha de sentir ao olhar para aqueles pneus.

 

A facilidade era desconcertante. Na manhã seguinte deixou quatro carros com pneus rebentados no acesso à via rápida. Os condutores faziam perguntas uns aos outros e pesquisavam o pavimento em busca de objectos cortantes. Ele tinha vontade de rir e, por momentos, não foi capaz de o evitar. Apenas os condutores à sua frente na fila, que haviam abrandado para ver o que se passava, lhe estragavam ligeiramente a disposição.

 

Aprendeu depressa a controlar a raiva. Em poucos dias, funcionava quase sempre. Cerrava os dentes, assestava os olhos no pneu e apertava o volante como se este fosse o pescoço do outro condutor. A tensão no maxilar originava uma pressão nas têmporas que se desvanecia logo após o rebentamento.

 

Disseminada pelos boletins radiofónicos de informações de trânsito, na semana seguinte a estranheza começara a instalar-se Não passava um dia útil sem que rebentassem pneus naquele acesso. Na quarta-feira, havia polícia no local. Mas, com a presença da polícia (dois motociclistas entroncados com o olhar duro de quem deseja fazer jus ao uniforme), menos condutores tentaram dar o golpe e nenhum o fez perto dele. Todos os pneus passaram incólumes nessa manhã. Na seguinte, porém, cinco condutores tiveram de parar, perder tempo e sujar as mãos.

 

«Sentes-te bem?», perguntou Sara, parando junto à secretária dele.

Clicou no ícone save e ergueu os olhos para ela. Rodou o pulso, que desde há um par de anos lhe doía sempre que passava uns minutos a utilizar o rato. O estalo não fez abrandar a dor.

«Tão bem como noutros dias. Porquê?»

Sara vestia uma saia que terminava acima dos joelhos. Era uma má escolha para alguém com a idade - e especialmente o peso – dela.

«Tens andado... não sei, quase feliz. Ainda mais maníaco do que o habitual mas quase feliz.»

«E isso é mau?»

«Não. Não. Não sei.»

Ele tentou olhar para ela como se fosse a primeira vez que a via. (Era um exercício a que se entregava com frequência. Tentar re-adquirir uma primeira impressão de pessoas que conhecia há muito. Era também um exercício que, pela inutilidade, o irritava ligeiramente.) Perguntou-se se ela ainda lhe era atractiva, não obstante tudo o que sucedera entre ambos. Surpreendentemente, a resposta era positiva e gerava nele sentimentos de vergonha e desprezo – por ela mas ainda mais por ele.

«Tenho de acabar este relatório. Mas obrigado pela preocupação.»

«Não estou preocupada contigo.»

«OK.»

«Até pareces mais bem disposto.»

«Impressão tua.»

Ela hesitou. Depois moveu o corpo todo para encolher os ombros e foi-se embora.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 05:56

Dom, 17/04/16

Trabalhava numa empresa de investigação de causas e avaliação de danos de acidentes, quase sempre contratada por companhias de seguros. Diariamente, visitava locais afectados por incêndios, inundações, acidentes de trabalho graves, roubos. Falava com as vítimas – pessoas sem um braço, queimadas ou paralisadas –, com os colegas delas, com os patrões e com os familiares. Para todos eles, representava o inimigo. O indivíduo que, na sequência de uma infelicidade, vinha procurar formas de lhes recusar aquilo a que julgavam ter direito. Enfrentava essas situações com a mesma predisposição com que enfrentava o trânsito. Tinha uma tarefa a desempenhar e desempenhá-la-ia bem. Com cortesia e firmeza. Buscando factos. Recusando ser afectado por emoções. Este modo de conduta não tornava o processo indolor mas, no início da carreira, aprendera que estabelecer outro tipo de relação só dificultava o processo. Nem mesmo quando procurava levar as pessoas a dizerem-lhe o que provavelmente deveriam calar fingia amizade. Certas formas de actuação pareciam-lhe indignas. Pelo contrário, insistir, apontar contradições, ameaçar com as consequências de teimar numa mentira, esses constituíam procedimentos aceitáveis - e ele usava-os melhor do que ninguém.

Estava consciente de que era um trabalho de merda. Mas, nos cinquenta e dois anos que levava de vida, ganhara experiência suficiente para saber que quase todos são.

 

O chefe queria discutir o último relatório dele. Não porque tivesse erros (umas quantas acções de formação e pelo menos outros tantos livros sobre gestão de recursos humanos faziam o chefe começar todas as críticas com paliativos) mas porque desejava estar bem preparado ao apresentá-lo ao cliente. E porque achava que ele fora demasiado taxativo nas conclusões. «Estamos basicamente a chamar aldrabão ao sinistrado.»

«É o que ele é.»

O sinistrado era um empresário com três empresas do sector da cortiça, que andara a retirar material de uma delas antes da ocorrência de um incêndio. Não fora possível provar a natureza fraudulenta do incêndio mas ficara imediatamente óbvio que as quantidades de cortiça, de rolhas e até mesmo de equipamento (quão estúpido era preciso ser para retirar do local duas máquinas de escolha de rolhas e depois exigir que a seguradora as pagasse?) eram muito inferiores às reclamadas.

«Ele devia ser preso.»

«Talvez. Mas uma coisa é fornecer dados que permitam à seguradora decidir, outra é praticamente decidir por ela.»

«Ninguém está a decidir por ela. No relatório só se referem as inconsistências nas quantidades e as declarações de testemunhas que viram veículos levar cortiça das instalações no fim-de-semana anterior.»

Os olhos do chefe mostraram resignação por ter que lhe explicar novamente certas evidências. «É demasiado taxativo. Não deixa margem à seguradora…»

«E porque devia deixar? Há lá alguém com interesse em que o sinistro seja pago rapidamente, sem ondas?»

Nos olhos do chefe, a resignação passou a irritação.

«Sabes bem que não é isso. Fazê-los levar para tribunal um caso que lhes vai custar dinheiro e que acabarão por perder só vai levá-los a confiar menos em nós no futuro. E depois há as idas a tribunal que isto vai implicar. Não ganhamos dinheiro por ir a tribunal.»

Sentiu-se insultado, depois relaxou. Não valia a pena. «OK, amanhã trato disso.»

«Prometi entregar o relatório hoje.»

Levantou-se da cadeira. «Vai ter de adiar. Tenho pouco mais de três horas para fazer duzentos quilómetros – e comer qualquer coisa.»

«Dá tempo. Fazes as alterações em dez minutos.»

«Não num relatório desta importância, quando posso ter de ir a tribunal defender o que escrevi. Trato do assunto amanhã de manhã. »

Era sempre assim: resistia apenas para adiar o inevitável. Saiu, deixando o chefe a remoer o compromisso. Sara fê-lo parar. «Tens um minuto?»

Sara era a administrativa da empresa. Dava apoio ao chefe, aos três técnicos permanentes e a quaisquer outros contratados a recibo verde. Quarenta e poucos anos de idade, um metro e sessenta e cinco, divorciada, sem filhos. Uma dezena de quilos em excesso agrupados no tronco e nas ancas (a cara era surpreendentemente magra), cabelo pintado num tom de castanho que a embalagem juraria ser louro. Prolongava a última palavra de cada frase, fazendo tudo o que dizia soar a queixumes.

Dois anos antes, haviam tido uma relação. Em menos de um mês, estavam fartos um do outro. Sara descobrira nele os aspectos que ele sempre julgara estarem bem à vista (a intransigência, a falta de sociabilidade), ele surpreendera-se com quão desinteressante, carente e desorganizada ela era. A relação deixara um efeito de estranheza e ressentimento, que se manifestava sempre que a conversa se desviava do plano estritamente profissional.

«Não posso, estou atrasado. Tem que ser agora?»

Ela hesitou.

«Não, deixa estar. Conduz com cuidado.»

«Sempre. Até amanhã.»

Recolheu a pasta que deixara junto à secretária e saiu.

 

No final da tarde, ao regressar a casa, não resistiu e tentou de novo. O dia acabava tão cinzento como começara mas já não chovia. Nas três faixas da auto-estrada, o trânsito avançava cem metros de cada vez e depois parava repentinamente. Quando um miúdo num Focus com jantes pretas e ponteira de escape sobredimensionada fez uma diagonal da faixa da direita para a da esquerda, acabando dez ou quinze metros adiante do carro dele, parado na faixa do meio, fez o que fizera de manhã: olhou para o pneu traseiro direito do outro automóvel e desejou que rebentasse. Nada aconteceu. Verificou que a sua faixa continuava parada e tentou novamente, obtendo o mesmo resultado. Sentiu-se ridículo e zangado. Quando a faixa central avançou, o rapaz no Focus saltou para ela e, depois de ultrapassar um monovolume, regressou à da esquerda. Ele resistiu à vontade de fazer uma terceira tentativa e conduziu até casa com a raiva borbulhando-lhe na garganta.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 05:55

Sab, 16/04/16

Ficou estupefacto, da primeira vez que aconteceu. Não se assustou, ou pelo menos não muito; ficou apenas estupefacto. Como acreditava em explicações lógicas — como dependia de explicações lógicas — disse a si mesmo que fora uma coincidência. Mas não conseguiu evitar um sorriso de vitória ao passar pelo quarentão engravatado que olhava para os restos do pneu do carro com ar de surpresa e irritação.

 

Acordava todas as manhãs para um mundo de filhos da puta. Pior: levantava-se da cama e ia juntar-se-lhes. Trinta segundos após sair de casa estava mergulhado no trânsito, enfrentando picos de violência que normalmente apenas no final do dia eram igualados — mas nunca ultrapassados. Pensava: as pessoas fazem questão de começar o dia da pior forma possível. Depois: talvez seja uma estratégia; a aberração do trânsito matinal imuniza para o que quer que possa correr mal durante o resto do dia. Mas claro que não imunizava e ele sabia-o por experiência própria: com o emprego que tinha, algo corria sempre mal.

Vivia na periferia, num prédio de cinco andares. Se o carro não lhe fosse indispensável para o trabalho, deixá-lo-ia em casa – muito embora a ideia de passar três quartos de hora no interior de um autocarro, entalado entre guarda-chuvas molhados e sovacos mal-cheirosos, todas as manhãs e todas as tardes, ter força suficiente lhe causar vómitos. Ponderara deixá-lo estacionado junto à sede da empresa – um espaço de pouco mais de cem metros quadrados num prédio velho do centro da cidade – mas o risco de roubo ou de vandalismo era-lhe inaceitável. Apesar do cuidado que tinha na escolha dos locais onde o estacionava, a pintura já sofrera vários riscos e pancadas. O carro constituía uma das poucas âncoras que possuía – funcionava quase sempre do modo esperado; pedia pouco; tinha avarias que, como um osso partido no corpo humano, eram fáceis de entender – e não merecia ser abandonado à sorte.

Todas as manhãs, a selvajaria começava a poucas centenas de metros de casa, no acesso àquilo que apenas total inconsciência ou improvável humor negro permitira baptizar “via rápida”. Ele posicionava-se na faixa da direita, no término de uma fila com cerca de trezentos metros de comprimento. Soluçava em frente, tentando manter uma distância mínima para o veículo que o precedia – e a calma. Não era fácil, especialmente ao chegar à zona onde numerosos condutores procuravam forçar a entrada na fila. Ele nunca — nunca — deixava entrar alguém. Também nunca forçava a entrada em fila alguma. Nos cinquenta mil quilómetros que fazia anualmente, apenas erro ou distracção o poderiam levar a realizar um acto condenável. Naquela primeira fila do dia, como em muitas outras subsequentes, quem agia daquele modo estava a tentar ganhar dez minutos à custa dos restantes. Isso era-lhe inaceitável. Homens, mulheres, gordos, magros, bonitos, feios, conduzindo veículos caros ou baratos — ninguém entrava. Por vezes, fazia questão de olhar os condutores nos olhos, num esforço (que sabia inglório) de tentar fazer passar a sua posição — de intransigência mas, acima de tudo, de justiça. Gestos ou sorrisos pedindo um favor já não resultavam — sinais de hipocrisia, nada mais.

 

Chovia ligeiramente, naquele final de Março. Uma morrinha tão suave que era quase nevoeiro. O pisca do BMW preto lembrava uma sequência de fósforos apagados pela chuva logo após o clarão inicial. O BMW permaneceu ao lado e ligeiramente à frente do carro dele até a fila avançar e depois começou também a mover-se — mas ele foi mais rápido e não permitiu a criação de espaço suficiente. O homem no BMW percebeu que não valia a pena insistir — na estrada, certos sinais são inconfundíveis, mesmo sem contacto visual ou troca de palavras — e avançou alguns metros para tentar a sorte junto do condutor do veículo seguinte — um homem gordo, que momentos antes atirara uma ponta de cigarro pela janela da carrinha de caixa aberta que conduzia. Quando a fila avançou novamente, o homem da carrinha de caixa aberta esperou até o BMW se colocar à sua frente — e depois já não avançou, por falta de espaço.

Com frequência, apitava um protesto. Naquela manhã nem o fez. Mas, quando os veículos à frente dele avançaram, começando a descrever a longa curva à direita de acesso à via rápida, o olhar dele pousou na parte lateral esquerda do BMW – a única que conseguia ver. Pensou como seria agradável arrastar o condutor para fora do carro, atirá-lo ao asfalto, pontapeá-lo um par de vezes. Fixou os olhos no pneu traseiro direito do BMW e, de dentes cerrados, apertando o volante, pensou como seria adequado que ele explodisse naquele preciso instante, forçando o filho da puta a parar, sair do carro, molhar-se, perder a vez na fila, sujar as mãos.

Lembrar-se-ia de um estrondo surpreendentemente abafado — distorção da memória ou talvez efeito da chuva. Porém, encontrando-se a olhar para o pneu, teria dispensado o som. A traseira do BMW estremeceu e depois decaiu um pouco, como se alguém tivesse baixado um macaco pneumático. A parte inferior do pneu, dobrada e presa sob a jante, parecia ter sofrido um processo de fusão. Mas até mesmo a zona que não estava em contacto com o asfalto suscitava estranheza: a flacidez, o ligeiro afastamento entre o rebordo e a jante realçavam a incongruência decorrente da perda súbita de função (um objecto artificial que perde a função perde o sentido) e faziam do pneu rebentado não tanto um objecto real e prosaico mas algo mais imaterial – um conceito, uma experiência, um castigo.

Primeiro sentiu surpresa e choque, depois satisfação. Era perfeito. Exactamente o que desejara. Tão exactamente o que desejara, de facto, tão no preciso instante em que o desejara, que classificar o acontecimento como coincidência parecia forçado. Mas ele tivera fantasias similares antes e nada acontecera. Era uma coincidência. Uma fantástica e justa coincidência.

Quando passou pelo BMW, a visão do homem a olhar para os restos do pneu fê-lo sorrir e respirar fundo. Foi invadido por uma sensação de calma. Era uma sensação que não experimentava com frequência durante aquelas manhãs. Era uma sensação que — estava certo disso — se dissiparia rapidamente. Mas era uma excelente sensação.

 

(Continua amanhã...)




José António Abreu @ 08:47

Sab, 17/03/12

Não sei se sou um mentiroso excepcional, se as pessoas não prestam tanta atenção aos outros como estes julgam (ou, quando têm algo a esconder, receiam), se tivemos apenas imensa sorte. Ninguém pareceu suspeitar de nada. Apresentei a minha demissão três dias depois da morte de Patrícia. Houve esforços para me convencer a ficar, se não naquela unidade, pelo menos noutra fábrica do grupo, mas eu sabia não poder aceitar. Demasiadas pessoas, em Espanha e em Portugal, sabiam da existência de Patrícia. Mais cedo ou mais tarde, haveria perguntas. Por isso recusei permanecer na empresa e recusei dizer quem me tinha feito uma proposta melhor e no processo destruí todo o respeito que conquistara ao longo dos anos.

Os momentos de tensão foram demasiado frequentes para que os descreva a todos. De certa forma, é mais correcto afirmar que existiu apenas um, contínuo, em que a intensidade do nosso medo flutuou mas nunca desapareceu. Era-nos impossível pensar noutra coisa — sei que posso falar por Susana — e quando o cérebro procurava escapar obrigávamo-lo a recentrar-se, a lembrar o que se passara e a situação em que nos encontrávamos. Permitir outros pensamentos parecia uma saída fácil, uma traição à memória de Patrícia.

E, todavia, parece-me hoje que a maioria desses momentos de tensão nasceu dos nossos temores e não de ameaças reais.  O medo era real, a sensação de falsidade constante mas o nosso planeamento e a nossa execução acabaram por se revelar quase perfeitos. Tivemos sorte, logo de início, quando a mulher-a-dias telefonou a dizer que estava doente e não podia vir no dia em que estava previsto. Isso deu-nos um fim-de-semana. Queimámos parte da roupa de Patrícia na lareira e, na Segunda-Feira seguinte, dissemos-lhe que ela estava em Portugal, em casa dos avós. Quando os meus colegas de trabalho organizaram um jantar de despedida, decidimos que eu iria mas que Susana ficaria em casa (de qualquer modo, ela recusava-se a ir), o que permitiria evitar chamar a atenção para a ausência de Patrícia. Quando o meu pai fez sessenta anos, telefonei-lhe tarde (por muito que ele me achasse distante, seria estranho não lhe ligar) e, quando pediu para falar com Patrícia, expliquei-lhe que já estava a dormir. Dúzias de ocasiões como estas foram enfrentadas da melhor forma que conseguimos, sempre à espera de que algo corresse mal, sempre surpreendidos (mais eu, Susana pouco falava) quando, uma e outra vez, isso não sucedia. Podia descrevê-las em pormenor. Tornar aquelas duas semanas num filme de suspense barato. Mas não o farei. Não tenho qualquer desejo de relembrar aqueles momentos. Foram – acabaram por ser – irrelevantes. Porém, sinto necessidade de salientar quão forte Susana teve de ser. Procurava não sair de casa e ter de enfrentar outras pessoas mas algum contacto era inevitável. As conversas com a empregada, por exemplo, exigiam-lhe um esforço titânico: lembro-me do sorriso desesperado que afixava quando um dia cheguei a casa e a mulher não parava de falar acerca da neta. Aproveitei para lhe dizer que não precisava de voltar, uma vez que estávamos a dias de regressar a Portugal. «Mas ainda falta uma semana», contrapôs. Expliquei-lhe que não valia a pena porque a casa iria estar uma confusão assim como assim e garanti-lhe que o mês lhe seria pago na totalidade. Passei os restantes dias temendo que ela houvesse desconfiado de alguma coisa mas, mais uma vez, nada aconteceu. As pessoas gostam de falar e estou convencido de que contou a muita gente como nós éramos estranhos mas não terá feito mais do que isso.

No fim-de-semana antes de regressarmos a Portugal grelhei quase vinte quilos de carne de porco, cortada como se fosse fiambre. Permiti que as fatias ficassem bem esturricadas e desfi-las para dentro de um tupperware. Foram estas cinzas que apresentámos às nossas famílias como sendo as de Patrícia (dentro de uma urna comprada numa funerária de Oviedo aquando do regresso).

Fui verificar a sepultura todos os dias. Normalmente fazia-o depois de anoitecer mas, por vezes, também durante as horas de luz. Chegava junto do muro num passeio que tentava que parecesse casual, saltava para o lado de lá e subia a encosta como se estivesse a dar um passeio – como se estivesse a aproveitar os últimos dias para fixar os encantos do local na memória. Quando saltava do muro abaixo e, mais tarde, quando descia a encosta de regresso a casa, aproveitava para verificar se a zona de terra revolvida se notava muito. Notava-se imenso. Para tentar disfarçá-la, na terceira noite após o enterro cavei ao longo do muro, quatro ou cinco metros para cada lado da cova. Tinha esperanças de que cerca de uma dezena de metros de terra revolvida fizesse pensar que tinham andado ali a introduzir um tubo ou qualquer coisa do género mas, na realidade, não fazia. Não dando já ideia de uma sepultura, continuava a parecer estranho.

Susana nunca me perguntou onde enterrara Patrícia mas um dia, ao regressar da empresa, encontrei-a do lado de fora do muro, olhando para a zona de terra solta e escura. Tentei evitar pensar há quanto tempo lá estaria e se alguém a teria visto e levei-a para casa, caminhando ao longo do muro até à estrada com o meu braço direito em torno da cintura dela – como se passeássemos, esperava eu. Não falámos. Nessa época falávamos pouco. Todas as palavras se haviam tornado inadequadas.

Vinte e três dias após a morte de Patrícia deixámos Espanha.

 

Não sei o que vai acontecer. Não sei se alguma vez o corpo será descoberto. Mesmo que não seja, há pontas soltas: por exemplo, não temos certidão de óbito. De cada vez que ligo a televisão, folheio um jornal, respondo à campainha da porta ou abro a caixa do correio espero o pior. O mesmo acontece com Susana. Nos últimos dois anos a nossa vida tem sido tão confinada que é quase como estarmos na prisão. Mas estamos presos juntos e isso tem um valor inestimável. Dependemos um do outro mais que nunca. A nossa relação está indelevelmente marcada pela morte de Patrícia. Antes, havia uma componente de desespero mas agora essa componente é tão forte que chega a ser uma dor física. De cada vez que fazemos amor, dói-nos olhar nos olhos do outro. De certa forma, o nosso amor nunca esteve tão forte. Mas depender tanto dele esgota-nos, deixa-nos exaustos.

Susana nunca se perdoou e suspeito que às vezes julga que a culpo pelo que aconteceu. A dor nos olhos dela durante o acto sexual é tanto expressão dos seus sentimentos por mim quanto um pedido de desculpa. Mas eu perdoei-a. Totalmente. Sem restrições. É em mim que encontro razões para culpa. Por um lado, sinto que me alheei do crescimento de Patrícia e que recusei ver os indícios de que nem tudo estava bem (ou, pelo menos, agir sobre eles). Por outro, devido ao que sucedeu, às vezes sinto que tenho um ascendente sobre Susana. Que a consigo controlar. Não desejo isso. Somos iguais, como sempre no passado. A bofetada, demo-la juntos. O encobrimento, fizemo-lo juntos. Se alguma vez formos acusados do crime, somos ambos culpados.

Não tenho a certeza de estar arrependido do que fiz. Às vezes penso que sim, noutras acho que procedi da melhor forma possível. Julgo que a ideia de enterrar Patrícia me surgiu por acreditar – ou desejar acreditar – que, fazendo-o, poderíamos rapidamente passar por cima do que sucedera e seguir em frente. Foi um erro. O que fizemos, do início ao fim, é um fardo muito mais pesado. Devíamos ter chamado a polícia, explicado que fora um acidente, arcar com as consequências. Desta forma, ficou tudo dentro de nós – dentro de Susana, em particular. A exposição pública e um castigo – se chegasse a existir: a morte de Patrícia foi um acidente – poderiam ter permitido uma expiação menos interior e mais eficaz. Mas, claro, o castigo poderia ter sido a prisão e a possibilidade de ser afastado de Susana, para mais sabendo-a a sofrer, continua a revelar-se-me insuportável.

Enfrentar famílias e conhecidos foi mais difícil do que esperávamos. Por muito que proclamassem não quererem forçar-nos a reviver o que acontecera, assaltaram-nos com pergunta após pergunta. Sempre que nos foi possível, evitámos responder. Isso desagradava-lhes. Deixava-os irritados. Como se tivéssemos que satisfazer curiosidades mórbidas. Como se tivéssemos uma qualquer espécie de dívida para com eles. Felizmente, o passado jogava a nosso favor. Sempre estivéramos à parte, sempre fôramos outsiders que nunca haviam cedido a desejos de terceiros. Porque nos conheciam, todos acabavam por encolher os ombros e, por entre resmungos, deixar o assunto cair.

Encontrei um novo emprego menos de um mês após o regresso. Susana dizia-se incapaz de se concentrar e apenas retomou a actividade meio ano depois. Numa coincidência irónica e perturbadora, o primeiro livro que a editora lhe enviou para tradução era sobre como lidar com crianças.

Temos estado à espera. Podemos ter dias, podemos ter o resto das nossas vidas. Não dizer que tenhamos a vida em pausa porque, fora dos nossos cérebros, tudo está como gostaríamos que estivesse. Dispusemos de dois anos para nos habituarmos a viver de acordo com estas premissas e julgo que estávamos a conseguir fazê-lo. Esta nova mudança no rumo dos acontecimentos é totalmente inesperada.

Pouco depois de regressarmos sugeri fazer uma vasectomia. Discutimos o assunto e chegámos à conclusão de que era melhor mantermo-nos tão discretos quanto possível. Talvez mais tarde. Afinal, Susana tomava a pílula. Toma a pílula. Algo correu terrivelmente mal.

Susana continua a agarrar-me as mãos. Olha-me em silêncio. Olho-a também, tentando perceber se já tomou uma decisão. Apenas detecto medo e tristeza. Mudo a posição das nossas mãos, de modo a ser eu a segurar as delas. Inclino-me para a frente e beijo-a nos lábios. Estão frios e secos. Digo: «Amo-te» porque, independentemente do que viermos a dizer e a fazer, quero que isso fique claro.




José António Abreu @ 08:43

Qui, 15/03/12

Vira-as de imediato. Ficara junto à porta, sem saber como agir, sentindo que acabara de entrar numa realidade alternativa, num palco onde se representava uma peça na qual era suposto eu desempenhar um papel que nunca me fora enviado para decorar. Haviam passado alguns segundos, não mais do que alguns segundos, e depois eu avançara para Susana. Ela recusara os meus cuidados, estendendo os braços, deslizando no chão, e eu desviara a minha atenção para Patrícia.

Agora, na sala, eu disse: «Temos de chamar uma ambulância. E a polícia.»

Susana permaneceu em silêncio, sem discordar, aguardando apenas que eu tratasse do assunto. Mas eu não peguei no telefone. No interior da minha cabeça, vozes gritavam que chamar as autoridades era a coisa correcta a fazer, a única coisa a fazer. E, no entanto, hesitei. A marca na face de Patrícia, o relato de Susana, o tempo que havíamos demorado – algo me dizia que iríamos enfrentar imensos problemas e que nenhuma vantagem existia em chamar quem quer que fosse. Patrícia estava morta, nada a traria de volta. Havia uma culpa a remir mas não resultava de qualquer crime público, muito menos de homicídio. Susana e eu éramos culpados de outro crime, mais íntimo, pouco adequado a debates legais, à frieza dos tribunais e à exposição mediática. Mas a polícia não veria as coisas dessa forma. Investigaria, faria perguntas, duvidaria. Com a comunicação social a pressionar, não me custava imaginar Susana sendo presa. E para quê? De que forma seria a prisão melhor forma de expiação do que o arrependimento que ela já sentia?

Pensei em chamar uma ambulância e não a polícia. Mas os paramédicos perceberiam que Patrícia morrera horas antes. E chamariam a polícia.

 Não sei quanto tempo demorei a dizer as palavras. Sempre que penso naquele dia (e há constantemente no meu cérebro imagens do corpo de Patrícia tombado ao fundo das escadas), o tempo parece-me ter seguido regras diferentes das habituais. A conversa na sala não pode ter durado mais do que alguns minutos – um quarto de hora, talvez – mas surge-me como tendo sido extremamente longa. De qualquer modo, tenham decorrido dez segundos ou dez minutos, eu disse: «Podemos não avisar ninguém.»

Susana encarou-me finalmente mas somente por um instante. Fez a pergunta já a olhar em frente: «O que queres dizer?»

Expliquei-lhe, delineando o plano enquanto falava. Podíamos regressar a Portugal. Havíamos levado uma vida isolada, afastada dos habitantes da região. Talvez ninguém reparasse na ausência de Patrícia durante as semanas seguintes. E, ainda que notassem, podíamos dizer que ela estava em Portugal, com os avós. Às nossas famílias teríamos de admitir que morrera. Diríamos que acontecera na sequência de uma doença ou de um acidente (uma doença era melhor) e que fora enterrada (não, cremada) em Espanha. Recomeçaríamos a nossa vida em Portugal e deixaríamos este acontecimento para trás.

À medida que falava, eu sentia-me cada vez mais assustado mas também cada vez mais desejoso de começar a pôr o plano em marcha, de começar a fazer qualquer coisa. Susana ouviu a minha proposta com a inexpressividade com que efectuara o relato da morte de Patrícia e depois perguntou: «Estás a falar a sério?»

Estava? Sim e não. Havia uma parte de mim que apenas desejava que tudo seguisse os trâmites normais. Mas respondi: «Por que não? Tu… não cometemos qualquer crime mas vai ser como se tivéssemos cometido.»

Não sei se Susana chegou a concordar. Explicitamente, nunca o fez e interrogo-me com frequência se lhe terei tornado as coisas mais difíceis ao evitar que tivesse de assumir publicamente o acto que cometera. Mas trata-se apenas de mais uma entre a miríade de dúvidas com que desde então me debato e não posso permitir-me arrependimentos inúteis. O que fiz, fi-lo por ambos. Para proteger Susana mas também por mim, que não consigo imaginar-me a viver sozinho. No fundo, as minhas decisões decorreram de puro egoísmo.

Deixei Susana na sala e fui em busca de algo com que abrir uma sepultura.

 

Às vezes as coisas combinam-se de forma tão perfeita que toda a lógica parece apontar numa determinada direcção – por muito questionáveis que direcção e lógica venham a parecer mais tarde. Desconheço o que teria sucedido se na casa não existissem utensílios que me permitissem abrir a cova. Seria, aliás, natural: a casa nunca fora ocupada de forma permanente, o mobiliário não ia além do indispensável para a tornar confortável, nas traseiras não existiam campos de cultivo, apenas um espaço de terra seca à espera de uma família que lá aplicasse relva ou instalasse um grelhador para churrascos ou construísse uma piscina (depois do nascimento de Patrícia, Susana e eu faláramos de aproveitar melhor o terreno mas nunca de forma séria; ainda que nos sentíssemos bem vivendo nela, aquela casa não era nossa). A que propósito haveria de existir uma pá ou uma enxada por ali? E, claro, se não existisse, o meu plano teria entrado em colapso, uma vez que não poderia abrir a sepultura com as mãos ou com uma colher de cozinha. Poderia ter ido comprar uma pá mas era demasiado tarde para encontrar as lojas abertas. E sair, deixando novamente Susana sozinha com o cadáver de Patrícia, estava fora de questão. Para mais, a ideia de enfrentar outras pessoas assustava-me. Receava não conseguir agir naturalmente e deixar pistas óbvias que a polícia viesse a seguir. Duas semanas mais tarde, perante a notícia da nossa partida, perante a ausência de Patrícia, alguém poderia questionar-se sobre o motivo que levara o director da fábrica de aglomerados a comprar uma pá à hora de jantar. Estranhamente, penso que uma parte de mim desejava não encontrar com que abrir a cova. Desejava ver a realidade impor-se, expor o meu plano como o produto de um cérebro perturbado que certamente era, tirar-me o controlo das mãos. É algo que iria perdurar: durante os dias que se seguiram e em todos os dias que decorreram desde então, a sensação, assustadora e atraente em igual medida, de que o curso dos acontecimentos está prestes a sair-nos das mãos nunca me abandonou. Isto não é um relato de suspense e posso admiti-lo já: até hoje, tal não aconteceu. Naquela noite, o primeiro local a que me dirigi foi ao compartimento das traseiras junto à porta da cozinha. Numa das prateleiras que nunca usáramos, por entre lixo e sacos de serapilheira, encontrei um ancinho, uma enxada e uma pá. Reafirmo que não sou crente mas foi quase um sinal divino.

Demorei muito mais tempo a decidir o local onde abrir a cova. Nenhum me parecia seguro. Demasiado perto da casa e os próximos ocupantes (o meu substituto e família) poderiam estranhar o rectângulo de terra revolvido ou expor o corpo por outro motivo qualquer – na construção da tal piscina, por exemplo. Demasiado longe, já do lado exterior do muro, e, para além de não ter o edifício a proteger-me de olhares indiscretos enquanto cavasse, aumentariam as probabilidades do corpo ser desenterrado por cães ou por pessoas abrindo as fundações para uma nova casa ou escavando um poço ou levando a cabo qualquer outra actividade igualmente ridícula. Tive pena de que nas proximidades não existissem árvores – poderiam ter ajudado a esconder o que fazia e, ao mesmo tempo, servirem como uma espécie de memorial, um sinal de que Patrícia não fora esquecida. Mas apenas vegetação rasteira forrava a encosta. Enquanto a luz do dia se desvanecia num pôr-do-sol nebuloso, caminhei para trás e para a frente, achando defeitos em todas as hipóteses que avaliava. Acabei por escolher um ponto do lado de fora do muro, quase encostado a ele, onde a terra era mais escura (e, esperava eu, mais mole) e a cova apenas se veria subindo para cima do muro ou descendo a encosta em direcção à casa. Era praticamente noite cerrada quando cravei a lâmina da enxada no terreno.

Cavei durante horas, mergulhado numa escuridão quase completa. Havia uma luz por cima da porta da cozinha mas era fraca e o muro bloqueava-lhe o efeito. Eu tinha uma lanterna mas mostrava-se inútil e, de qualquer modo, eu temia usá-la. De início, o progresso pareceu-me nulo. Contrariando as minhas expectativas, a terra estava dura e seca, emitindo um ruído áspero de cada vez que entrava em contacto com uma das lâminas. Primeiro cavei de fora, com a enxada, depois do interior da cova, com a pá. Depressa enfrentei problemas com a colocação da terra solta. Ao decidir abrir o buraco mesmo junto ao muro, eliminara um dos lados onde, em terreno aberto, poderia colocar terra. Para agravar a situação, a inclinação do terreno, apesar de ligeira naquele ponto, fazia com que a terra colocada do outro lado depressa começasse a deslizar novamente para dentro do buraco. De cinco em cinco minutos, eu era forçado a arrastá-la para mais longe, o que atrasava tudo. Felizmente, protegido pelo muro e pela casa umas dezenas de metros mais à frente, devia ser praticamente invisível a partir da estrada – onde, de resto e como de costume, o trânsito era reduzido (ainda assim, obsessivo como sou mas também para evitar pensar no que fazia, cheguei a contar os segundos entre veículos). De cada vez que ouvia um carro aproximando-se, baixava-me e permanecia imóvel até o ruído se extinguir. A partir de certa altura, a lâmina da enxada começou a oscilar em torno do cabo, dificultando ainda mais as coisas. De alguma forma, esperara que se a terra se fosse tornando mais mole com a profundidade mas isso não aconteceu. Senti um desapontamento estupidamente intenso ao percebê-lo. Também não fazia ideia da profundidade conveniente. Quanto mais fundo, melhor, dizia-me. Por isso (e talvez por receio da fase seguinte) fui cavando e cavando e cavando mais um pouco até já só conseguir sair do buraco apoiando os braços na sua borda e usando pés e pernas nas paredes laterais para me impulsionar. Quando finalmente parei, a cova tinha quase a minha altura – de pé lá dentro, apenas a minha cabeça permanecia de fora. Pousei a pá, saltei o muro, sacudi a terra da roupa e entrei em casa.

Esforçara-me por não pensar no momento em que teria de ir buscar o corpo de Patrícia. Perguntara-me algumas vezes o que estaria Susana a fazer, a pensar, a sentir. Forçada por mim, depois de tantas horas sozinha com o cadáver da filha, a suportar mais umas quantas. Passei pela entrada, onde a presença do corpo de Patrícia mantinha toda a incongruência, e entrei na sala. Susana encontrava-se estendida no sofá. Tinha os olhos fechados mas não dormia. Deixei-me estar um par de segundos a olhá-la e depois saí novamente.

Subi as escadas para o primeiro andar e fui buscar um cobertor ao quarto de Patrícia. Escolhi um cor-de-rosa, felpudo, que ela usara para se embrulhar durante o Inverno enquanto via televisão na sala. Desci e estendi-o sobre o corpo. Puxei Patrícia na minha direcção, fazendo-a rodar para dentro do cobertor. Depois peguei-lhe ao colo, dobrando o excedente do cobertor em torno da cabeça e dos pés dela, e saí de novo para o terreno das traseiras. Apagara a luz e foi às escuras que caminhei até ao muro. Pousei o cobertor com Patrícia em cima dele e saltei para o outro lado. Peguei novamente no cobertor, pousei-o junto à borda da cova e, pela última vez, saltei para o seu interior. Arrastei o cobertor para os meus braços, baixei-me e pousei-o, com o corpo de Patrícia dentro, junto aos meus pés. Depois, procurando, por uma qualquer razão obscura e totalmente ilógica, que não se verificasse queda de terra, trepei até à superfície, liguei a lanterna e apontei o feixe lá para baixo.

Exagerara nas dimensões da cova. O volume com o corpo de Patrícia ocupava pouco mais de três quartos do comprimento e cerca de dois terços da largura. Era uma visão incongruente mas também apaziguadora: o cobertor cor-de-rosa acrescentava à cena uma componente de surrealismo e, por momentos, senti que não estava a enterrar uma pessoa mas um brinquedo, um peluche gigante que se estragara. O meu relógio marcava uma da manhã. Desliguei a lanterna. Não houve lágrimas nem orações. Limitei-me a pegar na pá e a encher a cova de terra. Foi rápido mas parecia sobrar terra. Tentei alisar o monte com a pá. Cerrei os maxilares e saltei-lhe em cima. Com a pá, retirei a terra em excesso e espalhei-a pelas redondezas. Decidi que naquele momento nada mais podia fazer. Na manhã seguinte reavaliaria a situação.

Sentia-me transpirado e sujo. Fui recolocar os utensílios na prateleira de onde os retirara, peguei num balde, num pano e numa esfregona, subi ao primeiro andar, lavei a esquina da cama onde a cabeça de Patrícia batera, desci as escadas, lavei a zona do pavimento onde o corpo dela ficara caído, fui novamente à cozinha, passei balde, esfregona e pano por água várias vezes, guardei-os e dirigi-me para a sala. Sentei-me ao lado de Susana. Deixei passar alguns segundos e apertei-lhe a mão. Um pouco mais tarde, ela retribuiu.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:43

Ter, 13/03/12

Uma boneca partida. Uma boneca grande, assustadoramente real, caída ao fundo das escadas, de peito para baixo, com as pernas ligeiramente abertas, a cabeça virada para a esquerda e para cima, num ângulo que parecia pouco natural sem que fosse fácil explicar porquê. Devagar, com uma consciência enjoativa de cada passo, aproximei-me. Ajoelhei-me, sentei-me sobre os calcanhares. Durante uma eternidade fui incapaz de lhe tocar. Pensava talvez que enquanto não o fizesse a situação não seria real, que ela não precisaria de acordar. Ou que eu não precisaria de acordar. O cabelo, louro e comprido, espalhava-se sobre o pavimento castanho-escuro como um pôr-do-sol desenhado por uma criança – como um pôr-do-sol que ela própria poderia ter desenhado. Os olhos estavam abertos e eu nunca vira neles tanto medo – nem naquelas ocasiões em que ela acordava a meio da noite com um pesadelo e corria a chorar para a nossa cama. O único sangue visível encontrava-se na face esquerda, numa ferida irregular. Olhei para cima, para onde Susana se encontrava imóvel, junto à porta da sala, os braços pendendo ao lado do corpo, os dedos das mãos movendo-se quase imperceptivelmente (ou acrescentarei agora detalhes ao que de facto aconteceu?). Não olhava para mim nem para Patrícia. Mantinha o olhar fixo num ponto ligeiramente ao nosso lado, como se recusasse encarar-nos mas, ainda assim, não pudesse deixar de nos manter dentro do seu campo de visão. Como se desejasse evitar a realidade mas não se atrevesse a negá-la. Eu tinha a pergunta na boca mas adiei-a para mais tarde e voltei a concentrar-me em Patrícia. Toquei-a na face. A temperatura da pele não me pareceu substancialmente diferente da que seria se ela tivesse passado algum tempo no exterior, durante o Inverno. Mas havia mais qualquer coisa — uma espécie de camada sebácea que parecia inumana e me fez estremecer. Era como se Patrícia, a minha filha, tivesse sido na realidade um extraterrestre ocupando o corpo de uma criança. Introduzi a mão esquerda sob a sua face e tentei levantar-lhe a cabeça. Veio tão facilmente que temi que se pudesse separar do resto do corpo. Forcei-me a tactear a parte de trás do pescoço dela. Não consegui sentir a vértebra partida ­— mas tinha de existir uma, não é verdade? Ou teria a morte ocorrido em resultado de danos na cabeça, provocados pelo embate no pavimento? Neste caso, por que não se via sangue ou uma fractura no couro cabeludo? Fosse o motivo qual fosse ­­— Patrícia estava morta. Permaneci imóvel durante um instante, depois pousei novamente a cabeça dela no chão, retirando a mão devagar para que não batesse nele outra vez, e levantei-me. As pernas ardiam-me mas senti-me grato por isso. Necessitava de uma dor fácil de compreender – e de gerir.

Olhei para Susana. Ela resistiu ao contacto visual durante alguns segundos e depois o nosso olhar encontrou-se. Começou imediatamente a chorar. Dei três passos em frente e abracei-a. Não retribuiu e, quando afrouxei a força do abraço e recuei para a olhar, soltou-se, usando todo o corpo para escapar, e caminhou — não correu — para o interior da sala. Rodei e olhei novamente para o corpo de Patrícia, ainda pequeno e imóvel e desprotegido e dolorosamente belo. A cena — toda a sequência de eventos, na realidade — mantinha uma pátina de surrealismo, parecendo impregnada de uma lógica estranha, deformada, que eu sentia ter obrigação de descodificar — de certa forma sentia que, se conseguisse descobrir o código, tudo voltaria ao normal. E então percebi que estava a deixar-me tombar em fantasias e senti-me irritado comigo mesmo e fui à procura de Susana.

Estava sentada num canto do sofá, em posição fetal, os braços em torno dos joelhos. Sentei-me a seu lado mas não fiz qualquer tentativa para lhe tocar. A sala estava abafada e o sol desenhava a cruz do caixilho da janela no chão à nossa frente. Perguntei: «O que aconteceu?»

Susana começou a falar de imediato. Senti que tinha necessidade de o fazer e que apenas estivera a aguardar a pergunta. Como se ela mesma precisasse de ouvir a descrição dos acontecimentos. Falou em tom monocórdico e creio não ter olhado para mim uma única vez enquanto descreveu o que se passara. Apesar da prontidão, no início parecia ter dificuldade em seleccionar as palavras e pronunciava-as devagar, como se lhe magoassem a boca. Explicou que Patrícia estivera impossível durante toda a manhã. Enquanto Susana arrumava os quartos e a casa de banho (tínhamos uma empregada mas vinha apenas duas vezes por semana), andara constantemente em torno dela, procurando envolvê-la nas suas brincadeiras. Era uma luta diária que Patrícia ganhava quase sempre mas hoje Susana não estava disposta a deixar-se arrastar. Estava tensa, incapaz de cedências ou compromissos. Dormira mal mas isso não era desculpa. Sentia-se no limiar de qualquer coisa — de um colapso ou de uma explosão.

(A voz de Susana era rouca mas estável. A forma como descrevia os acontecimentos, os pormenores que juntava, fazem-me ainda hoje pensar nas horas que passou à espera, a poucos metros do corpo de Patrícia, revivendo o que sucedera uma e outra vez. Parecia ter chegado não a uma desculpa mas a uma espécie de descrição densa e minuciosa que, pelas exigências de concentração que impunha, lhe permitia continuar a falar. Apeteceu-me várias vezes dizer-lhe que eu sabia como Patrícia conseguia ser irritante, de um egoísmo absoluto, que ela não precisava de me contar todos aqueles pormenores, mas não o fiz. Susana parecia necessitar dos pormenores. De analisar tudo, incluindo as próprias motivações. Deixei-a falar. E se agora conto o que se passou em voz indirecta é porque sou incapaz de fazer justiça ao que ela me disse e à forma como o disse, é porque faço questão de reclamar para mim quaisquer ideias negativas que o relato possa suscitar.)

Tudo se passara finalmente muito depressa. Susana aspirava o chão do nosso quarto. Patrícia continuava em torno dela. A certa altura, puxou o cabo do aspirador, arrancando-o da tomada. Susana gritou-lhe. Patrícia desatou a chorar, Susana mandou-a parar, disse-lhe para sair do caminho mas Patrícia não obedeceu (fazia isso muitas vezes, finca-pé numa posição, corpo hirto, expressão de raiva e martírio). Susana deu-lhe uma bofetada. Com força, na cara. A pancada e o movimento que Patrícia fez para tentar escapar-lhe fizeram-na cair. Bateu com a face esquerda na esquina da cama. Começou a chorar com mais intensidade, levantou-se, evitou Susana, que já estava em pânico, e correu para o andar de baixo. Susana ouviu o grito e o ruído da queda e soube que Patrícia estava morta.

(Nesta altura do relato, lembro-me de me aperceber que Susana não mencionara uma única vez o nome de Patrícia. Continuo sem saber se isso tem algum significado.)

«Por que não me telefonaste?»

Continuando a não me olhar, hesitou pela primeira vez. Encolheu ligeiramente os ombros. Primeiro disse que não sabia mas, após um momento, explicou ter percebido de imediato que Patrícia estava morta. Eu nada poderia fazer. E – disse-o num murmúrio em que se misturava vergonha e raiva – nada era real enquanto mais ninguém soubesse.

(Estou certo de que existe outro motivo: Susana quis poupar-me, adiar o instante em que eu seria confrontado com a morte de Patrícia. Nunca o mencionou mas certas coisas não precisam de ser mencionadas. Não entre nós.)

E então passou horas sentada junto ao corpo de Patrícia, costas contra a parede, joelhos contra o peito. Nunca me contou os pormenores daquelas horas, o que pensou, o que fez, se chorou, se se agrediu (nos dias seguintes, pareceu-me existirem marcas nas pernas, nos braços e no abdómen dela), se recordou as minhas reticências quando me anunciou a gravidez, se foi alguma vez à casa de banho, e eu nunca tive coragem para perguntar. Se o nascimento de Patrícia nos afastara um do outro, criando áreas de desconforto, a sua morte, voltando a deixar-nos sozinhos um com o outro, solidificou alguns desses universos privados. Sei que, a certa altura durante o dia, o telefone tocou e ela não atendeu. Sei-o porque era eu quem ligava e lembro-me – ou estarei novamente a imaginar coisas? – de ficar apreensivo por um momento, antes das solicitações do emprego me desviarem a atenção.

Susana apenas me disse que ficara imóvel, incapaz de raciocinar. «Era como se estivesse tudo em suspenso, à espera da tua chegada.» E agora eu estava em casa e também não sabia o que fazer.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:40

Dom, 11/03/12

Para ser sincero, no início as mudanças não foram significativas. Pelo menos para mim, que saía de casa de manhã cedo e só voltava à noite. (Houvera uma fase, logo após Susana se mudar para Espanha, em que ia almoçar a casa mas depois Susana convencera-me a não o fazer: «Perdes muito tempo», explicara-me, «e obrigas-me a fazer almoço todos os dias.») Assim, era Susana quem levava Patrícia ao médico, quem lhe comprava roupas, comida, a maioria dos brinquedos. Patrícia apenas me forçava a interagir com estranhos quando se sentia mal durante a noite e saíamos os três a correr para o hospital, as luzes do carro varrendo a estrada com um nervosismo enjoativo, eu e Susana quase sempre em silêncio (o que há para dizer nestas alturas que não pareça deslocado e supérfluo?). As doenças de Patrícia nunca se revelaram graves mas a sensação de urgência nunca decresceu. De cada vez, era como se precisássemos não só de confirmar que ela ficaria bem mas também de que não tínhamos culpa de ela estar doente – desconheço o que sucede com os outros casais mas, para nós, que nunca havíamos desejado filhos, tornava-se difícil evitar a sensação de não estar à altura da tarefa. Felizmente Patrícia foi um bebé saudável e não nos obrigou a viagens destas mais do que três ou quatro vezes durante o primeiro ano de vida. Dormia quase sempre bem, acordando-nos somente às horas a que tinha de ser alimentada.

Se tenho dificuldade em classificar esses primeiros meses da vida de Patrícia como exaltantes, não posso deixar de considerar que foram ainda, tudo considerado, um período de relativa felicidade.

 

«Olá, papá.»

Eu apoiava um joelho no chão e ela saltava para os meus braços. Sentia-lhe o peso nos braços, o cabelo no pescoço, o calor no peito.

«Olá, pequenina», dizia eu, «tive saudades tuas.» Era importante para ela que lho dissesse. Quando eu não o fazia de imediato, nunca deixava de o perguntar.

Ficávamos assim um instante e depois eu largava-a e erguia-me para enfrentar Susana. Beijávamo-nos mas não com paixão nem durante muito tempo. «Papá, anda ver o meu desenho.» Susana e eu sorríamos um para o outro. Eu tinha a sensação de ver indícios de cansaço em torno dos olhos e da boca dela ­– as rugas permanentes de cada lado da boca eram recentes, como o eram as marcas escuras sob os olhos. À noite, na cama, por vezes ela perguntava-me se começava a parecer velha. Eu respondia que não mas ela não acreditava. Então eu dizia-lhe que, de qualquer modo, não importava. Apesar de sorrir e até de me abraçar ou beijar, eu percebia que a minha resposta não bastava.

Explicitamente, nunca abordámos as mudanças que Patrícia trouxera à nossa vida. Aqui e ali, expressões como «nos tempos em que não tínhamos a Patrícia» ou «se não fosse a Patrícia» surgiam na conversa mas nunca nos sentámos a falar das alterações que o nascimento de Patrícia impusera à nossa relação. Antes, «nos tempos em que não tínhamos a Patrícia», cada um de nós parecia preocupar-se antes de mais com o outro. Com os interesses do outro, com o bem-estar do outro. Agora, como sempre esperáramos (como sempre temêramos) éramos forçados a levar os interesses de Patrícia em consideração. A satisfazê-los primeiro. E depois descobríamo-nos demasiado cansados para pensar um no outro.

Na verdade, mesmo quando tentávamos focar-nos apenas em nós, algo estava diferente. Um exemplo talvez insignificante, certamente menor: durante anos, eu comprara presentes a Susana. Não apenas no aniversário ou no Natal (desprezávamos pessoas que se limitam ao cumprimento de calendários) mas quando via alguma coisa (um par de sapatos, um livro, um anel) que julgava poder agradar-lhe. Depois do nascimento de Patrícia – e em especial depois de ela começar a andar e a balbuciar palavras e frases – os presentes eram recebidos não com as calorosas demonstrações de afecto do passado mas com um par de beijos e um olhar ligeiramente triste e conformado. E eu passei a comprar-lhe cada vez menos presentes.

 

E depois as coisas pioraram. Se Patrícia fora um bebé calmo, depressa se tornou uma criança problemática (o termo desagrada-me mas não consigo encontrar melhor). Procurava atenção constante e não admitia ser deixada de fora de qualquer manifestação de ternura. Sempre que Susana e eu nos abraçávamos ou beijávamos, corria para nós e exigia ser abraçada e beijada. Gestos de amor entre nós (entre mim e Susana, quero dizer) eram gestos roubados a Patrícia – ou assim ela parecia considerá-los. Apenas aceitava demonstrações de afecto entre nós que a tivessem como intermediária.

Desconheço as razões para estes ataques de ciúme. Há muito que Susana e eu não éramos sequer particularmente demonstrativos nas nossas manifestações de afecto um pelo outro. Creio que nunca recusámos a Patrícia o carinho que lhe era devido. E, no entanto, ela parecia pensá-lo. Talvez um psicólogo conseguisse detectar um padrão, um acto nosso que ela achasse insuportável, mas nós éramos sempre apanhados de surpresa, ficando sem saber como agir. Os ataques de Patrícia provocavam desconforto entre nós mas causavam ainda mais danos na nossa relação com ela. Faziam com que se transformasse quase numa intrusa, num (tremo ao escrever a palavra) empecilho. A circunstância, inevitável, de ela detectar a nossa reacção só aumentava a sua insatisfação e o nível das suas exigências.

 

Retrospectivamente, sou capaz de detectar sinais de como o fardo sobre Susana se começou a tornar excessivo. (A menos que o meu cérebro os imagine, num jogo de autodefesa – é demasiado frustrante perceber que nada podia ter sido feito – e, simultaneamente, de autodestruição – se eles existiam, como puderam escapar-me?) Antes de Patrícia nascer, eu lera artigos sobre depressão pós-parto. Nas semanas que se seguiram ao nascimento procurei sinais de depressão em Susana. Nada detectei. À medida que as semanas, depois os meses, depois os anos passavam, fui deixando de pensar no assunto. No que me dizia respeito, as coisas haviam tombado numa rotina suave, pouco excitante mas não inteiramente desagradável. De vez em quando dizia a Susana que ela me parecia cansada, que devia descansar mais, e perguntava o que podia fazer para a ajudar mas aceitava as respostas moles que ela dava e não procurava ir mais além. A frequência, duração, profundidade e humor das nossas conversas reduziram-se até restar pouco mais do que um silêncio resignado. Nas primeiras vezes em que Susana gritou com Patrícia fiquei surpreso mas não acreditei que fosse indício de algo sério. Depois Susana começou também a gritar comigo e senti-me ainda mais estupefacto e também magoado (não costumava haver gritos entre nós). E então, uma noite antes do jantar, Susana esbofeteou Patrícia e eu tive uma conversa com ela mas ela já estava arrependida e eu acabei a abraçá-la. Depois fui fechando os olhos. Julgo que esperava que, mais cedo ou mais tarde, tudo regressasse ao normal, qualquer que fosse agora a normalidade.

Dizem que o amor cega. É verdade. Fechamos os olhos tentando mantê-lo vivo.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:44

Sex, 09/03/12

Foi numa Sexta-Feira à noite. Estava frio mas ainda não acendêramos a lareira. O vento, forçado a contornar a casa ao subir encosta, assobiava nas soleiras das portas e das janelas. No televisor, Don Corleone sussurrava em castelhano. Não sei por que recordo estes pormenores mas tenho a certeza de que estão correctos. Eu encontrava-me sentado na nossa sala pouco mobilada, tentando reunir forças para mudar de canal (gerava-se em nós um estranho fascínio sempre que víamos programas dobrados em castelhano) quando Susana veio da cozinha e se sentou na outra ponta do sofá. Pediu-me para desligar o televisor. Brando desapareceu por entre ruído de estática. Durante segundos, Susana e eu permanecemos imóveis e silenciosos, como que aguardando pelo desvanecimento dos estalidos provenientes do ecrã. Finalmente, ela disse: «Estou grávida.» Deixou que eu absorvesse as palavras e só então esboçou um sorriso — um sorriso tímido, expectante, apologético, que era também uma questão.

Eu não sabia a resposta. Permaneci em silêncio durante muito tempo, vendo a esperança desaparecer da face dela e ser substituída por uma mistura de desapontamento e resignação. Eu estava consciente de que necessitava de dizer qualquer coisa mas sentia-me incapaz de o fazer; de proferir as palavras que anulariam a tensão do momento, que tornariam aquela gravidez não apenas algo inesperado e assustador, mas também algo de excitante — um projecto arriscado mas estimulante que enfrentaríamos juntos.

«Não estás satisfeito», disse Susana. Não era uma pergunta.

Eu disse: «Não tenho a certeza. Tu estás?»

Susana encolheu os ombros. Eu disse: «Sinto-me bem na nossa situação actual.»

Mas juro-te, Patrícia: nunca ponderámos sequer a possibilidade de realizar um aborto.

 

No passado, a pergunta surgira com frequência: quando iríamos ter filhos? Respondíamos tão bruscamente que a maioria das pessoas marcava a questão como «sensível» e evitava colocá-la novamente. A nossa irritação devia-se mais ao facto de sermos perguntados do que ao tema. Nos primeiros tempos, Susana e eu chegáramos a discutir o assunto. A ideia de ter filhos não era apelativa para nenhum de nós, pelo menos no curto prazo. Era algo que apenas aceitávamos como possibilidade para o futuro. Eu nunca me sentira confortável junto de crianças – ficava tenso e solícito, parecendo falso aos meus próprios olhos, ou desatento e impaciente. Susana tinha muito mais jeito mas acabava sempre a realçar o esforço que as crianças exigem. A atenção constante que é necessária. O desgaste que provocam. E assim ter filhos converteu-se numa possibilidade não descartada mas adiada para um futuro que nunca parecia aproximar-se. De tal modo que, desde a minha ida para Espanha, nunca a voltáramos a abordar. Agora, a realidade impusera-se e, por ter sido apanhado de surpresa (ou por mais do que isso?), eu não conseguira dar a Susana todas as garantias que ela desejava. Por ínfima diferença que uma reacção mais clara pudesse ter feito, ainda hoje preferia não ter transmitido aquela dúvida.

 

A gravidez foi um período estranho. Havia uma falta de à-vontade entre nós que era quase como se tivéssemos regressado aos primeiros tempos da relação. O corpo de Susana voltara a ser algo de misterioso e ligeiramente ameaçador. Observava-o quando ela saía do banho e se esfregava com a toalha. Pedia-lhe para ficar quieta ou para se deitar na cama e pesquisava-o à procura de mudanças. Acariciava-lhe o ventre, que nas primeiras semanas mostrava apenas a ligeira curvatura que sempre tivera, tentando senti-lo expandir ou detectar sinais de vida (de uma vida diferente) no seu interior. Era ainda demasiado cedo. Nessa fase o sexo voltou a ser um acto exploratório: quase como se estivesse a praticá-lo com uma nova encarnação de Susana. Tudo ainda era ela, parecendo exactamente como sempre fora, mas ao mesmo tempo tudo era ligeiramente diferente. Sentia estar a tocá-la com uma reserva anormal, que temia pudesse constituir o prenúncio do nosso inevitável afastamento. Mas então, quando a barriga começou a aumentar e a realidade da gravidez se tornou fisicamente evidente (quase obscena, na forma impiedosa como o corpo de Susana era forçado a dilatar), nasceu (ou talvez tenha apenas despertado) em mim uma tendência para a transgressão. Houve alturas em que penetrar Susana me parecia um acto de desafio, uma espécie de pecado jubilatório, que me permitia unir-me a ela apesar da presença de forças inimigas. Era como se fodesse um acto de Deus. Como se Lhe dissesse que não ia vencer-nos. Finalmente, após cinco ou seis meses, o acto sexual tornou-se ainda outra coisa. Susana ficava quase sempre por cima, cansando-se depressa, e eu olhava-a fixamente nos olhos. Fazia-o para tentar descobrir se a magoava mas também de forma a evitar reparar como o corpo dela se deformara. Algo estava muito errado: aquela pessoa com barriga dilatada e mamas pesadas não era ela, nem uma nova encarnação dela, mas uma pessoa completamente diferente, com quem eu tinha sexo que, não sendo totalmente insatisfatório, também não era agradável. Sentia-me quase como se enganasse Susana ao ter relações sexuais com esta mulher. E então Susana disse-me que era melhor evitarmos o sexo durante o último par de meses de gravidez e, se a minha reacção imediata foi de alívio, mais tarde senti uma estranha sensação de privação. Como se me houvesse sido negada uma parte indispensável da vida em comum. Como se uma entidade estranha (não tu, Patrícia, nunca pensei que fosses tu) me estivesse a negar um direito que adquirira ao casar com Susana, um direito que julgara irrevogável. Em nenhum outro período desde a adolescência (nem sequer durante o tempo que passara sozinho em Espanha) me masturbei com tanta frequência e me senti tão sujo por fazê-lo.

 

Hesitámos quanto a saber ou não o sexo do feto antes do parto. Susana perguntou-me a opinião. Encolhi os ombros. Não desejava passar o ónus da decisão para ela mas era-me indiferente. Perguntou-me então se preferia rapaz ou rapariga. A resposta foi imediata: «Rapariga.» Sorriu. Sorriu ainda mais (e apertou-me a mão) quando a médica que fazia o exame disse: «Es una chica.» Sei que também sorri mas não me lembro de ter dito alguma coisa.

 

O parto foi difícil. Doze horas depois do início do trabalho de parto, os médicos decidiram executar uma cesariana, receosos de que o bebé pudesse estar a sofrer. Eu não tinha dúvidas de que Susana estava. Permaneci ao lado dela, zangado com os médicos mas também comigo – pela minha inutilidade e por ser responsável por isto estar a acontecer. Era um erro, que nunca compensaria os riscos e a dor que causava. Finalmente Patrícia foi arrastada para fora de Susana, chorando de medo e de incompreensão, Susana foi sedada para poder descansar, e eu afundei-me numa cadeira do hospital tentando lidar com as emoções. Sentir o corpo de Patrícia nos meus braços foi uma experiência simultaneamente exultante e aterradora, em que grande parte do terror vinha não do medo de a perder (existia também esse medo, claro, quase como se ela pudesse parar de respirar apenas porque eu não lhe estava a pegar da forma correcta) mas de não conseguir antever as mudanças que aquela pequena criatura cor-de-rosa, enrugada, feia e atraente ao mesmo tempo, causaria na minha relação com Susana ­– até àquela gravidez, ou talvez mesmo até àquele ponto, tão perfeita e linear quanto eu alguma vez tinha desejado que pudesse ser. Horas mais tarde, Susana e eu conversámos pela primeira vez depois do parto e percebi que sentia o mesmo. A nossa pequena e controlada bolha tinha acabado de se expandir e, porque Patrícia teria necessidades, em breve desenvolveria novas ligações ao mundo exterior. «Talvez nos fizesse falta», disse Susana. Encolhi os ombros, tentando não mostrar cepticismo.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:40

Qua, 07/03/12

Quase no final da renovação da linha produtiva, o presidente do conselho de administração da empresa deslocou-se a Navarra. Após a visita, convidou-me para assumir a direcção geral da unidade. Não fui apanhado de surpresa: ponderara a hipótese de me fazerem aquele convite inúmeras vezes. Declinei a oferta. Ele sorriu perante a minha resposta pronta, quase precipitada, e disse-me para pensar no assunto. No dia seguinte, o responsável pelas operações em Espanha veio falar comigo: aumentar-me-iam significativamente o salário, forneceriam carro e casa, apoiariam a mudança de Susana. E – ele era basco e tinha orgulho na voz quando o disse – sabiam que eu apreciava a região. Que razões podia ter para recusar? Pedi tempo para reflectir.

Deixar o universo familiar e condicionado em que vivêramos antes de eu ir para Espanha — os meus pais, presos em rotinas de cansaço e recriminação, o pai de Susana, prestes a casar novamente, meia dúzia de amigos — por um ambiente totalmente novo… Por que não? E todavia, ao contar a Susana pelo telefone, podia sentir a dúvida propagar-se através da linha. No fim-de-semana seguinte em que estivemos juntos havia tensão no ar. Durante a noite de Sexta e parte de Sábado evitámos o assunto. Finalmente, Susana perguntou: «Queres ir?» Havia uma seriedade na voz dela que eu conhecia bem — usava aquele tom quando entendia ter chegado a altura de tomar uma decisão. Tergiversar seria uma cobardia da minha parte. Respondi: «Honestamente, sim. Mas eu já estou habituado. As mudanças mais significativas seriam para ti.»

A carreira profissional de Susana passara por duas fases distintas. Depois de terminar a licenciatura em Português-Francês substituíra durante alguns meses uma professora da quarta classe a quem fora diagnosticado cancro. Apesar de curto, este período fora suficiente para que ela percebesse não ser aquilo que desejava fazer. Não tinha paciência para ensinar. Não tinha paciência para aturar os alunos, para a forma como falavam durante a aula, como ignoravam as indicações delas, como estavam cheios do que ela certa vez designou como «orgulho da ignorância», como os pais pareciam não se importar e, com frequência, até partilhar e reforçar estas características. Mas, acima de tudo, desgostava-a a forma como rapidamente deixou de se importar. Depois desta experiência, fez um curso de tradução e começou a traduzir livros a partir do Francês. Traduzir dá pouco dinheiro e o número de edições de autores franceses é hoje em dia reduzido, o que a forçava a suportar períodos de inactividade ou a aceitar a tradução de manuais de instruções de máquinas domésticas ou industriais para empresas de origem francesa. Apesar disso, gostava do que fazia. Em muitos dias nem sequer abandonava o pequeno T2 que ocupávamos nos subúrbios do Porto.

Susana respondeu à minha preocupação dizendo: «Posso trabalhar em Espanha. Já inventaram uma coisa chamada correio electrónico.»

Por isso mudámo-nos para a vila de… não, o nome é irrelevante. A localização exacta também não interessa. Não é difícil de descobrir mas não a vou mencionar. O que aconteceu ali podia ter acontecido noutro local qualquer. E, na realidade, não nos mudámos exactamente para a vila mas para uma casa de dois pisos situada a cerca de um quilómetro, junto a uma estrada pouco movimentada desde a construção de uma alternativa mais larga e rápida. Mas a fábrica ficava perto, a menos de três quilómetros, e a localização era sossegada. Achámo-la perfeita. Contaram-nos que pertencera a uma família que emigrara para a Suiça cerca de vinte anos antes. Regressavam a Espanha pelo menos uma vez por ano, como fazem os emigrantes portugueses, tendo ordenado a construção da casa meia dúzia de anos antes, esperançados num regresso próximo. Haviam usufruído dela apenas um Verão, antes de voarem para a morte numa estrada dos Alpes. Os filhos consideravam-se mais suíços que espanhóis e decidiram não regressar. A casa fora vendida e a empresa arrendara-a para nós.

 Era um edifício ligeiramente anacrónico, misturando detalhes típicos da habitação basca (a “etxea”, termo a partir do qual nasceram tantos apelidos da região) com pormenores das tradicionais casas de montanha suíças. Tinha o formato de um cubo com um telhado pontiagudo, em quatro águas: a primeira vez que a vi pensei imediatamente em dois blocos lego sobrepostos (um cubo e uma pirâmide), e essa imagem renovava-se todos os dias quando regressava da fábrica. As paredes eram brancas, com as soleiras de portas e janelas pintadas de preto. No rés-do-chão tinha uma sala enorme, uma cozinha onde tomávamos as refeições, uma casa de banho e um átrio de onde saía um lance de escadas para o piso superior. No andar de cima existiam três quartos (transformámos um deles em escritório para Susana trabalhar) e duas casas de banho. Havia ainda um sótão, acessível através de um alçapão — pormenor que me pareceu deliciosamente cinematográfico. Nas traseiras, um terreno com aspecto abandonado, cercado por um muro de pedra, ocupava o espaço disponível antes da encosta adquirir uma inclinação acentuada. Junto à porta da cozinha, existia ainda uma pequena arrecadação, onde praticamente só entrávamos para substituir a botija de gás para o fogão (a água era aquecida por um cilindro eléctrico). O edifício mais próximo – um aviário – ficava a cerca de cinquenta metros, mais abaixo na encosta e as curvas da estrada escondiam as casas mais próximas.

Era o sítio perfeito para nós.

 

Os primeiros meses foram de incerteza e exploração. Susana e eu começámos a nossa vida em Navarra como dois cegos tacteando as redondezas com uma bengala branca. Não éramos sociáveis mas isso não constituía um problema. Excepção feita aos meus colegas de emprego, não conhecíamos ninguém e podíamos seleccionar o grau de intimidade que aceitávamos. A curiosidade dos locais era contrabalançada por uma certa reserva – orgulho, mesmo – que os levava a não fazerem demasiadas perguntas. Quase como se nos dissessem que éramos bem-vindos mas que não esperássemos encaixar facilmente na sua comunidade. Que fazê-lo exigiria um esforço. Depressa se deve ter tornado claro que nós não estávamos dispostos a realizá-lo. Através do pessoal da fábrica, ou por via das inevitáveis visitas às lojas para comprar roupa ou alimentos, fomos conhecendo algumas pessoas mas nunca aceitámos um grau de intimidade que nos levasse a ir jantar na casa de alguém ou a convidar outras pessoas para nossa casa (com um par de excepções que, não tendo corrido mal, apenas confirmaram a sensatez da nossas reserva).

Havia também a questão da língua. Com mais de um ano de presença na região, eu era capaz de articular umas quantas frases numa mistura de euskera e de castelhano mas Susana, apesar da sua queda para línguas e das suas visitas mais frequentes à aldeia, nunca aprendeu verdadeiramente a falar nem basco (uma das línguas mais complexas da Europa, explicaram-me uma vez, com sintaxe, gramática e vocabulário aparentemente sem relação entre si) nem castelhano. Não é pois de estranhar que os locais nos deixassem em paz, aceitando-nos com uma impassibilidade que só espelhava a nossa. Como de costume, o nosso isolamento era-nos inteiramente atribuível.

Mas na verdade não sentíamos falta de contacto humano. Adorávamos estar sozinhos na casa: após tantos meses de separação, encontrarmo-nos juntos, encaixados num sofá, lendo ou rindo dos programas televisivos, era definitivamente a nossa forma preferida de passar o tempo. Era como se tivéssemos recuperado o casulo que tínhamos no Porto, redecorado e transferido para um lugar mais exótico do universo. Aos fins-de-semana metíamo-nos no carro e percorríamos a região, parando com frequência para tirar fotografias, fazer piqueniques, ou apenas para nos sentarmos nas rochas apreciando a paisagem. Decidimos que gostávamos de San Sebastian e que, com ou sem Guggenheim, não gostávamos de Bilbao. Adorávamos passar umas horas em Castro Urdiales, a caminhar ou sentados a olhar o mar, excepto nos meses de Verão, em que havia demasiados turistas. Evitámos sempre Pamplona por altura das largadas de touros. Aqueles primeiros meses encontram-se entre os tempos mais descontraídos que alguma vez tivemos — ou, posso afirmá-lo sem receio de me enganar, alguma vez teremos. O nosso afastamento do mundo adquirira uma lógica, uma consistência que teria sido impossível de conseguir em Portugal, onde familiares e amigos insistiam em intrometer-se na nossa vida. Em Espanha, estávamos sozinhos um com o outro, em território desconhecido, o que só servia para aumentar a nossa sensação de proximidade.

Passaram meses e tudo era exactamente como devia ser.

 

(continua depois de amanhã)




José António Abreu @ 08:44

Seg, 05/03/12

Folheio uma revista quando Susana se senta a meu lado no sofá. Fá-lo devagar, como se procurasse não me incomodar. A almofada afunda-se com um suspiro quase inaudível e um tinido metálico apenas ligeiramente mais forte. O televisor está desligado e ela deixa-o assim. Também não pega no livro que anda a ler, pousado na pequena mesa colocada entre o sofá e a TV. Fica apenas sentada, olhando em frente. Baixo a revista. Rodamos a cabeça simultaneamente. Olhamo-nos nos olhos. Ela diz: «Tenho que falar contigo.» Parece cansada. Não é novidade – há pelo menos dois anos que não é novidade. Trata-se de um cansaço denso e triste que suponho partilhar. Mas hoje qualquer coisa está diferente. A postura é mais rígida, a voz tem pequenas oscilações, o medo nos olhos está mais brilhante. A relutância que é agora habitual, mesmo quando nada diz ou faz, a reserva que passou a fazer parte dela, uma área restrita a que não consigo aceder, está mais intensa. É como se tivesse acabado de espreitar por uma porta entreaberta e assistido a uma cena perturbante que preferiria não ter de partilhar comigo. Sinto mais perplexidade do que receio, em grande medida porque o nível de receio já não apresenta flutuações significativas. A perplexidade, essa é fácil de explicar: por esta altura, nenhuma visão deveria surpreender Susana. Como sucede comigo, todas lhe deviam ser familiares. É talvez por estar a pensar nisto que não reajo às palavras que se seguem. Não de forma visível, pelo menos. A frase – curta, entoada tanto com os olhos como com a boca – permanece entre nós. Consigo vê-la, o ar quente e adocicado dos pulmões de Susana formando as palavras «Estou grávida» como nuvens ténues em céu limpo. As palavras começam a girar, primeiro devagar, depois cada vez mais depressa até serem apenas uma mancha que me entontece e faz ter vontade de vomitar.

 

A gravidez decorreu sem problemas, excepção feita à sensação incómoda de que a nossa vida estava prestes a mudar. Suponho que todos os casais em vias de trazer o seu primeiro filho ao mundo têm essa sensação. Porém, duvido que encarem o facto como uma ameaça tão monumental como Susana e eu encarávamos. A nossa relação estava fortemente ancorada em nós os dois. Desde o momento em que decidíramos viver juntos havíamo-nos dedicado a criar um casulo à nossa volta; dentro dele estávamos confortáveis, quase sem noção do que se passava no exterior. Vivíamos numa bolha transparente ligada ao resto do universo – ao universo dos outros – por três ou quatro canais estreitos. Era assim que desejávamos; era assim que nos sentíamos bem. Isto tornou-se especialmente verdade após a mudança para Espanha. As nossas famílias estavam noutro país, tal como os poucos amigos a quem ainda se podia aplicar a classificação. Esta criança era um ponto de viragem e um teste.

Nunca considerámos a hipótese de efectuar um aborto – juro-to, Patrícia. Tínhamos apenas medo de não conseguirmos ser o tipo de pais que qualquer criança merece e que uma criança nos afastasse um do outro: inevitavelmente, o foco que cada um de nós apontava ao outro, e apenas ao outro, iria mover-se para, ou alargar-se a, uma terceira pessoa – ainda que, na realidade,  essa pessoa fosse parte de nós.

 

Adorávamos o país basco – ou, para ser mais preciso, Navarra. Por causa da paisagem, por causa da liberdade de ninguém nos conhecer ou chatear, por causa da maneira de ser dos bascos, orgulhosos, bruscos, eles próprios reservados. A decisão de nos mudarmos não fora fácil. Depois de sair da universidade com uma licenciatura em engenharia mecânica trabalhei quase cinco anos numa fábrica de aglomerados de madeira. Não fazendo ondas e mostrando disponibilidade constante, subi rapidamente de estagiário a director-adjunto da produção. Quando a companhia proprietária da fábrica adquiriu um grupo espanhol do mesmo sector, fui convidado para liderar o projecto de modernização de uma das fábricas espanholas. Seria uma mudança temporária – um ano, catorze meses no máximo –, durante a qual supervisionaria o desmantelamento da velha prensa de oito pisos, a transferir para África, e a instalação de uma nova prensa contínua de trinta e cinco metros de comprimento. Era um projecto aliciante que, por causa de Susana, eu não desejava integrar. Contudo, sabia não poder recusar a oferta mantendo esperanças de subir na hierarquia da empresa. Há oportunidades que são testes. Recusá-las equivale a falhá-los. E, no fim de contas, era uma promoção.

Susana reagiu mal. Andou deprimida durante vários dias mas, no final, acabou por assumir a decisão – por lhe parecer a escolha racional e por medo: por medo de que, apesar das minhas garantias de que não tinha vontade de aceitar a oferta, eu a viesse a culpar no futuro por tê-la recusado. (Nunca o faria.) Quando ela disse: «Acho que deves ir», senti medo. Enquanto ela fosse contra, eu podia evitar analisar a minha própria vontade que, de resto, se contradizia a cada instante. Aceitei. Por cobardia. Na esperança de que tudo acabasse por dar certo.

(Não sou religioso ou, pelo menos, para grande desilusão dos meus pais, não acredito verdadeiramente num Deus omnisciente mas não posso evitar pensar como as coisas acabaram por corresponder aos receios de Susana: arrependo-me hoje de ter aceitado o convite e suponho que a poderia culpar pela decisão e, por conseguinte, por tudo o que se seguiu – mas não o farei. Não a culpo por nada.)

Nos primeiros tempos estava sozinho e estar sozinho era uma situação a que já não me encontrava habituado. Susana e eu não nos separáramos por mais de um dia completo desde muito antes do nosso casamento. Talvez seja por isso que não consigo recordar esses meses com nitidez: parecem-me um amontoado de dias iguais, em que nada sobressai. Como se, por terem sido passados longe de Susana, os tivesse arrumado num baú de coisas sem importância. Ou talvez a intensidade do que se passou depois tenha obliterado o que ocorreu antes. Ou, ainda, talvez esteja apenas a dramatizar, a recusar acontecimentos e pormenores perfeitamente banais. Faço isso, por vezes. Seja como for: aqueles meses foram uma época de trabalho intenso, em que passei mais horas na fábrica do que fora dela, em que, a cada manhã e a cada noite, passava longos períodos ao telefone com Susana. Nunca parecia haver algo verdadeiramente significativo para dizer mas não creio que alguma vez nos tenha faltado assunto. Regressava a Portugal um fim-de-semana por mês. Abraçava e beijava Susana com uma alegria temperada pela sensação de desperdício, de tempo perdido. Esforçávamo-nos para que os fins-de-semana fossem aproveitados ao máximo mas havia sempre a sensação de que tudo era a prazo. Quase não saíamos de casa. Por vezes, nem chegava a visitar os meus pais. Ficavam irritados e demonstravam-no nas conversas telefónicas e nos encontros seguintes. Pouco me importava. (Quanto aos pais de Susana, a mãe morrera anos antes e o pai não fazia questão de me rever, nem eu a ele.) Eu e Susana fazíamos amor com uma intensidade – e ferocidade – que nunca havíamos experimentado. A despedida, no domingo à noite, era o momento mais doloroso. Por várias vezes pedi a Susana que não se deslocasse ao aeroporto. Nunca acedeu. Em todos essas despedidas, em todos esses fins-de-semana, lamentei a decisão de ter aceitado o convite. A minha vida em Espanha, por absorvente que o trabalho fosse  (e tem de ser esta a razão para o período me surgir indistinto), não existia. A minha vida estava aqui.

(Posso estar a exagerar. Posso estar a ser insuportavelmente romântico. E então? Pobre de quem nunca experimentou algo assim e se vê impelido a desdenhar. No que a mim e a Susana diz respeito, aquele período foi o segundo mais duro da nossa vida. Nem a adolescência, não propriamente simples para qualquer de nós, se lhe comparou. Mas aqueles meses serviram igualmente para reforçar a força cósmica – amor, na falta de termo menos gasto – que nos unia.)

 

(continua depois de amanhã)