Certa vez um cliente chamou-lhe «salão» e tanto Mário como Octávio pararam de cortar e olharam um para o outro com ar aparvalhado. «Isto é uma barbearia», resmungou Mário enquanto recomeçava a dar aos dedos.
Trata-se de um espaço rectangular com cerca de cinco metros de comprimento por menos de três de largura. Quem entra pela porta dupla de metal e vidro, colocada numa das paredes mais curtas, depara-se com duas cadeiras de barbeiro voltadas para a esquerda, na direcção de um espelho que ocupa quase toda a área de parede acima de aproximadamente meio metro de altura. Ao lado da porta existe um bengaleiro e, ao lado deste, uma mesinha onde um rádio portátil sintonizado para a estação local debita canções pedidas por ouvintes que as dedicam a familiares e amigos. O espaço por trás das cadeiras de barbeiro é limitado, pelo que, das seis cadeiras de metal com assento e encosto forrados a napa verde-azeitona que aí se encontram, apenas as duas das pontas podem ser usadas sem que as pernas dos ocupantes compliquem a vida a Mário ou Octávio nas suas deambulações em torno dos clientes. Ao fundo, junto à porta de acesso a uma área reservada (onde presumo existir uma casa de banho), há um lavatório no qual é lavada a cabeça dos raros clientes que o desejam.
Mário é baixo, magro e usa bigode à treinador de futebol dos anos 70. Octávio é alto, tem cabelo branco em ondas que flutuam em torno da sua cabeça e uma dezena de quilos a mais. Mário é o patrão e essa circunstância está sempre implícita. Fala mais e de forma mais categórica. Octávio é o filósofo, embora um filósofo de tiradas curtas e frequentemente irónicas. Eu prefiro que seja ele a cortar-me o cabelo e ambos o sabem. Se é Mário que está disponível quando chega a minha vez, ele resmunga para o cliente seguinte: «Pode vir», o que deixa o homem indeciso, olhando dele para mim, tentando perceber se sou eu que não quero ser atendido por Mário, se é este que recusa atender-me. E, em qualquer dos casos, porquê. Contudo, apanhados de surpresa, ninguém tem coragem para expressar a dúvida em voz alta.
Apesar de lá cortar o cabelo há mais de trinta anos, sempre de dois em dois meses, sempre ao sábado de manhã, e de nunca ter mudado o estilo de corte, Octávio faz questão de perguntar: «Então como vai ser hoje?» Às vezes brinco com a ideia de lhe dizer para estar à vontade e cortar como lhe apetecer mas refreio-mo: por um lado, sou conservador, pelo menos no que respeita ao meu aspecto; por outro, julgo que os únicos estilos alternativos que Octávio e Mário conhecem são os permitidos pelos pentes das máquinas de corte.
A barbearia fica no largo municipal, vendo-se o edifício da Câmara quase em frente. No passeio estão sempre a passar pessoas. Quando no interior falta assunto de conversa, Mário (nunca Octávio) usa-as para evitar silêncios demasiado prolongados, de acordo com critérios que nunca percebi mas presumo estarem ligados ao seu estado de espírito (por vezes suporta longos períodos sem necessidade de falar, de outras parece incapaz de estar calado mais do que alguns segundos).
Hoje Mário apara os poucos cabelos existentes na cabeça de um idoso cujas feições me recordam alguém – seria funcionário na escola secundária nos tempos em que a frequentei? – enquanto Octávio me faz o corte do costume. À espera, encontra-se apenas mais um cliente, um homem franzino, com barba que parece não ser cortada há uma semana e cabelo que parece não ser lavado há três. Mário esteve a protestar contra o dinheiro injectado nos bancos, «que ainda por cima cobram cada vez mais comissões». Mas o filão esgotou-se e nos últimos trinta segundos só se ouviu Tony Carreira e o som das tesouras.
«O Antunes passa mais tempo na rua do que talho», diz Mário.
«Deve ir aos correios», diz Octávio. «Agora que deixou de receber cartas em casa.»
Octávio está entre mim e a porta e, de qualquer modo, está a dar os últimos retoques no corte do meu cabelo, pelo que não posso rodar a cabeça para ver quem passa na rua.
«O Magalhães continua a lá ir.»
«Acho que não foi, durante uns tempos.»
«Foi. Às escondidas, noutro horário.»
«Ah. Ele vai estar nas mesas de voto, desta vez?»
«Não sei. Deve estar.»
«E se acontece outra vez?»
«Pois, só a hipótese devia fazê-lo ficar em casa. Mas deve estar. Olha quem.»
Octávio pergunta-me se já chega. Digo-lhe que sim. Ele desaperta o pano branco que evita que o cabelo cortado entre para dentro da minha roupa (desconfio que os fazem a partir de lençóis velhos). Saio da cadeira.
«O que aconteceu?, pergunto.
«Não sabe?»
Digo-lhe que não faço ideia enquanto retiro uma nota de dez euros da carteira.
Naquele espaço é Mário quem conta as histórias mas, não gostando particularmente de mim, hesita. Depois decide-se.
«Toda a gente de cá conhece a história», resmunga. «Não se falou de outra coisa.» Ignoro o remoque. Ele mordisca o bigode e continua: «O Antunes está sempre numa mesa de voto. Nas últimas eleições estavam a contar os votos, tudo a correr como de costume, quando apareceu um em que alguém tinha escrito em letras grandes: 'A mulher do Antunes do talho anda metida com o carteiro'.»
Fica à espera da minha reacção. Rio-me. Por causa da história e da formulação da mensagem anónima: só numa terra destas alguém escreveria “anda metida”. Mantenha-se a decência, mesmo quando o tema são indecências.
O cliente seguinte intervém subitamente, enquanto se levanta da cadeira: «Ele chegou a ir a casa do Magalhães pedir satisfações mas não o encontrou e ainda foi insultado pela mulher. Pela mulher do Magalhães.»
«Isso é só gente a falar», diz Octávio. Estende-me quatro euros de troco, na mão aberta.
«Não», garante o homem. «A minha cunhada assistiu.»
Deixo dois euros na palma da mão de Octávio. Pergunto: «E era verdade, o que o escreveram no boletim?»
Mário funga. «Se fosse só com o carteiro…»
«Se calhar até foi ciúme», diz Octávio.
«Ele não reconheceu a letra?»
«Estava em maiúsculas», responde Mário.
«E ainda bem que não conheceu», diz Octávio. «O voto é secreto.»
Claramente, o tema já originou muitas piadas.
Mário sorri, demonstrando alegria genuína pela primeira vez. «A denúncia quase nem foi o pior. O Antunes é do PS. Sofre mais pelo PS do que pelo Benfica. E, como o boletim tinha a cruz no PS, queria que fosse válido.»
Octávio abana a cabeça, em sinal de respeito. «Pôr lá a cruz foi de mestre. Quem fez a coisa dava-se a requintes de malvadez.» Indica ao cliente seguinte que suba para a cadeira.
Despeço-me e saio. O céu está carregado mas não chove. Vou caminhando pelo passeio, em direcção a um dos cantos da praça. Ao passar junto ao talho, espreito lá para dentro. Não vejo o tal Antunes. Apenas uma mulher baixa e gorducha, com mais de cinquenta anos. Deve ser uma funcionária.
As dores começaram a sério na manhã do dia 31 de Dezembro. Para Susana, não constituíram uma surpresa. Há meses que as esperava a qualquer instante. Sentira-as até muitas vezes, em parte reais, em parte por antecipação. Fez uma tentativa débil para se convencer de que ainda não seria agora, de que não passava de um falso alarme, mas desistiu de imediato. Para quê fingir optimismo nesta fase?
Vítor estava a trabalhar. Pensou telefonar-lhe mas desistiu também dessa ideia. Fá-lo-ia mais tarde. Ou não. Os esforços que ele fazia para lidar com a situação deviam agradar-lhe (sabia-o perfeitamente) mas, em vez disso, irritavam-na.
Deitou-se no sofá da sala e recordou os dias do diagnóstico. A preocupação do médico, cuja confiança profissional se esvaiu ao perceber o grau do pessimismo dela. «Precisa de ânimo. Uma visão positiva é essencial.» As garantias de Vítor de que tudo correria bem: «Não há verdadeiras razões para ficares assim. As taxas de sobrevivência são altíssimas, hoje em dia.» (Evitava sempre dizer «taxas de mortalidade», em mais uma demonstração de tacto que a irritava profundamente.)
Ela sabia que era verdade. Mas também conhecia os factores de risco, que, honra lhe fosse feita, o médico nunca suavizara. E, acima de tudo, conhecia a história da sua família. Pesquisara. Por entre um mar de imprecisões e contradições, os familiares mais idosos recordavam pelo menos cinco mortes, todas pelo mesmo motivo. A penúltima, claro, fora a da mãe dela. A última, a de uma tia, irmã da mãe. Era a única de que Susana se lembrava, embora vagamente. Tinha seis anos. Haviam-na poupado ao funeral mas recordava a viagem até à Guarda, onde a tia residia com o marido. No final da década de 1970, as viagens ainda eram difíceis e, talvez por isso, memoráveis.
As dores não desapareceram. Pelo contrário, foram aumentando ao longo da manhã, como ela sabia que aconteceria. Almoçou uma maçã, voltou para o sofá. Perto do final da tarde, desistiu. Ligou para o telemóvel de Vítor. O som de chamada prolongou-se tanto que ela desligou num espasmo. Deu um par de minutos e ligou o número do médico. Dia 31 de Dezembro à tarde. Seria possível apanhá-lo? Foi. Atendeu, disse-lhe que seguiria de imediato para o hospital, profissional até na forma como escondeu a mais do que natural desilusão pela noite de passagem de ano estragada. Perguntou-lhe se tinha quem a levasse. Susana hesitou e depois respondeu que sim. «OK, encontramo-nos lá. Anime-se. Vai correr tudo bem.»
Ela sabia que as pessoas estranhavam. Que, no íntimo, a consideravam egoísta. Não era suposto reagir daquele modo. Tornava tudo mais difícil para toda a gente. Devia facilitar-lhes a vida, aceitando o desafio com estoicismo; não, com mais do que isso (estoicismo tinha ela) : com ânimo, talvez mesmo entusiasmo. Era incapaz de o fazer. Percebia a inutilidade do seu comportamento, a injustiça que cometia e pela qual, se tudo acabasse mesmo por correr bem, teria de se penitenciar, mas as coisas eram como eram.
À segunda tentativa, Vítor atendeu. O tom de pânico na voz dele devia tê-la enternecido. Não o fez. Ele prometeu estar em casa em menos de um quarto de hora. Susana disse-lhe para não exagerar no trânsito. Só faltava ter um acidente. Depois de desligar, lembrou-se do comportamento dele nos primeiros tempos. De como parecia sentir mais medo do medo dela do que do risco que ela corria. Susana acabara por lhe garantir: «Sossega. Não vou fazer nada de irreflectido. Não condiz comigo.» Mas nem por isso ele ficou mais tranquilo.
Sabia que correra riscos. Perguntou-se várias vezes porquê. Um desafio à sorte? Mas então por que não conseguira assumi-lo até ao fim? Porquê o negativismo, a sensação de que o trajecto era inexorável e ela (como na viagem para a Guarda, há cerca de trinta e cinco anos) uma simples passageira?
As dores regressaram, tão fortes que a atiraram ao chão. Ao longo dos últimos meses, a sogra, especialista numa mistura de encorajamento e crítica, dissera-lhe várias vezes para rezar. Susana nem sequer sabia uma oração.
A filha tinha testa ampla como o pai mas os olhos eram os dela. E o nariz. Susana perguntou-se que efeitos negativos teria programado o seu pessimismo naquele corpo minúsculo. Desconhecia se, há quarenta e um anos, a mãe a chegara a ver e não conseguia decidir qual a melhor hipótese: morrer depois de verificar a sobrevivência de uma filha ou antes de confirmar a existência de um ente que se abandona no mundo. Mas Susana sobreviveria. Pelo menos isso.
O médico entrou no quarto. Já vestia roupa normal, tinha um ar cansado.
«Deu luta, hã? Mas está de parabéns. Tem uma bela rapariga. E sortuda, ainda por cima. Vai começar já a ter presentes. Foi o primeiro parto do ano aqui no hospital e provavelmente em todo o país.»
Mas logo a seguir explicou-lhe que, agora, talvez fosse mesmo preferível evitar nova gravidez. «Não estou a dizer taxativamente que não possa. Digamos que é algo a avaliar com cuidado, dependendo da evolução da situação, OK?» Tocou-lhe no braço, desejou-lhe um bom ano e saiu.
Vítor começou a falar. Dizia o que devia dizer (tudo correria bem; era cedo para ter certezas; mesmo que não pudessem ter outros filhos, isso não constituiria uma tragédia) mas ela não sentia vontade de o ouvir. Olhou para a filha, que ainda nem tinha nome. Alegria e renovação do medo, pensou. Talvez a única forma adequada de entrar num ano novo.
«Só tu é que me vens visitar.»
Há seis camas na enfermaria. Desde a primeira visita de Jorge, há cerca de dois meses, o número das ocupadas variou. Hoje são quatro. A tia encontra-se na primeira à esquerda da porta de entrada. Ao lado tem uma senhora com mais de setenta anos, rodeada pela filha e por duas netas. A terceira cama encontra-se vazia. Na outra fila de três, a vazia é a do meio. Já lá teve uma rapariga, vinte e cinco anos, talvez nem tanto. Morreu há uma semana. Nas outras encontram-se duas senhoras de idade. Apenas uma tem companhia – do marido, pelo aspecto.
Jorge tem dificuldade em perceber as palavras da tia. A voz dela é fraca e arquejante. Não admira. Basta ver como está magra e fraca. De tal forma que lhe custa a acreditar que se trata mesmo da sua tia Helena, irmã mais nova da mãe dele. O elemento da família que, em criança, ele preferia. Simpática e sempre disponível mas cuidadosa para não o sufocar com beijos e abraços, como faziam outras mulheres da família. Uma vez (lembra-se sempre daquilo, quando pensa nela), estando Jorge doente (já não recorda qual a doença), passou horas na cama ao lado dele, jogando às cartas e às damas (a cama é um péssimo sítio para jogar damas: a maioria das partidas terminara com peças deslizando pelo tabuleiro e perdendo-se nos lençóis, por entre risos e acusações de batota). A tia era muito mais nova, então (teria pouco mais de vinte anos) e bastante mais atraente. Ainda se pode detectar parte dessa beleza na cara dela, hoje emagrecida pela doença. Desapareceu, contudo, toda a vivacidade que possuía, bem como toda a inconsequência que advém da juventude, de raramente se sentir dor física, do conceito de morte ser tão estranho e distante como a composição da atmosfera de outro planeta (em miúdo, os planetas e as estrelas eram um dos temas favoritos de Jorge). Hoje, a expressão da tia mostra não apenas desespero – expectável – mas um grau de surpresa que deixa Jorge perturbado e lhe torna difícil encará-la.
Sabe que ela fala verdade e que só ele a visita regularmente. Isso sucede porque outros elementos da família já morreram (a mãe dele, por exemplo), porque alguns emigraram (o enteado que ela criou desde muito novo), porque, encontrando-se no país, estão suficientemente longe para que a distância possa servir como desculpa (o ex-marido, o irmão, vários sobrinhos).
«Não precisas de vir tantas vezes. Tens a tua vida.»
«Não me custa nada. Faço-o com prazer.»
Prazer? Jorge fica envergonhado assim que a palavra lhe sai dos lábios.
Como sempre, tem dificuldade em manter a conversa. Esgotadas as frases ocas e, em alguns casos, falsas («Como se sente hoje?»; «Está com melhor aspecto.»; «Não tarda nada sai daqui.»), é-lhe complicado pensar em temas sobre os quais possam conversar. O passado, evidentemente, constitui a excepção. A tia parece apreciar relembrá-lo (até mesmo aquelas épocas nas quais Jorge mal a via e que – pensa ele – não devem ter sido particularmente felizes) mas ele fica desconfortável. Parece-lhe uma solução fácil, cobarde, que implica o reconhecimento de que ela morrerá em breve.
Mas morrerá. É uma questão de semanas, dois meses no máximo. Até já resistiu mais tempo do que os médicos previam no início.
«Cada vez tenho menos razões para permanecer viva.»
Não é a primeira vez que ela diz aquilo. A frase perturba-o. Coloca-lhe sobre os ombros uma responsabilidade à altura da qual teme não se encontrar. Já em várias ocasiões pensou em não vir com tanta frequência. As visitas deixam-no esgotado e, para mais, reside a uma centena de quilómetros, o combustível e as portagens não ficam baratos. Mas como pode fazê-lo? Sabe constituir uma dessas poucas razões – à medida que se torna evidente o desinteresse de outros membros da família, talvez a única. Se estivesse outra pessoa naquela cama, se não soubesse que, de facto, quase mais ninguém a visita, a frase poderia irritá-lo. Fazê-lo sentir-se chantageado. Mas aquela é a tia Lena. A sua tia preferida. Que sempre esteve disponível para ele. Que talvez apenas se mantenha viva para ele. (Valerá a pena? Deverá sentir-se mal por isso?)
Fica com ela até ao fim do horário para visitas. Faz-lhe perguntas sobre as companheiras de enfermaria mas descrever as doenças das outras mulheres e como várias já morreram também é deprimente. Torna claro que daquelas camas apenas se sai para o cemitério. Procura outros assuntos. Inevitavelmente, regressa ao passado.
No final, diz-lhe: «Volto em breve.»
A tia responde que não é preciso mas Jorge sabe que mente. Quando lho disse, perpassou-lhe pelos olhos um indício da antiga vitalidade. Um sinal de prazer.
«Faço-o porque quero.»
Inclina-se e beija-a. As faces encovadas perturbam-no. Difusamente, pensa que já devia estar habituado.
Olha para trás à saída e diz-lhe adeus. Segue pelos corredores e desce as escadas tentando não olhar para os outros visitantes. Não se quer rever neles. Na rua, inspira fundo. Mas o ar está quente e cheira a asfalto e gases de escape.
Estacionara o carro fora do perímetro do hospital. O horário das visitas terminou mas os passeios ainda estão atravancados com veículos. Passa entre uma carrinha branca e um furgão e começa a atravessar a rua. Apercebe-se de uma comoção difícil de definir, depois ouve um ruído de travagem e logo a seguir o automóvel atinge-o do lado esquerdo. Voa meia dúzia de metros. Ao cair, bate com a cabeça no asfalto. Sente o sabor do sangue. Antes da escuridão o envolver, pensa que a tia acabou de morrer.
Há um tema proibido em qualquer reunião da minha família: as peregrinações a Fátima. Inevitavelmente, com a insídia que caracteriza a maioria dos seus membros – provavelmente similar à que caracteriza a maioria dos membros da maioria das famílias – alguém acaba sempre por aproveitar um instante mais calmo nas conversas cruzadas para o abordar, desde que a tia Amélia e a tia Natalina estejam na sala. A discussão teológica que se segue tem tanto de novo como as cenas mais conhecidas dos velhos filmes portugueses mas, como elas, permite o conforto de verificar a constância de certos comportamentos e, ocasionalmente, que se atinjam momentos de surpreendente profundeza (se alguém parasse um pouco para reflectir sobre eles, o que está longe de ser o caso).
Irmãs do meu pai, a tia Amélia e tia Natalina aproximam-se dos setenta anos de idade. Nasceram ambas na velha casa de Vila Verde, vendida depois da morte dos pais. A tia Amélia é a mais velha. Casou há perto de cinquenta anos com um vendedor de tractores e alfaias agrícolas e mudou-se para Vinhais, distante de sete quilómetros. O meu pai, cinco anos mais novo, acabou por segui-la mas a tia Natalina foi parar mais longe. No casamento de um tio encontrou um rapaz da Marinha Grande e, após muitos lamentos da mãe (o rapaz era simpático e parecia de boas famílias mas a Marinha Grande ficava tão longe), casou-se com ele e mudou-se para lá. Apesar da distância, as duas irmãs mantiveram contacto, nas primeiras décadas através de cartas frequentes e telefonemas raros (as chamadas ficavam caras), ultimamente recorrendo ao telemóvel e ao Facebook, de que são fãs incondicionais.
A tia Amélia teve dois filhos, que – refere-o com um sorriso de orgulho, como se nada na vida ficasse a cargo da sorte e, por conseguinte, o mérito fosse todo seu – nunca lhe causaram preocupações. Já a tia Natalina deu à luz três crianças. Até hoje, duas tiveram apenas as doenças normais para qualquer pessoa mas à outra – a minha prima Cristina – foi diagnosticado um cancro há cerca de doze anos. Desesperada, a tia Natalina prometeu ir a Fátima se o tratamento resultasse. Cristina sobreviveu e a mãe cumpriu a promessa logo no mês de Maio seguinte.
A polémica começou num dia de Natal em que a tia Natalina descrevia novamente o quão andara preocupada e como, apesar de ter ficado com os músculos doridos e os pés cheios de bolhas, sentira uma paz imensa ao chegar ao santuário. Pouco impressionada, a tia Amélia resmungou: «Até parece que fizeste um grande esforço.»
Foi o bastante para iniciar uma discussão que se prolongou durante um par de horas, destruindo completamente o espírito natalício, a qual ainda hoje tem sequelas que seguem um guião mais ou menos fixo: a tia Amélia diz que ir da Marinha Grande a Fátima – «São o quê? Quarenta quilómetros?» – não é grande feito; a tia Natalina responde que lá sabe ela, que nunca andou mais de quinhentos metros de cada vez; a tia Amélia diz que andou, sim senhora, e por caminhos bem mais irregulares, além do que pode não ter ido a pé a Fátima mas conhece muita gente que já foi e dali mesmo, de Vinhais, que fica a uns quatrocentos, e que como todos sabem há pessoas que vão de Bragança e do Minho inteiro e certamente também do Algarve, e que essas é que são peregrinações difíceis; a tia Natalina replica que cada um vai de onde mora, que não tem culpa de morar relativamente perto do santuário, que há pessoas que ainda moram mais perto e não merecem ser apoucadas daquela forma, e que, no fundo, o que conta é a intenção; a tia Amélia responde que se contasse apenas a intenção não era preciso fazer a viagem, que também é necessário algum sacrifício concreto para a promessa valer alguma coisa e que, acima de tudo, é um descaramento e um pecado uma pessoa andar depois a gabar-se de ter feito um grande esforço quando na verdade não fez. Esta acusação tira a tia Natalina do sério e, se ninguém as parar (nesta fase é difícil) ficam para ali durante horas a discutir a importância da distância no valor da promessa enquanto os maridos continuam a jogar sueca ou dominó, fingindo não ouvir. Os restantes elementos da família primeiro divertem-se, depois tentam pará-las, por fim desinteressam-se e iniciam conversas paralelas.
É isto uma e outra vez. Entretanto, a minha prima Cristina confidenciou-me que a mãe, recusando embora admiti-lo para não dar o braço a torcer perante a irmã, já percorreu a pé os trinta e tal quilómetros até Fátima mais duas vezes. Para que a Deus não restem dúvidas acerca do seu empenho. Prometi a Cristina manter o segredo mas, a cada nova reunião de família, pergunto-me se não seria mais caridoso - mais cristão, até - deixar escapar a verdade.
Bate à porta duas vezes, com pouca força, e depois entreabre-a.
«Dá licença?»
«Ah, entre, João. Como está?»
«Bem, obrigado.»
Ela não se levanta. A mão que lhe estende é longa e magra e tem um anel com uma pedra azul no dedo médio. João aperta-a com cuidado. O toque é firme e suave, exactamente como esperava que fosse, mas ainda assim deixa-o perturbado. A mão dela está fria. Pensa em retê-la um pouco no interior da sua, para a aquecer, mas ela puxa-a. Ele segue a mancha azul com os olhos.
«Sente-se, João.»
Obedece. A cadeira é dura e baixa. João sabe ser quase dez centímetros mais alto do que ela mas naquele gabinete, sentados ela atrás da secretária e ele à frente, são da mesma altura. Repara no pequeno sinal castanho que ela tem junto ao olho esquerdo – e depois desvia o olhar.
«Anda tudo bem consigo, João?»
O tom de voz é neutro, impessoal, mas ainda assim ele sente um frémito. Hesita. Ela fez a pergunta a olhar para baixo, para os papéis em cima da secretária. Não estará verdadeiramente interessada na resposta, pensa João. Diz: «Dentro do possível.»
«Ainda bem, João.»
«A minha mulher morreu.»
Ela nem sequer ergue os olhos.
«Mas já foi há uns tempos, não foi?»
A reacção dela fá-lo arrepender-se de ter mencionado o assunto. Claro que ela tinha de saber. É directora de pessoal.
«Há oito meses. Quase nove.»
Ela levanta finalmente a cabeça. João repara que tem outro sinal, mais pequeno, do lado direito da testa, quase na têmpora. Não se vê bem porque às vezes o cabelo tapa-o.
«Ainda lhe sente a falta?»
Ele não sabe que resposta dar. Não quer mentir mas dizer que quase já não pensa na mulher, ainda por cima depois de ter puxado o assunto, vai parecer mal.
«Tento não pensar nisso.»
Ela continua a olhá-lo durante mais um instante. Depois diz: «É capaz de ser o melhor» e volta a baixar os olhos para os papéis. João sente desvanecer-se o orgulho de ter conseguido uma resposta inteligente.
João não apenas pensa pouco na falecida mulher como já nem se lembra bem dela. Houve um par de ocasiões em que tentou recordar-se das suas feições e não conseguiu obter uma imagem precisa. Mas recorda-se de muitas outras coisas. Recorda-se, por exemplo, de quando a directora de pessoal chegou à empresa, três anos antes, tinha ele já vinte e seis de casa. Disse-se que vinha de outra empresa do mesmo sector. Que nessa outra empresa liderara um processo de despedimento colectivo e depois fora também mandada embora. Claro que pode não ter passado de um boato. Uma forma de a diminuir e fragilizar logo à partida. João também trabalhara noutra empresa antes – mas há uma eternidade, entre os quinze e os vinte e um. Depois viera para esta. A constatação de que haviam decorrido vinte e nove anos (quase trinta, na verdade) deixa-o confuso e indisposto. Especialmente por isso o lembrar de que está a chegar aos cinquenta anos de idade. E sente-os. Gostaria de não sentir, por vezes tenta convencer-se de que não sente, mas sente.
A directora de pessoal deve ter trabalhado em mais empresas, não apenas na anterior e nesta. Ou então passou muitos anos na anterior. No início, quando ela chegara, João tivera dificuldades em determinar-lhe a idade. Magra, elegante, bem vestida, quase sempre de saltos altos, parecia não ter mais de trinta e cinco. Mas depois observava-se-lhe a cara e ficava-se na dúvida se a maquilhagem não servia para disfarçar os efeitos de um número de anos mais elevado. João perguntara a alguns colegas e fora gozado por isso mas acabara por descobrir: quarenta e um. Isto há três anos. Agora andará pelos quarenta e quatro. João pensa que ela não os parece. E depois, como em inúmeras ocasiões nos três anos anteriores, que é apenas seis anos mais nova do que ele.
Ao chegar à empresa era casada mas entretanto divorciara-se. Tinha um filho, que João vira apenas uma vez, logo no primeiro Natal. Nessa altura a empresa ainda fazia uma festa, com distribuição de presentes às crianças dos trabalhadores. O filho dela andaria agora pelos oito ou nove anos, o que significava que ela o tivera por volta dos trinta e cinco. João sabe que hoje em dia poucas mulheres têm filhos antes dos trinta e cinco. A carreira é mais importante. Ele também tem um filho. E uma filha. Mas ambos já acima dos vinte. Haviam nascido, com menos de dois anos de intervalo, numa época em que tanto João como a mulher andavam pelos vinte e cinco – praticamente a idade que o filho tem agora. Estão fora de casa, ele numa empresa de metalomecânica na Alemanha, ela a acabar o curso de assistente social no Porto. Espera-a o desemprego, é o que todos dizem, mas João tenta não pensar nisso. Desde que ficou sozinho em casa esforça-se por não pensar no futuro. A mulher é que fazia questão de estar sempre antecipar o futuro – constantemente cheio ameaças.
Ela fala de novo: «João, não sei se desconfia da razão por que quis falar consigo.»
No decurso daqueles três anos João vira-a poucas vezes. Apesar de ser directora de recursos humanos, raramente vai à fábrica. Mas ele lembra-se de que houve uma época em que andava abatida. Foi antes e logo depois do divórcio que – João ouviu-o não sabe a quem – coincidiu com a morte da mãe. Um dia, por volta das três e meia da tarde, João ia a sair, depois de concluir o turno, quando a viu dirigir-se para o carro. Parou. Trabalhando em horários desencontrados, nunca tinha oportunidade de falar com ela. Mas agora ali estava, saindo mais cedo por qualquer razão. Começou a caminhar na direcção do carro dela, tentando lá chegar ao mesmo tempo que ela. Estavam ambos a cerca de dez metros quando ela o viu. João notou as olheiras e o ar cansado e ficou sem coragem para meter conversa. Disse «Boa tarde» ao passar por ela e continuou a caminhar. Que se lembre, ela não falou. João só olhou para trás quando ouviu o carro arrancar. Depois foi para casa.
Apercebe-se de que ela disse qualquer coisa que lhe escapou.
«Desculpe, o quê?»
Ela olha-o rapidamente e depois desvia os olhos.
«A empresa não faz isto com agrado, João, mas os tempos estão complicados e é necessário reduzir os custos.»
«Vou ser despedido?»
«Não tome isto como uma questão pessoal, João. A empresa precisa de reduzir o pessoal. Vai ser cortado um turno e vão ser dispensados alguns elementos da área administrativa.»
João consegue agora perceber que o sinal mais pequeno não é bem preto. É escuro mas ligeiramente rosado. Ou talvez fique assim quando ela está nervosa.
«Evidentemente, serão pagas todas as indemnizações devidas. Tenho aqui o valor da sua.»
Mas é difícil ter certeza de que está nervosa. Parece mais cansada do que nervosa. E aborrecida - ou talvez farta. João pensa que não deve ser fácil ter de dar aquelas notícias. Pega no papel que ela lhe estende.
«Porquê eu?»
«Você está no sector onde temos mais excesso de capacidade. E depois não tem família a seu cargo.»
«A minha filha ainda está a estudar. Sou eu que lhe pago os estudos.»
Ela olha para os papéis.
«Deve estar a acabar o curso, não deve? E você vai ter subsídio de desemprego. De qualquer forma, a maioria dos seus colegas tem filhos mais novos.»
É verdade. Não obstante a empresa ter muitos trabalhadores com idade parecida com a dele, raros foram pais antes dos trinta ou trinta e cinco anos. Toda a gente tem filhos mais tarde, hoje em dia.
João não tem vontade de discutir a situação. Olha para o papel. Ela diz: «Não é um valor baixo. Você já cá trabalha há muitos anos.»
Ele não sabe o que dizer. Não lhe apetece discutir. Não com ela, pelo menos. Ficam assim, em silêncio, durante vários segundos que parecem acabar por ser mais desconfortáveis para ela.
«Quer fazer alguma pergunta, João, ou dizer alguma coisa?»
Está a olhar para ele, agora. Mas neste momento é a João que apetece desviar os olhos. Perpassa-lhe pela mente a ideia de que a comunicação dela e o papel que tem na mão são provas do seu falhanço. Em vinte e nove anos de serviço (falhará os trinta por dois meses) não conseguira tornar-se importante para a empresa. Pelo contrário: é dos menos importantes. E é ela quem lhe comunica o facto.
«Não.»
«Não leve isto pessoalmente. Não deixe que o afecte. E, se precisar de falar comigo outra vez, esteja à vontade.»
Estende-lhe a mão. João levanta-se da cadeira e aperta-a. Continua fria.
«Boa sorte, João», diz ela.
«Obrigado.»
João roda e dirige-se para a porta. Pára junto dela e roda outra vez.
«Talvez volte. Vou pensar no assunto e depois talvez volte.»
«Claro, João. Mas marque primeiro, está bem? Se aparecer sem avisar pode estar cá alguém e eu não o poder atender.»
João faz que sim com a cabeça. Abre a porta e sai. Enquanto a fecha, aproveita para a olhar uma última vez. Está de novo a prestar atenção aos papéis.
Imaginem um robot. Um robot qualquer, com a aparência que mais vos agradar. Humanóide como o C3PO, apenas um braço articulado como os das linhas de montagem de automóveis, até mesmo com o formato de um daqueles aspiradores que se movem sozinhos pela sala. Qualquer um serve, embora humanóide talvez torne as coisas mais fáceis. O robot que imaginaram, como qualquer robot, funciona de acordo com um conjunto de algoritmos: faz B se acontecer A, opta por D se ocorrer C. Tem uma lógica, segue um conjunto de regras definidas e compreensíveis. Pode, em alguns casos, aprender novas regras mas parte sempre das existentes. Agora imaginem que, em resultado de uma sobrecarga eléctrica, de um vírus informático ou de outro motivo qualquer, se dá uma reprogramação aleatória. O robot deixa de fazer B quando acontece A e passa a fazer D. Ou X. Ou F seguido de R. Para um observador, o robot enlouqueceu. Mas ele continua a fazer o que sempre fez: seguir a programação. Não tem forma de saber que um acontecimento inesperado, e talvez até desconhecido para as pessoas que o rodeiam, lhe alterou os algoritmos. Para ele, tudo está normal – ainda que, em vez de trazer uma bebida ao dono, o tente matar.
A loucura dela era assim. Julgo que a loucura das outras pessoas, a loucura 'normal', tende a ser diferente, mais desordenada e imprevisível, mais parecida com o comportamento que se obteria se os circuitos do robot ficassem parcialmente queimados. Mas a dela era assim. Uma loucura constante, digamos. De confiança, até. Uma loucura que se manifestava nos actos (depois de usar um copo rodava-o entre as palmas das mãos cinco vezes para cada lado; antes de vestir as cuecas alisava-as primeiro sobre a cama; depois de se espreguiçar dava sempre três pulinhos, pondo-se em pé se antes estivesse sentada) e especialmente nas palavras: quando alguém na televisão dizia «Boa noite» (no início dos noticiários, por exemplo) levantava-se de um salto e, com um sorriso, gritava: «Filho da puta!», após o que se sentava com a perna direita dobrada sob o corpo. Está bem de ver que nem «boa noite» nem «filho da puta» tinham para ela o mesmo significado que têm para a maioria de nós. «Filho da puta» era a forma de ela retribuir o que entendia como um piropo. Se quando estávamos sozinhos em casa este comportamento não gerava quaisquer problemas (eu estava habituado, o José Rodrigues dos Santos não a ouvia), quando estávamos na rua ou num restaurante a situação era mais delicada. Bastava-lhe ouvir «boa noite» para responder de imediato. Apesar do sorriso que ela mantinha na face, nem toda a gente reagia bem.
Para mim, o mais difícil foi perceber que não havia uma relação lógica entre os termos normais e os termos que ela utilizava. Por exemplo: se a «boa noite» correspondia «és lindo» (ou «és linda»), a «bom dia» correspondia «fazes sombra». «Não» era «direita», «sim» era «verdade», «vermelho» era «esquerda». E, já agora, a «filho da puta» correspondia, acreditem ou não, «maçaroca de milho». Ela tanto usava substitutos para expressões como para palavras individuais, o que tornava ainda mais difícil decorar-lhe o léxico. Se, em «maçaroca de milho», «maçaroca» significava «filho» (ou «filha»), usada só por si queria dizer «marmelada». Ouvi-a centenas de vezes pedir, durante os pequenos-almoços («barcos à vela») que tomávamos na nossa pequena («três») cozinha («camisa») empoleirados («regatear») em bancos («camiões») estreitos e altos («sorvetes»), parecidos com os que se podem encontrar junto aos balcões («agrafadores») de alguns bares («espirros»): «festinhas maçaroca» («passa-me a marmelada») e «roçar maçaroca na trave» («põe-me marmelada no pão»).
O mais extraordinário é que, embora com significados diferentes, ela usava as mesmas palavras das outras pessoas. Apenas em meia dúzia de casos, vá-se lá saber porquê, inventara termos: «crotético», por exemplo, significava «amarelo»; e «bruntanetilíaco», «talvez».
E, como o robot, nunca variava. O dicionário no interior da cabeça dela podia ser diferente do das outras pessoas mas era constante. Talvez com duas ligeiras excepções: o uso dos artigos e os tempos verbais. Nestes campos, as regras não pareciam cem por cento fixas. Em «festinhas maçaroca», por exemplo (relembre-se: «passa-me a marmelada»), dispensava o artigo definido; mas em «maçaroca na trave» («marmelada no pão») o artigo encontrava-se lá, embora tivesse mudado de género. E, se em alguns casos trocara verbos por outros verbos e mantinha os tempos verbais, noutros trocara-os por substantivos, adjectivos ou advérbios e usava uma única expressão para todos os tempos verbais: «festinhas» significava «passa-me» mas também «passar», «passou», «passarei», etc. Quaisquer associações lógicas funcionavam apenas no cérebro dela.
Já era assim quando a conheci. Eu tinha trinta e quatro anos e ela vinte e cinco. Encontrámo-nos pela primeira vez na casa de uma das minhas tias, que estava ligada a uma associação qualquer de solidariedade social. Já não me lembro por que a fui visitar mas lembro-me – oh, quão me lembro – de ter sido uma rapariga minha desconhecida a abrir-me a porta. Tinha cabelo castanho liso que lhe chegava pouco abaixo dos ombros, olhos verdes, nariz pequeno e lábios um tudo-nada finos. Após um instante de surpresa, eu disse: «Olá.»
A expressão dela fechou-se. Perguntei-me se estaria à espera de outra pessoa e ficara desiludida ao ver-me. «Posso entrar? Sou o sobrinho da D. Amélia». Pareceu vacilar um instante e depois perguntou: «Boa trotinete?»
Hesitei, olhei para trás. Não vi qualquer trotinete. Voltei a encará-la.
«Er... não. Vim a pé.»
Pareceu confusa, algo que acontecia frequentemente: de facto, se, para as outras pessoas, o que ela dizia não fazia sentido, ela tinha o mesmo problema com as frases alheias. Ficámos em silêncio durante vários segundos. Tentei sorrir. Disse: «Posso entrar?»
Ela animou-se. Respondeu: «Balão.»
Continuava na minha frente, a impedir-me a passagem. Tentava decidir o que fazer quando a cabeça da minha tia surgiu por cima do ombro esquerdo dela. Sem falar, puxou a rapariga pelo braço e, sem dificuldade, fê-la recuar. Depois soltou-lhe o braço, agarrou o meu e arrastou-me até à cozinha. Disse: «Não quis ir para a sala porque está lá gente e era mais difícil explicar. Em especial porque ela se vai intrometendo e é uma confusão.»
«O que é que ela tem?»
Abanou a cabeça com ar pesaroso. «Ela não é normal.»
«Não é normal em que sentido?»
«Chama-se Cristina e é adorável. Mas o cérebro dela não funciona bem. Não diz coisa com coisa.»
«Como a maior parte das pessoas que conheço. Incluindo eu – e, às vezes, a tia.»
Ignorou-me. «Tem uma linguagem própria. Para ela, as palavras significam outra coisa.»
Se alguém me perguntasse, eu diria que a minha expressão devia ser aparvalhada mas, considerando a inquietação da minha tia, se calhar já revelava essencialmente fascínio.
«Deixa a rapariga em paz», pediu. «Não te metas em problemas.»
Mas a minha curiosidade havia sido despertada. Só larguei a rapariga quando as duas mulheres com quem ela estava, ambas amigas da minha tia, uma delas tia de Cristina (a mãe, soube-o mais tarde, falecera há meia dúzia de anos e o pai desaparecera pouco depois de ela nascer), saíram, levando-a com elas. Tendo percebido o meu interesse, a minha tia passou dez minutos a avisar-me para não me meter com «a rapariga». Não resultou, claro. Fui visitá-la no dia seguinte e quase todos os dias que se seguiram a esse. Para além da beleza dela, fascinava-me aquele mundo próprio, aquela lógica intransigente, aquela capacidade de criar uma linguagem que mais ninguém entendia. As nossas conversas – durante muito tempo, vigiadas pela tia desconfiada – pareciam jogos de palavras aleatórias, em que ela entrava com um prazer infantil e eu hesitava, erguia as mãos e mordia os lábios, tentando, mais intensamente do que em qualquer outra ocasião no passado, compreender o que me diziam. Cristina ensinou-me a ouvir; a, pela primeira vez na vida, escutar verdadeiramente o que alguém me dizia e a aplicar todas as minhas capacidades na descodificação do que me era dito. Nenhuma conversa com ela permitia distracções ou desinteresse.
Evidentemente, não foi fácil. Foi muito mais difícil do que aprender uma língua estrangeira porque não havia associações possíveis nem qualquer lógica subjacente. Eu limitava-me a anotar todos os seus termos e a decorá-los. De início, cometi erro atrás de erro. (Na verdade – e estremeço ao escrever isto –, nunca deixei de os cometer.) Mas ela mostrou-se sempre simpática e relaxada, pronta a ajudar-me: parecia ver os meus erros como simples tontice, como os de uma criança que ainda troca palavras ou não as consegue pronunciar correctamente.
Também não foi fácil lidar com os outros. Com as nossas famílias, desde logo. Cristina vivia mais ou menos resguardada do mundo, contactando apenas familiares e amigas da tia, para além dos médicos a que ia duas vezes por mês. Houvera um tempo em que a medicina se interessara seriamente por ela. Tinham sido efectuadas dezenas de testes ao seu cérebro, tivera de submeter-se a consultas com os mais variados «especialistas», haviam-se discutido viagens ao estrangeiro e tratamentos alternativos – tudo para nada, pelo menos no que lhe dizia respeito (desconheço se a medicina evoluiu alguma coisa com todo esse estudo). Às vezes eu perguntava-me se teria sido melhor que algum dos especialistas tivesse encontrado a cura. Chegava à conclusão de que, para ela, provavelmente teria sido. (Agora – como poderia ser de outra forma? – já não tenho dúvidas.) Para mim, todavia, achava que não. Fosse ela uma rapariga 'normal', é possível que não me tivesse despertado tanto interesse. Provavelmente nem nos teríamos conhecido, pois não haveria razão para ela acompanhar a tia com tanta frequência. Enfim, de que vale perder tempo a pensar nisto? A medicina ainda não soluciona (nem sequer percebe) todos os problemas do ser humano e Cristina era como era. Tal como os membros das nossas famílias – incluindo os meus pais – que viam com apreensão o nosso relacionamento.
Depois de passarmos a viver juntos, eu fazia questão de que tivéssemos uma vida tão normal quanto possível. Arrendámos um apartamento perto do meu emprego, o que nos permitia almoçar juntos todos os dias. A princípio, receando deixá-la andar sozinha pelas ruas, era eu que ia almoçar com ela mas depois percebi que não a podia manter presa em casa e, tendo-me certificado de que conhecia bem o curto trajecto, aceitei que por vezes viesse ter comigo. Ao fim-de-semana saíamos e dávamos passeios no parque e sentávamos em esplanadas a observar as outras pessoas. A nossa conversa era sempre motivo de interesse para os ocupantes das mesas mais próximas, que nos olhavam de soslaio, uns divertidos, outros ligeiramente incomodados, como se receassem que a qualquer momento pudéssemos revelar-nos maníacos assassinos. Ao princípio, eu próprio ficava incomodado, percebendo estar a ser classificado como louco, mas depois habituei-me. No fundo, que me importava a reacção alheia?
Nunca casámos. Cheguei a pensar nisso mas não conseguia ver como a poderia levar a dizer «sim» («verdade») no momento certo quando ela nem sequer entenderia a pergunta. Sendo que não bastaria ela compreender a pergunta: seria ainda preciso convencer as autoridades de que ela casava voluntariamente, apesar de não responder «sim» mas «verdade». De qualquer modo, casar não me era fundamental e, se cheguei a sondá-la acerca do assunto, foi por receio de que ela o desejasse e a minha falta de proposta a desiludisse. Afinal, não deu grande importância à questão.
Mas houve momentos difíceis, claro, temas que, esses sim, ela considerava importantes. Por exemplo, Cristina gostava de crianças e desejava ser mãe. Mas ter filhos com ela era um passo que eu não me atrevia a dar. Os médicos que a acompanhavam (inúteis, uma vez que nem sequer se davam ao trabalho de tentar comunicar verdadeiramente com ela) garantiam existir sérias hipóteses do problema dela ser geneticamente transmissível. Tal possibilidade era já bastante assustadora mas eu tinha ainda outros receios. Mesmo que os nossos filhos nascessem 'normais', que língua aprenderiam? A normal ou a nossa (minha e dela)? Como poderia uma criança crescer numa casa em que se falava de modo totalmente diferente da usada pelas restantes pessoas? Como poderia eu ensinar-lhes o significado habitual das palavras enquanto Cristina falava com eles usando outro? Por tudo isto, sempre que ela abordava o assunto, eu fugia cobardemente e dava desculpas esfarrapadas.
Apesar dos problemas, das ocasionais incompreensões e discussões, vivemos juntos três anos e meio de quase total felicidade. Sim, apenas três anos e meio. Um instante na vida de qualquer pessoa.
Foi numa tarde de sábado, por volta das quatro da tarde. Quando Cristina me largou a mão e começou a atravessar a rua, eu vi a carrinha. Em pânico, gritei: «Cuidado!» Ela parou e rodou com um sorriso amplo na face. Antes de poder falar, a carrinha atropelou-a. Foi projectada vários metros e ficou estendida no asfalto, inconsciente, com sangue a escorrer de uma ferida na cabeça. Corri para ela, agarrei-a, gritei-lhe, mas não voltou a recuperar os sentidos.
Passaram semanas e sinto-lhe a falta. Houve muitos períodos em que não foi fácil viver com ela. Em que tive vontade de desistir. Ao pensar nesses momentos, sinto vergonha. Parece-me que fui muitas vezes fraco, que não estive à altura. Mas pior, incomensuravelmente pior, é não conseguir deixar de pensar que o meu erro pode ter sido intencional. Minutos antes do acidente, tínhamos discutido. Foi por causa da discussão que ela me largou a mão e começou a atravessar a rua sozinha. Disse-me: «Sopra» («larga» ou «larga-me») e saiu disparada. E, desde esse instante, não tenho parado de me questionar se, quando gritei «cuidado!», o fiz verdadeiramente em pânico, recorrendo à linguagem que me ensinaram desde criança, ou com perfeita consciência de que, para ela, «cuidado» significava todas as variações de «amar», incluindo «amo-te».
«Pára com isso.»
«Não consigo. É uma sensação horrível. É como borbulhas, aquelas que ficam com crostas e dão vontade de arrancar, sabes?»
E Manuel escarafunchava o interior do nariz com a ponta do dedo mindinho e tirava de lá pedaços de muco seco que rodava entre a ponta do indicador e do polegar até formar bolinhas e depois atirava para o chão, a menos que estivesse em casa e Filomena, a mulher, andasse por perto, caso em que as ia pôr no balde do lixo ou colocava em pedaços de papel que dobrava cuidadosamente e deixava em cima da mesinha em frente ao televisor, de onde por vezes se esquecia de os retirar, tendo que ser Filomena a fazê-lo. Para além de remexer no interior do nariz, Manuel também se esforçava por retirar cera dos ouvidos com a ponta dos indicadores ou dos mindinhos mas menos amiúde e quase sempre com fracos resultados. Tanto fazia estas coisas distraidamente, sentado dentro do seu velho Fiat Uno ou no sofá a ver o Benfica, como outras pessoas acariciam o lóbulo da orelha ou fazem rodar os polegares um em torno do outro, como de modo consciente, mergulhado numa mistura de desespero (por a sensação se lhe ter tornado intolerável) e irritação (por não ter forças suficientes para o evitar). Filomena detestava vê-lo de dedo enfiado no nariz e fartava-se de lhe pedir para se controlar. «Nem à frente dos meus pais páras com isso e sabes como o meu pai fica…» Ele respondia que lhe era impossível, que o impulso depressa se tornava insuportável. «Quando tento controlar-me não fico bem. Fico com uma impressão horrível. Uma comichão no nariz, a sensação de que lá tenho uma coisa estranha, às vezes até parece viva.» Filomena comprou-lhe lenços de papel e cotonetes mas, por muitos esforços que Manuel fizesse para os usar, voltava sempre ao uso dos dedos. «O hábito vem-me desde criança», justificava-se. «Não consigo parar.» Filomena amava-o e ia aguentando. Tentava nem reparar mas quanto mais esforços fazia para não reparar, mais impressão aquilo lhe fazia também a ela. Curiosamente, os períodos em que Manuel estava constipado eram os melhores pois o ranho ficava demasiado líquido para, por um lado, provocar a tal sensação que tanto o incomodava, e por outro, permitir o uso da ponta dos dedos. Quando estava constipado, Manuel era mesmo forçado a utilizar os lenços de papel, que se amontoavam então na mesinha em frente do televisor até Filomena os levar para o lixo.
Estavam casados há três anos e meio e – mais um factor que não ajudava a que o pai dela encarasse Manuel com bons olhos – ainda não tinham filhos quando Manuel perdeu quatro dedos da mão direita na prensa de fabrico de tabuleiros metálicos que operava no emprego. Ele tinha que colocar a chapa na prensa, carregar num pedal para fazer descer a parte móvel e, depois de ela subir novamente, retirar a chapa já com o formato do tabuleiro. Era um trabalho perigoso que Manuel fazia há anos, sempre com imenso cuidado. Prometera a Filomena nunca facilitar. Mas naquele dia distraiu-se e carregou no pedal cedo demais. Da mão direita, só lhe restou o polegar.
Nem assim o hábito desapareceu mas, durante uns tempos, foi-lhe mais difícil extrair cera da orelha direita. Até ao acidente, apenas usava a mão esquerda na orelha do mesmo lado e, se não teve dificuldades em habituar-se a usá-la também no nariz, empregá-la na orelha direita constituiu um desafio muito maior. Porém, não havia escolha: o polegar, único dedo que lhe restava na mão direita, era demasiado grosso para o canal auditivo. Com esforço e perseverança (duas das suas melhores qualidades, todos o reconheciam), lá conseguiu habituar-se. Filomena, que parecera ficar mais perturbada com o acidente do que ele, dizia: «Nem assim deixas de fazer isso...» Mas dizia-o com resignação, não de forma agressiva. Como se, depois do acidente, aquele acto tivesse passado a ser uma coisa sem grande importância. Já o sogro de Manuel, dono de uma pequena e escura oficina de automóveis, passara a encará-lo ainda com mais desprezo: para além de ser pobre, ter aquele hábito asqueroso e não lhe dar um neto, Manuel nem sequer era capaz de evitar perder os dedos numa máquina que, sendo perigosa, era tão fácil de operar.
Regressou ao trabalho dois meses após o acidente, a mão direita transformada num coto espalmado e arredondado, a que o polegar, espetado na parte lateral, parecia nem pertencer. Filomena não queria que ele voltasse a trabalhar na prensa mas Manuel explicou-lhe que, depois da Inspecção do Trabalho e da Seguradora terem levantado imensos problemas ao patrão por causa das questões de falta de segurança (parece que a lei não permitia que as prensas fossem accionadas por pedal sem que existissem meios de protecção da zona perigosa), todas as prensas da empresa haviam sido modificadas e agora eram comandadas através de dois botões que tinham de ser premidos em simultâneo. «Chama-se comando bimanual», explicou Manuel a Filomena. E havia ainda uma barreira fotoeléctrica para garantir que as mãos do operador não estavam na zona perigosa «Se estiverem, a prensa não fecha». As explicações não sossegaram Filomena mas o que podia ela fazer? Os empregos eram escassos e necessitavam do dinheiro do salário dele, uma vez que o dela, funcionária no refeitório da escola secundária da vila, mal chegava para pagar o empréstimo do apartamento.
Passou-se cerca de um ano. Manuel habituou-se a colocar e a retirar a chapa com a mão esquerda e a premir o botão direito do comando bimanual com o polegar. A princípio, o patrão, um homem gorducho de cinquenta e tal anos que também era dono de um dos quatro cafés e do único talho da vila, não gostara da solução dos dois botões porque a cadência de produção revelava-se ligeiramente mais baixa do que com o pedal. Ainda por cima, do acidente resultara uma multa para a empresa e isso trazia-o irritado. Fora uma batelada de dinheiro, «um roubo», queixava-se a quem encontrava pela frente. Fazia até questão de o dizer repetidamente ao próprio Manuel, dando a entender que Manuel estava obrigado a compensá-lo. Uma vez perguntou-lhe: «Então agora como é que fazes para tirar macacos do nariz, Manel? Usas o dedo mindinho da mão esquerda para os dois buracos? Aposto que também demoras mais…» E riu-se com gosto, enquanto Manuel permanecia em silêncio. Todavia, decorrido um par de meses as coisas voltaram a entrar na rotina.
E então, um dia depois da prensa ter estado desligada para operações de manutenção, Manuel ficou sem quatro dedos e meio da mão esquerda: os quatro correspondentes aos que perdera na mão direita e ainda a extremidade do polegar. Como fora possível, quis saber Filomena depois de ele sair do tratamento. A máquina não era segura? Não parava se a mão estivesse lá dentro? Manuel explicou-lhe que os colegas da manutenção tinham deixado os sistemas desactivados. Um esquecimento ou talvez preguiça de ligar tudo outra vez. «Devíamos arranjar um advogado», disse Filomena. Mas não o fizeram. Não tinham dinheiro para isso e o patrão nunca perdoaria a Manuel se o fizesse. Far-lhe-ia a vida negra.
Apesar das perguntas e das referências ao advogado, Filomena encaixou o acontecido como se já o esperasse. Tornou-se mais calada, mais triste, mais resignada. Manuel detestava vê-la assim mas não sabia o que fazer para a animar. Poucos dias depois de sair do hospital percebeu que ela tinha ainda mais razões do que ele pensava para estar assustada, quando se sentou no sofá ao lado dele e, sem rodeios, lhe comunicou que estava grávida. Então Manuel ficou pelo menos tão assustado como ela.
Mas, inesperadamente, o acidente acabou por ter consequências positivas. Manuel, que, na sequência do primeiro, já recebia uma pequena pensão por incapacidade, foi considerado inapto para o trabalho (o que lhe permitiu evitar o ex-patrão, outra vez às voltas com a Inspecção e mais irritado do que nunca) e passou a receber uma pensão quase igual ao salário. Apesar disso, ainda tentou arranjar outro emprego, de modo a aumentar o rendimento agora que a família ia crescer, mas ninguém se dispôs a aceitar um trabalhador com apenas um polegar e meio no conjunto das duas mãos. Assim, ficava em casa, sentado a ver televisão enquanto Filomena ia para o emprego. O sogro não gostava de o saber inactivo enquanto a filha, grávida, continuava a trabalhar («Lá por não ter dedos, não quer dizer que não possa fazer qualquer coisa; prefere é ficar de papo para o ar a coçar os tomates», ouviu-o dizer uma vez) mas, de forma geral, a gravidez da filha deixara-o menos agressivo. Pelo que o maior problema de Manuel, o problema que lhe ocupava os dias e o desesperava, era ser-lhe agora quase impossível escarafunchar nariz e ouvidos. De facto, sem acessórios era mesmo totalmente impossível. E as cotonetes, que já antes não resultavam, haviam-se tornado ainda mais inúteis, devido à dificuldade que ele tinha em manejá-las. Experimentou segurá-las de todas as maneiras possíveis (entre o polegar direito e palma da mão direita, entre o polegar direito e o coto do polegar esquerdo, entre o polegar direito e a palma da mão esquerda, entre o coto do polegar esquerdo e a palma da mão direita com o polegar direito arqueado por cima do coto do polegar esquerdo de modo a providenciar um acréscimo de estabilidade, entre ambas as palmas) mas nenhuma resultava. Quando, no final do dia, Filomena chegava, cansada, corada e cada vez mais redonda, Manuel encontrava-se sempre à beira do desespero. E então, porque o amava e não suportava vê-lo sofrer, Filomena sentava-se junto dele e, com os seus dedos finos terminados em unhas que fazia questão de arranjar pelo menos todos os domingos à noite, antes da hora de dormir, passava vários minutos a extrair-lhe burriés do nariz e cera dos ouvidos. Depois ia lavar as mãos e fazer o jantar.
«Repara no coveiro.»
Laura olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita. Descobriu o coveiro ligeiramente afastado do grupo, apoiado na pá. Olhava o caixão fixamente e parecia alheado do que o padre dizia.
«Não! Ele está…?»
«Hum-hum.»
Filipe e Laura estavam na parte de trás do aglomerado de pessoas rodeando a cova sobre a qual, assente em dois barrotes de madeira, se encontrava o caixão. A terra era escura. Parecia molhada apesar de não estar a chover.
Filipe sussurrou: «Ele conhecia-a?»
Laura rodou a cabeça apenas um tudo-nada na direcção de Filipe: «Aqui toda a gente se conhece. Mas que eu saiba não o suficiente para chorar no funeral dela. Nem o João está a chorar.»
João era o filho mais velho de D. Lurdes, a falecida. Filipe procurou-o com os olhos. Não, não estava a chorar. Parecia triste mas também um pouco farto daquilo tudo. Filipe conhecia-o mal e não gostava dele.
«Então a que propósito vem aquilo?»
Falara demasiado alto. Um homem à frente deles olhou para trás. Filipe esboçou um sorriso apologético e Laura susteve a resposta. Filipe aproveitou a pausa para tentar perceber o que o padre dizia (qualquer coisa sobre D. Lurdes ter vivido nesta vida sabendo que devia preparar-se para a próxima) e depois para dar nova olhadela ao coveiro. Parecia já ter passado os setenta anos de idade mas talvez isso se devesse ao aspecto desmazelado: vestia uma camisola bege suja de terra e umas calças de uma tonalidade tão parecida com a cor da terra que era difícil saber se não estavam apenas imundas. Quando às botas, não havia dúvidas: manchadas e com rasgões, ameaçavam desintegrar-se a qualquer momento. Não era alto, tinha meia dúzia de quilos em excesso concentrados em torno da cintura, uma barba mal feita e cabelo que não devia ser lavado há semanas. Mas a particularidade mais estranha era a forma como a pálpebra direita pendia sobre o globo ocular: fazia com que, visto do ponto em que Filipe se encontrava, parecesse estar sempre a olhar para o chão ou a pedir desculpa. Continuava a chorar. Fazia-o em silêncio, sem qualquer trejeito ou movimento, como se nem percebesse que chorava.
«Mas que raio é que um tipo assim podia ter em comum com a velha? Estaria apaixonado por ela desde miúdo?»
Laura hesitou. «Uma vez a Sandra disse-me que o velho Firmino teve desaguisados com muita gente. O coveiro é capaz de ter sido uma dessas pessoas.»
Sandra era a melhor amiga de Laura e esposa de João. Por instantes, o cérebro de Filipe entreteve-se a analisar a estranheza do uso do termo “desaguisados” por parte de Laura e não conseguiu perceber o que ela efectivamente dissera.
«Hã?»
«O Firmino era um mulherengo.»
«E?»
«E meteu-se com mulheres casadas. Entre as quais a do coveiro.»
«Não estou a perceber onde queres chegar. O Firmino não morreu há uns cinco anos? Por que é que o coveiro havia de estar a chorar no funeral da viúva do homem que lhe comeu a mulher?»
O homem que antes se virara voltou a fazê-lo. Vestia um fato cinzento-rato de mau corte, uma camisa branca e a inevitável gravata preta. Tinha ar de presidente da junta ou qualquer coisa assim. A irritação no seu olhar era agora indubitável. Filipe concedeu-lhe um trejeito breve mas nada mais; estava demasiado interessado na história para se dar ao trabalho de voltar a fingir contrição.
Sem o olhar, Laura teve um sorriso fugaz. Disse: «Pode ter havido qualquer coisa depois disso.» Estava deslumbrante, de vestido preto. Houvera um par de ocasiões durante a cerimónia na igreja em que Filipe sentira vontade de fazer amor com ela. De uma das vezes, tivera mesmo que disfarçar uma erecção. E não era a primeira vez que algo do género acontecia. Filipe começava a suspeitar que situações inconvenientes despoletavam nele desejos sexuais. Laura disse: «Eles podem ter sido amantes desde aí. Os amantes traídos, entretanto tornados viúvos.»
Filipe voltou a olhar para o coveiro. Era difícil ver nele o amante de alguém. Mas não era menos difícil imaginar a velha D. Lurdes, que Filipe conhecera apenas na capela mortuária, já estendida dentro do caixão, tendo sexo com alguém. De repente, Filipe percebeu que nem conseguia imaginar pessoas de idade avançada tendo sexo. Isso perturbou-o durante alguns segundos. Era a primeira vez que pensava no assunto e pareceu-lhe simultaneamente lógico – porque é que havia de desejar visualizar velhos tendo sexo? – mas também deprimente – como se constituísse uma falha dele, um indício de falta de imaginação e, ao mesmo tempo, um desrespeito para com a sexualidade dos idosos. Como penitência, prometeu a si mesmo procurar vídeos de sexo na terceira idade em sites porno na internet logo que tivesse oportunidade.
Nem de propósito, o padre dizia qualquer coisa acerca de respeitar os outros, coisa que D. Lurdes sempre fizera. Filipe prestou-lhe atenção durante um par de segundos antes de se inclinar de novo para Laura.
«Não seriam eles os amantes logo desde o início, em vez do Firmino e da mulher dele?»
Laura rodou a cabeça para lhe atirar um olhar de censura.
«Tu e a tua mente suja…»
«Se o Firmino era mulherengo, até merecia. E parece-me uma hipótese mais lógica do que a tua versão romântica de duas almas solitárias e feridas encontrando-se na velhice.»
Laura voltou a olhar em frente. O padre parecia estar a terminar.
«A Sandra disse-me uma vez que o caso do Firmino com a mulher do coveiro aconteceu mesmo. O coveiro apanhou-os e deu uma sova na mulher.»
«Hã?» Filipe olhou de novo para o sítio onde o velho continuava apoiado na pá. Parecia não se ter mexido um milímetro. «Estás a falar a sério?»
«Era coisa corrente, por aqui.»
«Fico satisfeito… quer dizer, satisfeito não, fico… sei lá, fico banzado que encares a coisa de forma tão natural.»
Laura encolheu os ombros e disse «Ámen» em coro com o resto das pessoas. O final da cerimónia fez com que toda a gente se descontraísse – que trocasse a perna de apoio, se movimentasse ligeiramente ou falasse com a pessoa do lado. Filipe perguntou: «E o Firmino?»
«O Firmino o quê?»
«Quando o coveiro os apanhou. O que é que fez?»
«Fugiu.»
«Foda-se, não me digas!»
As palavras haviam-lhe saído demasiado altas. Embora o nível de ruído fosse agora superior, várias pessoas voltaram-se e dirigiram-lhe olhares de censura. O tipo que parecia presidente da junta resmungou qualquer coisa para uma mulher baixinha e rechonchuda que dava ideia de ter apenas uma expressão facial, algures entre a resignação e a bovinidade. Se era casada com aquele tipo, pensou Filipe, não se podia estranhar o facto.
Laura deu-lhe uma pancada no braço e puxou-o para trás. «Fala baixo. Só me fazes passar vergonhas!»
Recuaram três ou quatro metros enquanto o pessoal da funerária começava a tratar de descer o caixão para dentro da cova.
«E depois?» perguntou Filipe.
«Depois o quê?» Agora Laura já se permitia encará-lo. Tinha aquele ar de quem lida com uma criancinha que Filipe às vezes achava delicioso, outras insultuoso. Teve vontade de a beijar. Isso sim, havia de dar motivo de conversa pelas terrinhas das redondezas.
«O que aconteceu? O coveiro foi atrás dele ou assim?»
«Não sei, acho que não.»
«Mas logo que teve hipóteses, vingou-se e foi para a cama com a mulher dele.»
«Se tivesse sido apenas vingança achas que o coveiro estaria a chorar?»
Filipe olhou de novo para o homem. Tinha mudado ligeiramente de posição, segurando a pá ao lado do corpo mas já não se apoiando nela, e encontrava-se demasiado longe e quase de costas para Filipe conseguir perceber se ainda chorava. Provavelmente não.
Sandra aproximou-se. Estava quase tão atraente como Laura, apesar de ter umas olheiras profundas. Filipe afastou a velha ideia do ménage à trois. Não era momento para fantasias daquelas.
«Obrigado por terem vindo. Hoje o João está um bocado alheio a tudo mas sei que aprecia que tenham feito a deslocação.»
Enquanto Laura dava uma resposta qualquer, Filipe pensou que João raramente apreciava o que quer que fosse que tivesse a ver com ele, Filipe. Será que se apercebia das fantasias que ele tinha com Sandra? Ou – e Filipe quase deu um salto ao pensar na hipótese – será que tinha fantasias similares com Laura e via Filipe como obstáculo? Ou ainda, considerando que Filipe conhecera Laura e Sandra muito antes de João o fazer, desconfiaria que já fora para a cama com Sandra? (Não fora mas tinha pena. A questão surgia-lhe até como uma falha no seu passado; uma oportunidade perdida.)
«Filipe?»
«Hã? Desculpa.»
Laura suspirou, ligeiramente irritada. «Às vezes parece que desapareces para parte incerta.»
«Desculpa.»
Sandra disse: «Tenho de voltar para junto do João.»
Filipe disse: «Só uma coisa. Reparaste no coveiro?»
«O que é que tem?»
«Estava… hum… parecia muito combalido.»
Sandra encolheu os ombros.
«Não reparei. Mas não digam ao João. Com a disposição com que ele está hoje, mais vale não lhe meter ideias na cabeça.»
E afastou-se. Laura passou o braço esquerdo em torno da cintura de Filipe.
«O que é que se passa contigo?»
«Nada.»
«Vamos andando?»
A maior parte das pessoas já se dirigia para a saída. Apenas João, Sandra e mais três ou quatro pessoas ainda estavam junto à sepultura. O coveiro enterrou a pá na terra solta e começou a atirá-la lá para dentro. Filipe não conseguia ver-lhe a cara.
«Vamos.»
Caminharam até à saída. O cemitério ficava junto a uma pequena capela e a um terreno onde anualmente se realizava uma festa em honra de um santo qualquer. Quando havia casamentos ou funerais, servia de parque de estacionamento.
«Sabes», disse Filipe de repente, «sinto-me como um peixe fora de água nestes meios pequenos. Parece-me que as pessoas seguem uma lógica diferente.»
Susana olhou-o de lado e sorriu. «Tadinho. Um menino citadino, é o que tu és. Só estás habituado a lidar com pessoas no metro. Ou em discotecas.»
«Não gozes.»
«Filipe: as pessoas, sejam novas ou velhas, odeiam-se, apaixonam-se e fodem em todo o lado. Mesmo nos meios pequenos.»
Filipe estremeceu ligeiramente. Destrancou o carro. Contornava-o quando viu João e Sandra sair do cemitério. Hesitou. Disse: «Eu venho já.»
Ignorou o aviso no olhar de Laura. Em passo rápido, voltou a entrar no cemitério, decidido a falar com o coveiro.
Encontrou-o de costas para o corredor de acesso, a atirar pazadas de terra para o buraco. Em poucos minutos, enchera-o quase por completo. Filipe parou a cerca de dois metros. Abriu a boca para falar mas percebeu que não sabia o que dizer. A certeza que o fizera voltar a entrar no cemitério esvaíra-se numa fracção de segundo. O que raio ia perguntar? «Olhe, desculpe, por que é que estava a chorar?» E o que faria se o homem reagisse mal?
Permaneceu ali dez ou quinze segundos, meio esperançado de que o velho notasse a sua presença e o encarasse, e depois, pensando que Laura tinha razão (grande merda, era mesmo um citadino), deu meia volta e reencaminhou-se para a saída.
No carro, Laura manteve o silêncio durante vários minutos antes de perguntar: «Então?»
Filipe já desistira de tentar arranjar uma boa desculpa.
«Não cheguei a falar com ele.»
Laura não fez comentários. Mexeu as pernas. O vestido subiu, expondo-lhe os joelhos. Filipe pensou que era uma merda que ainda faltasse mais de uma hora para chegarem a casa.
Vamos tomar um café à hora de saída do emprego. Eu proponho e César aceita após um instante de hesitação. Ficamos na mesa do canto, como fazemos sempre que ela está livre. A empregada cumprimenta-nos. Sorrio-lhe, digo-lhe boa tarde, trato-a pelo nome, Anabela. César limita-se a dizer boa tarde. Observo as ancas dela enquanto se afasta. Digo: «Está cada vez melhor. Andar de um lado para o outro com a bandeja na mão deve fazer bem aos glúteos.» César esboça um sorriso mas mal roda a cabeça.
«O que se passa contigo?», pergunto.
«O que queres dizer?»
«Pareces em baixo.»
Encolhe os ombros. Hesita. «É demasiado ridículo para contar.»
«Bom, agora não tens alternativa. Até porque eu adoro histórias ridículas. E sou especialista nelas, embora normalmente como personagem principal.»
Ele deixa passar uns segundos. Não me olha; é como se avaliasse as minhas palavras, tentando separar a parte verdadeira da parte falsa, o humor introduzido apenas para efeito cómico da sinceridade. Ou se calhar nem as ouviu. Se calhar nem é relevante ser eu quem ali está e a questão que analisa prende-se com ele próprio. Prende-se com saber se deve contar a alguém a tal coisa ridícula.
Acaba por dizer: «Sabes que costumo ir correr à beira-rio, entre a Afurada e Lavadores?»
«Hum, acho que já mo tinhas dito.»
A empregada regressa com os cafés e permanecemos em silêncio enquanto ela os coloca sobre a mesa. Desta vez faço um esforço para não a observar enquanto se afasta. César rasga o pacote da açúcar, despeja-o na chávena, mexe o café. Só então recomeça a falar: «Lembras-te de eu te contar que uma ou duas vezes por semana vou correr junto ao rio, do lado de Gaia?»
«Talvez.»
«Tu até me disseste que correr é das coisas que mais detestas.»
«Sim, já me lembro. E então?»
Pára de mexer o café e pousa a colher no pires. Ergue os olhos.
«Sabes como no Inverno anoitece cedo, às cinco e tal é de noite? E mesmo em Fevereiro ou no início de Março, antes da mudança da hora, às seis e meia, sete, já pouco se vê?» Faço que sim com a cabeça, mais para o incentivar a continuar do que por ser necessário responder a algo tão evidente. «Na zona da Cabedelo, ali junto ao areal, há uma série de candeeiros ao longo do percurso destinado a pedestres e ciclistas. Às vezes, não sei porquê, alguns apagam-se. Não costuma acontecer a todos, apenas a alguns. Às vezes só ficam apagados dois ou três segundos, outras vezes parece que nem chegam a acender.» Bebe um gole de café. Mastiga o gosto que lhe fica na boca e depois continua: «Costumo deixar o carro naquele parque mesmo ao lado da Afurada, de onde há uns anos tiraram as barracas dos pescadores e agora estão a acabar de construir a marina. Numa tarde do final de Fevereiro vinha a regressar, depois de ter ido dar a volta na zona das praias, a seguir ao hotel Casa Branca. Eram sete e tal, para aí umas sete e meia, já estava bastante escuro. Fiz aquela curva à direita, a descer, que separa a zona do mar da zona do rio, e apercebi-me de que os candeeiros estavam apagados. Quando entrei na zona escura fiquei quase sem ver. Um gajo qualquer passou por mim, a correr na direcção oposta, e só lhe vi o vulto quando ficou para aí a um metro de distância. Por acaso apercebera-me antes mas só por causa do som dos passos e da respiração ofegante. Em parte, deve ter sido o barulho que ele fazia que provocou o que aconteceu a seguir. Nem segundos depois de ele passar, apercebi-me de um vulto mesmo à minha frente, a correr na minha direcção. Travei mas era tarde demais e chocámos de frente. Ela (era uma mulher) deu um grito (eu nem me lembro se cheguei a gritar) e, instintivamente, agarrámo-nos um ao outro. Nem sei como mas conseguimos não cair. E então vem a parte verdadeiramente estranha. Em vez de nos largarmos de imediato, sabes como é, pedirmos desculpa, perguntarmos se estava tudo bem, em vez disso, quando nos conseguimos equilibrar continuámos abraçados mais um instante, como se quiséssemos ter a certeza de que não íamos mesmo cair. Eu não a via mas sentia que era magra, que tinha o corpo firme, e não me parecia muito alta. Lembro-me de sentir as mamas dela encostadas ao estômago e a transpiração dela nos meus braços, e de notar o cheiro e a respiração a bater-me no pescoço. Foram só dois ou três segundos, sabes, e talvez eu agora até imagine mais do que realmente aconteceu, mas é como se tivéssemos passado uma barreira, como se aquele tempo tivesse tornado impossível separarmo-nos e pedirmos desculpa, como seria normal, e seguirmos cada um para seu lado. Isto se calhar não faz sentido nenhum...»
«Faz. Continua.»
Dou uma olhadela à sala do café. Felizmente, as mesas mais próximas estão vazias.
«Beijámo-nos. Não sei como aconteceu. Mas, caramba, beijámo-nos a sério. Estávamos os dois sem fôlego por causa da corrida e precisávamos de respirar com frequência mas voltávamos a beijar-nos logo a seguir, como se não pudéssemos deixar passar muito tempo ou aquilo ia tudo por água abaixo. Empurrei-a para o lado da encosta, ou se calhar foi ela que me puxou, meti-lhe as mãos por baixo da camisola e tirei-lhe o soutien. Entretanto ela já tinha as mãos dentro dos meus calções e continuávamos a beijar-nos, e eu só sabia que ela tinha um hálito quente mas não desagradável, também naquela altura tudo me pareceria excitante, nada me faria parar, e então tirei-lhe as calças e ela baixou-me os calções e... bom, e fodemos. Não durou muito tempo, estávamos demasiado excitados – quer dizer, eu estava demasiado excitado – mas foi de loucos. Tínhamos os corpos tão transpirados e eu tinha tanto calor e continuávamos com dificuldades para conseguir respirar que... enfim, já ficaste com a ideia.»
«Foda-se, fiquei com mais do que uma ideia, fiquei com tesão.»
O sorriso dele é fugaz.
«Desculpa.»
«Não há problema. Acho que já não ficava assim só por causa de um relato desde o primeiro ano da universidade. Tinha um colega de apartamento, mais velho – acho que já te falei dele – que fazia questão de nos contar as suas aventuras amorosas. Eram fantásticas mas descobrimos passado uns tempos que ele as ia buscar às cartas da Penthouse americana.»
César cora ligeiramente. Baixa os olhos para a chávena de café.
«Tudo o que te disse é verdade.»
«Eu sei, eu sei. Não estou a dizer o contrário. Não passou ninguém enquanto vocês fodiam?»
«Achas que reparei?»
«Ok, foi uma pergunta estúpida. E depois? Quando acabaram.»
«Depois foi super rápido. Separámo-nos e eu estava a puxar os calções para cima e a tentar pensar no que dizer quando ela se antecipou e desatou outra vez a correr na direcção do mar.»
«E tu o que fizeste?»
«Eu fiquei parado feito parvo, pá. Lembro-me de pensar que devia ir atrás dela mas não fui. Acho que, subconscientemente, pensei que era melhor deixar as coisas assim. Vim-me embora.»
«Voltaste a vê-la?»
«Não.»
«Tens vontade?»
Ergue os olhos.
«Ouve, isto não tem lógica nenhuma. A gaja pode ser casada, pode ser feia, pode gostar de música pimba, pode ter mil e um defeitos. Pode ser demasiado velha para mim, ou demasiado nova. Mas, ainda assim, sempre que vou correr ponho-me a olhar para todas as mulheres por quem passo, tentando perceber se é aquela e se por acaso não anda também a tentar encontrar-me.»
«A vida nem sempre é lógica», digo, e durante um par de segundos fico a pensar como me irrita não conseguir evitar os lugares comuns. «Mas acho que deves encarar o que se passou como uma experiência. Uma experiência do caraças, diga-se de passagem. Eu não me importaria de que uma coisa assim me acontecesse. Acho que nenhum gajo heterossexual se importaria. No fundo, isso é uma fantasia masculina concretizada. Podia estar mesmo nas cartas da Penthouse»
Sorri. Empurra a chávena.
«Até é um bocadinho pirosa», diz.
«Não me parece.»
Encolhe os ombros.
«Seja como for, às vezes penso que não passou mesmo disso. De uma fantasia. Um sonho.»
«Não seria um mau sonho.»
«Porque, estás a ver, se tivesse sido verdade já a devia ter encontrado outra vez, não achas? Apesar de não sabermos bem o aspecto um do outro, já devíamos ter-nos cruzado e como é possível que não percebêssemos de imediato? Quer dizer, eu agora passo a vida a examinar as mulheres que correm naquela zona. Honestamente, acho que chego a assustar algumas. E já nem olho só para aquelas que me parece terem a estatura e a configuração física certa. Começo a duvidar das minhas próprias recordações, percebes?, e olho para quase todas, agora. Tento perceber se é possível que tenha sido aquele cabelo que agarrei (ela estava de rabo de cavalo, sabes) e aqueles lábios que beijei e aquele corpo... fiquei com a sensação de que ela tinha um rabo – não gordo, mas cheiinho. Assim um bocadinho para o largo. Mas entretanto comecei a pensar que quando estamos na cama com uma gaja magra – enfim, tirando aquelas mesmo muito, muito magras – e lhe apalpamos o rabo, ele acaba sempre por surpreender um bocadinho, por ter mais carne do que parecia, sabes?»
«Hã-hã.»
«E então olho para as gajas todas, e para os rabos todos, e para os cabelos todos, e para gajas que me parecem mais baixas do que ela e mais altas do que ela. Enfim, olho para as gajas todas. E elas percebem, claro, e às vezes, quando estão gajos com elas, eles também percebem. Qualquer dia partem-me a cara.»
«Desiste.»
«Não consigo. Pelo menos para já.»
«Ouve, tu próprio o disseste: ela pode ser casada, ou ter cá estado pouco tempo, ou... sei lá, deve haver milhares de razões para não ter voltado a aparecer ou para andar a tentar passar despercebida. Pode ser freira. Pode ter engravidado.»
«Obrigadinho.»
«Desculpa. Sabes como eu sou. Mas acho que não deves fazer grandes filmes à volta dela. Tu próprio o disseste: não a conheces. Apenas fizeste sexo com ela.»
«Nem mais.»
Faz sinal à empregada. Tira moedas do bolso enquanto ela se aproxima.
«É para pagar», diz. «Pode ser os dois.»
«Ei, não me vais pagar o café.»
«Esquece.»
Coloca uma moeda de dois euros no tabuleiro. Enquanto a rapariga faz o troco, pergunto-lhe: «Diga-me uma coisa, Anabela, costuma fazer jogging?»
César deita-me um olhar de advertência mas ignoro-o. Ela responde: «Não, não gosto de correr. Mas às vezes vou ao ginásio. Porquê?»
«Era só para saber. Tinha de haver uma razão para estar em tão boa forma.»
Ela olha-me, desconfiada, mas acaba por sorrir. Um elogio é um elogio.
César recolhe o troco e saímos para o passeio. A temperatura está amena mas a luz do Sol já só ilumina o topo dos prédios. Pergunto: «Vais-te embora ou ainda voltas ao escritório?»
«Vou-me embora», diz. Sorri, encolhe ligeiramente os ombros. «Vou correr à beira-rio.»
«A coisa de que Amílcar Tinoco mais tinha orgulho na vida era um garanhão chamado Pégaso. A segunda, uma égua chamada Epona (ele tinha a mania de escolher nomes da mitologia que ninguém por aqui entendia). Com uma ajudinha de Pégaso, ela trouxera ao mundo dois dos cavalos que mais lucro lhe tinham proporcionado. A terceira coisa de que ele mais se orgulhava era um podengo alentejano chamado Tejo (os cães não lhe mereciam as mesmas honras que os cavalos). A quarta era a herdade, a quinta, o muito dinheiro que tinha, a sexta, a filha, a sétima, a amante, a oitava, um bom copo de vinho, a nona, o filho, e a décima talvez fosse a mulher. Toda a gente o sabia e, se quanto à ordem dos últimos pontos ainda podia haver discussão, os primeiros dois eram evidentes para qualquer pessoa.»
«Já sei isso tudo. E depois?»
Encolho os ombros. Ele tem quarenta e sete anos mas continua a pessoa totalmente incapaz de raciocinar para além do que lhe dizem (ou seja, de raciocinar, pura e simplesmente) que sempre foi. Deve dizer algo sobre mim ter gerado um filho assim. Se bem que – convém não esquecer – a mãe também nunca teve imaginação ou queda para raciocínios elaborados. Coisa que, no caso dela, até calhava bem. Serafim (nunca gostei do nome mas Alice insistiu – «apesar de tudo, era o nome do meu pai, coitado») deve ter saído a ela. Não na beleza, porém. Alice aguentou-se até ao fim com uma aparência invejável e uma quantidade surpreendentemente baixa de rugas, até mesmo no pescoço, a zona onde quase toda a gente acaba por parecer um peru. Sei que estou pior do que ela estava. Pior do que ela estava há dez ou quinze anos, até. Careca, barrigudo, com pêlos saindo-me das narinas e das orelhas que não vale a pena cortar (voltam passados dias, se não horas), expressão de permanente resignação que a maioria (este idiota do meu filho, por exemplo) toma por mau humor. Estou acabado. Mas permaneço vivo.
Estamos sozinhos na sala. A mulher dele – uma lisboeta magra que se diz gestora e que quando não é histérica se limita a ser incoerente – seguiu para Lisboa de comboio. Por causa das crianças, disse. Duas raparigas, de onze e nove anos, a caminho de serem tão tontas quanto os pais. (Mas adoro-as, atenção – que alternativa tenho?) Serafim insistiu em passar cá a noite – «Não aceito que fiques sozinho.» Ora merda. Como se fosse mais fácil estando com ele. Expliquei-lhe que amanhã ao nascer do Sol já aqui estarão várias pessoas, dentro de casa e lá fora, a tratar dos animais. Nada feito. «Não quero que passes o tempo a pensar na mãe», explicou. Que mal faria? Seria melhor do que aguentar este arremedo de conversa. E Alice merecia que se pensasse nela. Podia não ser imaginativa mas era prosaica e sensata. Serafim também se acha sensato (ser ou não prosaico nunca lhe deve ter passado pela cabeça) mas é apenas chato.
«Sempre deixaste entender que havia mais qualquer coisa por trás da forma como vocês acabaram por casar», diz ele. Está sentado num dos sofás individuais que, de repente (constato-o com um choque que por instantes me leva a não processar as palavras dele), me parecem extraordinariamente antigos, apesar de Alice e eu os termos comprado ainda nem há dez anos. E então percebo que tudo ficou umas dezenas de anos mais velho nas últimas vinte e quatro horas, incluindo eu.
Tento lembrar-me do que ele disse.
«Não deixei entender nada», respondo. «Disse-to uma vez, tinhas tu dezoito anos.»
Permite-se um sorriso. Tem um copo na mão. Foi buscá-lo logo que chegámos. Despejou dois dedos de whisky lá para dentro e veio sentar-se. Agora mantém-no suspenso sobre o braço do sofá. Uma pose, toda a sequência. Influenciada por filmes americanos e por telenovelas que os copiam. Uma cópia em terceiro grau, portanto.
«Por causa da Francisca. O que é feito dela?»
«Casou, emprenhou, engordou. Mais ou menos o mesmo que tu. Excepto a parte do emprenhar.»
«Hoje podes dizer o que quiseres, eu recuso chatear-me.»
«Ora merda, então onde está a piada?»
Cumpre a promessa e ignora a provocação, o balofo bastardo – não, bastardo não, que ele é de facto meu produto infeliz. Quem diria que os meus genes, misturados com os de Alice, dariam nisto? Bom, convenhamos que, apesar do código genético dele poder ser mais parecido com o meu (e com o dela) do que com o de qualquer outro ser humano, não deixa de ser quase tão parecido com o de um orangotango como com o nosso.
«Numa coisa tinhas razão. Disseste-me que eu não a amava.»
«Disse-te que não sabias o que era o amor.»
«Isso.»
«E ainda não sabes.»
«Não comeces. Eu e a Liliana damo-nos muito bem.»
«Excelente.»
«Achas mesmo que a tua relação com a mãe era diferente? Só por causa das dificuldades que o pai dela vos causou?»
«Não, não é só por isso.»
«Então?»
Como é que se consegue que um idiota sem imaginação perceba que a realidade era muito diferente quando ele ainda nem na fase de espermatozóide se encontrava? Como é que se descrevem as décadas de cinquenta e sessenta do século passado numa povoação atrasada de um país atrasado a um frequentador de centros comerciais e praias algarvias?
«A minha relação com a tua mãe assentava em esforços e sacrifícios que tu nem consegues imaginar.»
«Sempre achei piada às tuas tentativas para vos fazer passar por Romeu e Julieta. Quer dizer, às vezes só achava ridículo.»
«Romeu e Julieta… Não é tão descabido como pensas.»
«Vocês não morreram por amor. Aliás, duvido que fosses capaz de morrer por amor.»
«Ai achas? Bom, talvez tenhas razão. Nunca o faria havendo outras possibilidades.»
Consulta o relógio. «Vou para a cama», diz.
Devia deixá-lo ir. Devia deixá-lo ir dormir e amanhã seguir para Lisboa e voltar à sua vidinha modorrenta, ao lado da mulher que conheceu num escritório, que atraiu com meia dúzia de lugares-comuns, com quem foi para a cama ao segundo ou terceiro encontro, cujos pais sorridentes encontrou pela primeira vez depois de ir para a cama com ela, e que ama o suficiente para, de longe a longe, aceitar ser arrastado para duas horas de O Lago dos Cisnes no Coliseu ou para uma exposição de garrafas vazias penduradas do tecto no Centro Cultural de Belém. Em vez disso, digo:
«Eu era filho de camponeses analfabetos e, ainda por cima, o teu avô tinha fama de bêbado – e de comunista. Apesar de beber e de não gostar do Salazar, não era nem uma coisa nem outra. Eu tinha feito a quarta classe mas trabalhava a tratar de cavalos e vacas e nunca havia de fazer outra coisa. O teu avô Serafim tinha terras, gado, considerava-se um latifundiário. Queria lá um vagabundo como eu para genro.»
«A mãe também só tinha a quarta classe.»
«De onde já podes ver a mentalidade dele. Podia tê-la mandado estudar. Mas era mulher, não valia a pena. Tinha era de lhe arranjar um marido decente. E eu nunca o seria.»
«Caramba, postas as coisas assim, parece que vivias na Idade Média!»
E é este gajo licenciado em direito. O meu filho. Incapaz de ver um palmo à frente do nariz. Nascido numa década de sessenta em que efectivamente muitas zonas deste país de merda mal tinham saído da Idade Média mas sem qualquer noção disso; sem qualquer noção de que o mundo em que se tornou adulto era já um mundo diferente. E, no fundo, por que haveria de a ter? Para os padrões locais, cresceu rico, sem preocupações. Teve brinquedos e televisão, foi ao cinema, desfrutou de viagens frequentes a Lisboa. Nunca pegou numa enxada a não ser para fingir que cavava. No passado, tentei muitas vezes que o percebesse, para grande ofensa dele e grande aflição da mãe. Desta vez fico calado.
Ele abana o copo com o whisky e diz: «Uma coisa que sempre estranhei é que gostavas mesmo dela.»
Ignoro a provocação – que mostraria alguma capacidade de raciocínio não fosse a constatação de duas realidades óbvias para qualquer pessoa que alguma vez tenha passado dez minutos comigo e com Alice: a de que a amava e a de que sempre fui um sacana – e centro-me no essencial. É verdade. Amava-a. Durante uns tempos cheguei a pensar fazê-lo por não querer admitir ter feito um mau investimento. Afinal, consegui-la exigira tanto. Mas não; amava-a e pronto, vá-se lá saber porquê. A explicação mais cínica que consigo arranjar, e se calhar também a mais realista, é que sou demasiado teimoso para mudar de ideias. Se aos vinte anos decidi amá-la, era para continuar a fazê-lo até ao fim. E foi.
«Porquê? Não tenho capacidade para amar?»
A mão dele imobiliza-se mas o whisky fica ainda a rodar dentro do copo.
«Para ser sincero, era isso que parecia na maior parte das vezes.»
«Óptimo, alguma sinceridade, finalmente.»
«Nunca tivemos conversas destas.»
«E tens pena?»
Ele fica a pensar na resposta e eu aproveito para continuar: «Outra coisa que toda a gente sabia é que Tinoco era amigo do Salazar. E outra ainda…»
«Por que é que insistes nessa história? O que me interessa o Tinoco? Sei perfeitamente o que se passou.
«Outra ainda é que era um sujeito que fervia em pouca água. Detestava ser contrariado e zelava pelos seus interesses de uma forma quase maníaca. Uma vez apanhou um sujeitinho de Lisboa debaixo de uma azinheira a tentar desempenhar o papel do Pégaso com a filha dele (a tentar cobri-la, para pôr as coisas de forma que não te faça pensar muito) e deu-lhe um tal enxerto de porrada que o rapaz, que tem hoje a minha idade, continua a coxear lá pelas calçadas de Lisboa.»
«Sim, e então?»
«Então o Tinoco detestava o teu avô e o teu avô detestava o Tinoco. Questões de terras e de política. As coisas andavam de tal maneira que o Tinoco tinha morto a tiro um cão do teu avô que lhe apareceu lá perto de casa e ainda se gabou do feito.»
«Eu sei, e então o cavalo apareceu morto e o Amílcar Tinoco, convencido do que tinha sido o meu avô a mandar matá-lo, matou o avô. Já sei isso tudo. Ouvi a história milhares de vezes. E então?»
Ignoro-o.
«Com uma forquilha espetada na barriga. Os dentes da forquilha tinham sido afiados com uma lima. Foi descoberto de manhã, já morto, mas deve ter agonizado durante horas. Ninguém conseguiu segurar o Tinoco. Pegou na pistola e partiu à procura do teu avô. Quase nem o deixou falar. Meteu-lhe uma bala na cabeça e mais duas no peito, as do peito já depois de ele estar no chão. Pelo menos morreu mais depressa do que o cavalo.»
«A tua indiferença é comovedora.»
Uma tentativa de humor. Quase sorrio. Este idiota, que se leva sempre tão a sério, escolhe este preciso momento para tentar uma piada.
«Por que é que havia de fingir tristeza?»
«Era o pai da mulher com que querias casar. O meu avô.»
«Nem mais. O único impedimento ao nosso casamento. Por que é que eu havia de estar triste?»
A compreensão chega-lhe aos olhos como uma cortina semitransparente descendo sobre uma janela. Tem uma certa piada. A compreensão devia iluminar, não escurecer.
«Não estás a falar a sério.»
«Eu lá costumo brincar. Ainda por cima, hoje.»
«Foste tu quem matou o cavalo?»
Encolho os ombros. «Nunca ouviste dizer que na guerra e no amor vale tudo? Quando o amor é a sério, claro.»
A noite de Lua Nova, em meados de Agosto, estava escura, apesar do céu estrelado, e quente, muito quente – abafada como um quarto fechado. Eu transpirava enquanto deslizava pela propriedade de Amílcar Tinoco, fazendo uma volta para não alertar os cães. Levava na mão a forquilha preparada de véspera e usá-la-ia neles, se fosse preciso, mas preferia evitar o ruído. Não sentia medo. Tinha um objectivo e sabia como o atingir. Trabalhava lá, conhecia o terreno, os edifícios, o cavalo. O que poderia correr mal? Nada. E nada correu mal. Correu tudo conforme esperara. A morte do cavalo, que tombou à segunda vez que o espetei com a forquilha e ficou a estrebuchar quase em silêncio, a reacção do Tinoco, o fim do cabrão do velho que não me deixava aproximar de Alice, a ideia generalizada de que tinha sido mesmo ele o responsável pela morte do cavalo (a descoberta da forquilha com os dentes afiados num barracão da propriedade ajudou). Tudo perfeito, então e em todos os anos que se seguiram. O único momento em que senti uma ponta de remorso foi ao ver Alice chorar a morte do pai. Mas passou-me depressa.
Ele levanta-se, ainda a segurar o copo de whisky. Parece-me que a mão lhe treme mas pode ser impressão minha. Já não tenho tantas certezas como quase toda a gente – incluindo este meu filho – julga que tenho. Mas dá-me ideia que disfarço bem.
«A mãe sabia?»
«A tua mãe nunca teve grande imaginação. Como tu.»
Levanta-se. Procura um lugar onde pousar o copo. Diz: «Vou-me embora.»
«Tem cuidado na estrada.»
«És um filho da puta.»
«Não, isso não. A tua avó só teve relações com o teu avô e desconfio até que ele nunca a viu nua.»
Ele parece querer falar mas não saber o que dizer (caralho, não é meu filho e, para mais, advogado?). Desiste. Encaminha-se para a porta. No caminho, pousa o copo junto ao televisor desligado. Pára. Roda. Pergunta: «Só mais uma coisa: valeu a pena?»
Olhamo-nos nos olhos.
«Diz-me tu. Não existirias se eu não o tivesse feito.»
Consegue empalidecer ainda mais um pouco. Abana ligeiramente a cabeça, roda outra vez e sai, deixando a porta da sala aberta.
Permaneço sentado. Ouço o ruído da porta da rua e, segundos depois, o do motor do carro. Acho que não penso em nada enquanto o som do motor e dos pneus no cascalho se desvanece. Depois disso, o silêncio parece absoluto. A casa está fria e vazia. Os animais estão calados. Nem o frigorífico, na cozinha do outro lado do corredor, emite o zumbido do costume. Fico sentado durante muito tempo. Podia ir para a cama mas ainda é cedo. De qualquer modo, Alice não vai lá estar à minha espera. Não vai queixar-se de eu demorar, nem dizer que não consegue adormecer antes de eu chegar, nem aquecer os pés nos meus, nem passar a noite toda a acordar e a virar-se na cama porque eu ressono como um motor de rega. Respondo à pergunta que o meu filho me fez: sim, valeu a pena. Até hoje – até ontem – valeu a pena. Depois, cedo ou não, levanto-me e vou para a cama.
Passaram dois meses. São sete e meia da noite. Ela chega a casa, pousa a carteira e a pasta com o computador portátil no chão da entrada, tira os sapatos e, descalça, vai à sala meter um disco no leitor de CDs. Jazz, clássica, qualquer coisa suave. Carrega no botão que liga o amplificador e tem um instante de imobilidade até ouvir o estalido indicador de que ele está pronto a funcionar. Não regula o volume. Enquanto a música arranca volta à entrada, pega nos sapatos e segue para o quarto. Troca a saia, a blusa e o casaco por uma t-shirt e umas calças de desporto. Entra na casa de banho, urina, tira a maquilhagem, lava a cara, coloca creme hidratante e anti-rugas. Regressa ao quarto. Arruma os sapatos numa caixa que mete dentro do roupeiro. A música mal se ouve. É um ruído de fundo, um murmúrio que parece chegar do apartamento de um vizinho. Ela pensa em deixar-se cair sobre a cama mas não o faz. Caminha de novo em direcção à entrada. A cada passo, a música vai ficando mais intensa. Ela passa em frente da porta da sala e segue para a cozinha, onde a intensidade é outra vez mais baixa, embora não tanto como no quarto. Tira um copo de um armário e enche-o até meio com um pacote de sumo de laranja que retira do frigorífico. Bebe. Pensa em jantar mas não tem fome. Mais tarde. Recoloca o pacote de sumo no frigorífico. A cozinha está fria, desagradável. Ela caminha até à sala. Percebe que não está muito melhor. É como se, na dúzia de horas em que esteve ausente, o apartamento tivesse adquirido as características de um espaço abandonado. Liga o aquecedor existente numa das paredes, ao lado da mesa de jantar. Senta-se no sofá, directamente em frente do televisor. Por baixo deste, numa prateleira larga, colocados lado a lado, encontram-se o leitor de CDs e o amplificador. A cerca de um metro de cada lado do televisor estão as colunas, altas e esguias. Ela pega no comando da televisão mas não carrega em qualquer botão. Deixa-se ficar a ouvir a música. Olha ligeiramente para baixo e para a direita, para o sítio onde está o amplificador. Não relembra as discussões. Ou talvez o faça, de um modo difuso. Os homens e as suas ridículas prioridades. Dois mil euros por um paralelipípedo de metal cinzento-escuro cuja função ela nem percebe bem. Amplifica o sinal que recebe do leitor, dizia ele, e envia-o para as colunas. Ela anuía com a cabeça, sem prestar verdadeira atenção. Sabia apenas que, entre leitor de CDs, amplificador e colunas ele tinha gasto mais de cinco mil euros. O amplificador havia gerado as maiores tensões porque fora a última peça, tendo substituído um outro, muito mais barato, que ele possuía desde os tempos da universidade.
Amplificador. Murmura a palavra no interior da cabeça, separando-a em duas. Amplifica dor. Agora sim, relembra as discussões. Quase sempre sem gritos, frequentemente em silêncio, discussões por gestos deliberados e expressões sofridas, numa tensão pesada e enjoativa. Um mundo de acusações e ressentimentos. Ao longo dos anos (poucos anos, na verdade) haviam-se tornado especialistas em acusações e ressentimentos. Com ou sem razão de ser, havia deixado de importar. O tempo encarregara-se de fazer diminuir a relevância daquilo que o outro efectivamente pensava e sentia. É inevitável, reflecte ela agora: de «quero conhecer-te» passamos para «já te conheço e não gosto do que vejo». E para «sei que também não gostas do que vês». Acusação e ressentimento. Os objectos haviam-se então tornado mais importantes, operando como escape e teste. Os dele: o sistema de som, a máquina fotográfica, o LCD gigante. Os dela: a roupa, os sapatos, os tratamentos de beleza. «Os meus vêem-se», dizia ele, «e tu também os utilizas.» Como o amplificador. «Também ouves música.» Ela resistira à compra do amplificador baseada numa lógica que tanto tinha toda a razão de ser como não tinha. Não precisavam dele, o outro ainda funcionava, os ganhos seriam mínimos. Mas ele não concordava e podiam comprá-lo sem dificuldades. Cansada, acabara por ceder. Acabava sempre. Mas, como noutros casos, nada ficara exactamente igual. Desde essa altura, sempre que estavam juntos na sala parecia existir um elemento acusador. Um post-it permanente. Quase uma terceira presença. E, de cada vez que punha um disco a tocar, ele parecia buscar, entre a agressividade e o receio, confirmação de que tivera razão. De que o som era muitíssimo melhor. Obviamente, ela não lha dava. Limitava-se a remeter-se ao silêncio. (Mas era um pouco melhor, na realidade.)
Agora, passados que são dois meses, ela chega a casa e liga o sistema de som. Durante o dia diz para si mesma que tem de o vender. Vender leitor de CDs, colunas e amplificador. Eliminar a sombra, o fantasma, a culpa. Mas ainda não consegue. É como se a prova da teimosia dele se tivesse transformado em algo de bom. Como se, agora, todas as recordações fossem boas ou, pelo menos, servissem um propósito. Sabe que tem de lutar. Que tem de ultrapassar esta fase. Olha para a pasta que ficou na entrada, dentro da qual está o computador portátil. Depois roda a cabeça novamente, apoia-a nas almofadas do sofá e fecha os olhos. Amanhã. Amanhã procurará um site onde se vendam coisas destas.
Estranhámos porque Júlio sempre preferira raparigas gordas. De resto, antes havíamos estranhado essa sua preferência. E, já depois de nos habituarmos, permaneceu uma réstia de incompreensão. Éramos cinco desde o primeiro ano de universidade. Júlio, um tipo alto e magro (e muito peludo; quando, nos meses de calor, estudava em calções e blusa de alças lembrava uma tarântula) atirava-se sempre a raparigas gordas. «Por que raio é que as preferes?», perguntávamos-lhe. «É como aquela teoria sobre as feias – aplicam-se mais?» Ele sorria e dizia que não. Que era mesmo preferência. Que gostava de ver «as carnes a abanar». «Vocês nem imaginam o espectáculo que é uma mulher gorda a ter um orgasmo intenso.» Não era verdade: os trejeitos de horror que fazíamos deviam-se precisamente ao facto de nos encontrarmos a imaginá-lo. Mas Júlio estava-se nas tintas para as nossas reacções. Continuou sempre a andar com raparigas nunca menos que gordinhas e quase sempre inegavelmente obesas. Lembro-me de uma – Marta? Márcia? – que ria por tudo e por nada, e cujas gorduras tremiam tanto de cada vez que ria que eu não conseguia parar de a imaginar tendo um orgasmo. Era perturbador mas, ao mesmo tempo, ligeiramente excitante: as semanas em que Júlio andou com ela constituíram provavelmente o período em que estive mais perto de lhe entender a preferência. No início, algumas raparigas estranhavam o interesse dele mas Júlio acabava por convencê-las de que as achava atraentes – porque a verdade é que achava mesmo. O desconforto delas passava então a reflectir-se na forma como lidavam connosco, os amigos de Júlio, e com as nossas companheiras. Sei que a maioria não gostava de mim, achando-me pouco simpático. Eu não desejava transmitir-lhes essa ideia mas a verdade é que me sentia sempre ligeiramente desconfortável junto delas e isso fazia-me permanecer em silêncio, com ar comprometido. No fundo, tinha medo de dizer algo que revelasse a minha incompreensão, até porque muitas, sendo raparigas divertidas e inteligentes, não o mereciam. E depois havia sempre a tal questão do orgasmo – de cada vez que alguém contava uma piada e elas riam, eu não conseguia deixar de as imaginar nuas, tendo um orgasmo, o que me fazia parar de rir imediatamente depois de começar e ficar com uma expressão ainda mais comprometida. Elas tomavam a minha reacção por sobranceria, tendo algumas chegado a comentar com Júlio que eu não possuía sentido de humor. Debati o caso com alguns dos outros e eles diziam que sentiam e pensavam o mesmo mas, na minha opinião, disfarçavam melhor.
Entretanto terminámos os cursos, deixámos a universidade e passámos a encontrar-nos menos regularmente. Alguns de nós casaram. Júlio foi a cada casamento com uma rapariga diferente, sendo que nenhuma pesava menos de setenta quilos (ao meu, levou uma sorridente mulata cabo-verdiana com ancas à Oprah Winfrey e mamas que pareciam produto da imaginação de um cartoonista delirante; ainda se fala dela em qualquer reunião da minha família ou da família da minha mulher em que o tema do nosso casamento seja abordado). É por isso compreensível que, no momento em que Júlio nos apresentou Alice (num jantar marcado por ele, obviamente para ver a nossa reacção) e nos informou de que iam casar, tenhamos ficado de queixo caído. Alice é uma das raparigas mais atraentes que já conheci mas, tendo de altura um metro e sessenta e pouco, não pesaria então mais do que cinquenta quilos. Aproveitámos uma ida dela à casa de banho para atacarmos Júlio com a questão evidente. A resposta foi tipicamente inesperada: «Isto é o casamento, não é uma coisa para durar três ou quatro meses.» Ficámos a olhar para ele com ar ainda mais espantado. Perguntei: «E?» Júlio presenteou-nos com o sorriso condescendente que aprendêramos a conhecer bem na universidade. Gozou o momento deixando passar uns segundos antes de responder: «E, assim sendo, prefiro engordá-la eu. Reparem: se já gosto dela agora, vou gostar cada vez mais à medida que for engordando.» Houve outro instante de silêncio e depois um de nós, já não sei qual, perguntou: «E se não engordar?». Júlio sorriu de novo, ainda mais abertamente. «Não há hipótese. Podem ter a certeza de que vai engordar. Em primeiro lugar, quase todas engordam; em segundo, há a questão genética (vocês não conhecem a mãe dela); e, em terceiro, eu vou encarregar-me disso. E reparem: à medida que for engordando, vai recear que eu deixe de gostar dela. E eu vou garantir-lhe, com toda a sinceridade, que gosto cada vez mais. Vamos ter uma relação em que eu vou gostar cada vez mais do corpo dela, que é exactamente o contrário do que costuma acontecer nos casamentos.»
Ficámos estupefactos mas não encontrámos buracos na lógica dele. Ainda assim, houve quem duvidasse que fosse avante. Mas foi. Casaram há perto de três anos e, apesar de ser cedo para verificar se o plano dele dá certo, continuam juntos e aparentemente felizes. Até agora, Alice engordou cinco quilos e às vezes lamenta-se do facto. Júlio beija-a ou aperta-lhe a mão e diz-lhe para não se preocupar. Depois sorri e acrescenta: «Amo-te cada vez mais e a margem de progressão continua enorme.»
As paredes são imaculadamente brancas mas uma escuridão densa domina as fotografias. Ruas, edifícios, água, céu — mesmo roupa e faces são escuras na maioria delas. Suspensas por fios quase invisíveis, iluminadas por luz difusa, as fotografias parecem buracos no tempo para um passado há muito desaparecido e, todavia, estranhamente familiar.
As portas foram abertas há poucos minutos e, de momento, parece que apenas os guardas se encontram no interior do museu. Fui dos primeiros visitantes a entrar. Não tenho plano definido, nenhuma foto que deseje especialmente ver. Passeio pelas salas vazias, parando defronte de cada imagem durante alguns segundos, um pouco mais quando me captam a atenção. A maioria mostra gente anónima, em ruas de cidade ou campos de cultivo. Há também uns quantos retratos de homens e mulheres que a passagem de várias décadas ainda não apagou totalmente da memória colectiva: actores de filmes a preto e branco, um par de escritores, meia dúzia de políticos. Reconhecer estas pessoas gera um instante de prazer, como se as fotos fizessem o espectador relembrar colegas de escola há muito perdidos de vista. E, no entanto, a satisfação que se sente ao identificar estas pessoas é insignificante quando comparada com a obtida ao apreciar a maioria das restantes. Mostram gente anónima executando as suas tarefas diárias, gozando momentos de descontracção ou posando para as fotos de forma tão consciente que só a atitude diz imenso sobre o tempo e o local em que as fotografias foram tiradas. Sem saber bem porquê, aprecio especialmente a imagem de uma rapariga gorducha rindo por trás de uma bancada de fruta. Desconhecendo a razão por que ri, é impossível não sentir ternura. Não sorrir. Não invejar o momento.
Para além das fotografias com pessoas estão ainda expostas algumas paisagens urbanas. Belas mas negras e opressivas. Como se o fotógrafo não tivesse conseguido descobrir calor sem a presença humana.
Tenho uma câmara comigo. É permitido fotografar no interior do museu, desde que não se utilize flash. Isso não me causa problemas. Não gosto de flash. Nunca inseri um na sapata da pequena Leica M6 com quinze anos de idade e milhares de fotos tiradas que trago comigo. A superfície está pejada de riscos e a tinta preta foi-lhe abandonando as arestas. Tem neste momento encaixada uma objectiva de 50 mm. Dentro de um minúsculo saco que trago pendurado no ombro direito tenho outra objectiva, de 35 mm, e dois rolos de filme: um a cores de 800 ISO, o outro a preto e branco de 400. Nesta época de fotos digitais sinto-me por vezes antiquado por entre todos os entusiastas brandindo com orgulho as suas Canons e Nikons de milhares de megapixeis. Contudo, essa sensação é rara porque já passei a idade em que sentia a cada instante ter de justificar as minhas opções perante os outros ou perante mim mesmo.
Gosto de fotografar. Como o fotógrafo cujo trabalho se encontra exposto nas paredes brancas e assépticas, gosto de fotografar pessoas. Mas nos dias que correm muita gente não gosta de ser fotografada por um estranho. Com frequência, as pessoas tornam-se agressivas ao verem uma câmara apontada para elas. E, ainda que nada digam quando a foto é tirada, há sempre a possibilidade de processos legais se a imagem for exposta ou comercializada. Devagar mas inexoravelmente, o estilo de fotografia exposto com orgulho nas paredes do museu está a desaparecer. Numa época em que em que milhões mostram as suas vidas no Facebook, em que toda a gente parece querer ser famosa, aparecer na TV, tornar-se num fenómeno do YouTube, isto confunde-me e entristece-me mas a realidade é incontornável e por isso tenho cuidado ao fotografar pessoas. No museu, introduzo o filme a cores na máquina e preparo-me para as usar apenas como silhuetas coloridas contrastando com as paredes brancas e os rectângulos escuros.
(Ainda mais confusão me faz ser cada vez mais frequente a proibição de fotografar no interior de museus, mesmo sem flash, mesmo em exposições de fotografia. O mundo anda difícil de entender. Mas não é por isso que estou a escrever este texto. Ou, em parte, talvez seja.)
Devagar, percorro todas as salas. Tiro meia dúzia de fotos sem grande convicção. A verdade é que as imagens expostas são demasiado boas para que dos meus esforços possa resultar algo que me leve a pensar ter valido a pena trazer a máquina. É então que reparo no homem. Tem pelo menos setenta e cinco anos, talvez mais, é baixo e está permanentemente inclinado para a frente, mesmo enquanto caminha. Veste um fato cinzento escuro, demasiado largo e de corte antiquado mas em perfeito estado de conservação. Traz um jornal dobrado na mão direita e um chapéu de feltro na esquerda. O cabelo grisalho é ralo e encontra-se despenteado, fios espetados no ar como que surpreendidos por estarem a descoberto. Parece deslocado neste ambiente (estaria mais enquadrado dentro de uma das fotos) mas o que verdadeiramente chama a minha atenção é o modo como se comporta. Pára a meio metro de cada fotografia durante menos de um segundo, olha-a, continua para a seguinte. Nenhuma lhe merece mais tempo, não olha em volta, não muda de expressão — no seu rosto onde não parece haver lugar para o prazer ou para a crítica. Age metodicamente, como que seguindo um plano. Ergo a máquina fotográfica e apanho-o deslocando-se entre imagens. Permaneço naquela sala mais alguns minutos enquanto ele segue para outro compartimento.
Vejo-o de novo algum tempo depois, no final da minha segunda volta pelo museu. Estou decidido a sair e, apesar de ter apreciado a exposição, um pouco desiludido por sentir não ter conseguido obter imagens que valha a pena guardar. (A sensação é inevitável, sei-o perfeitamente, por muita racionalização que faça.) O velhote está parado em frente a uma fotografia, o jornal agora entalado debaixo do braço esquerdo, o chapéu, agarrado pela aba com ambas as mãos, encostado ao peito. Aguardo durante um par de segundos que se movimente para a foto seguinte mas ele não o faz. Aquela imagem parece realmente interessá-lo, constituir o objectivo da sua visita à exposição. Aproximo-me lentamente. Reconheço a fotografia, da minha primeira passagem por aquela sala. Mostra uma rapariga de seis ou sete anos de idade, sentada num muro de pedra. Agarra uma boneca de trapos contra o peito magro e sorri para a objectiva com absoluta confiança. A foto foi tirada de um plano ligeiramente inferior (o fotógrafo ter-se-á baixado ou talvez existisse ali um lance de escadas e ele se encontrasse três ou quatro degraus mais abaixo) e, por trás da rapariga, vê-se uma linha desfocada de estreitos edifícios geminados. As fachadas são escuras, em diferentes tons de cinzento. Em grande medida por estarem fortemente desfocadas, algumas peças de roupa de tonalidade clara penduradas do lado de fora das janelas são insuficientes para aliviar a escuridão que domina o segundo plano. Toda a luz está concentrada na miúda, que enverga um vestido branco ou muito claro. Como claros são as meias rendilhadas, os sapatos — e a face. A rapariga quase salta da fotografia e é impossível não permanecer hipnotizado a olhá-la durante algum tempo.
Ela contrasta com o homem a tantos níveis (juventude versus velhice; confiança versus resignação; descontracção versus rigidez) que não resisto. Ergo a Leica, foco na miúda e disparo. O homem roda. Lágrimas descem-lhe pelas faces. Olha-me, baixa os olhos para a câmara e, sem uma palavra, vira-se de novo para a fotografia.
Permaneço imóvel durante o que me parece imenso tempo, incapaz de decidir o que fazer. Fui apanhado de surpresa e não sei se devo deixá-lo sozinho ou ficar, para pedir desculpa e justificar a minha atitude. Depois, talvez mais por mim do que por ele (por sentir que não conseguiria deixar de pensar nele e de imaginar as razões por que chora), dou um passo em frente e coloco-me a seu lado. Pergunto:
«Sente-se bem?»
Demora tanto tempo a responder que começo a duvidar que o faça. Quando fala, a voz é firme mas o tom é baixo, rouco, forçando-me a prestar atenção.
«Tinha sete anos, sabe? Ou talvez já tivesse feito oito, não sei. Depende de quando a fotografia foi tirada. A legenda só diz 1938. Ela fazia anos em Agosto. Estava sempre muito calor, o que era bom porque podíamos andar na rua a brincar. Eu fazia… faço anos em Janeiro. Chovia quase sempre e fazia frio por alturas do meu aniversário. Gostávamos mais de calor. Não gostávamos nada de estar presos dentro de casa. Às vezes, no Inverno, ficávamos todos molhados porque não resistíamos a andar na rua. Apanhámos muitas palmadas, e com um chinelo, por causa disso. Mas não conseguíamos resistir. Detestávamos estar presos dentro de casa. Então ela não suportava mesmo… O vestido é leve, devia ser Verão. Talvez fosse mesmo Agosto, aqui não diz. Só diz 1938.» Cala-se. Espero em silêncio, receoso de quebrar a ténue ligação que parece ter-se estabelecido entre nós. Receoso de que ele me peça para ir embora. «Nós não tínhamos máquina fotográfica. Naquela altura ninguém tinha. Eram caras, só para os ricos. Nem sei se ela percebeu o que o fotógrafo estava a fazer. Acho que nunca ninguém lhe tinha tirado uma fotografia. Mas ficou bem, não ficou?»
Pára novamente mas agora espera que eu fale. Que eu responda. Sinto dificuldade em fazê-lo mas sou sincero:
«Ficou linda.»
«Deve ter sido uma ocasião especial, para estar vestida assim. Quem sabe se até foi mesmo no dia dos anos… Aquela boneca, houve uma altura em que nunca a largava. Foi um problema, ter que a deixar em casa quando foi para a escola. Todas as tardes, quando voltava, ia a correr ver se a boneca estava bem. É verdade que a nossa mãe estava sempre a ameaçar que havia de deitá-la fora mas isso era só para a levar a fazer o que queria. Se deitasse a boneca fora, perdia o poder de a obrigar a fazer certas coisas. Mas ela não percebia isso (eu também não mas eu era menos esperto) e andava sempre preocupada com a boneca… Fica bem, na fotografia. Mas fá-la parecer mais nova, mais criança.» Inspira profunda mas lentamente, como se saboreasse o ar. «Eu era um ano mais novo. Para dizer a verdade, dezassete meses quase ao dia. Até aos três ou quatro anos acho que ela me via mais como um irmão da boneca do que dela. Isto depois de passar uma fase (dizem, eu não me lembro) em que sentia inveja de mim.» Sorri e no sorriso há uma censura carinhosa dirigida à irmã na foto. «Tem uma certa graça porque eu é que sentia inveja dela. Ela conseguia ser sempre o centro das atenções: era esperta, dizia coisas que as pessoas gostavam de ouvir. Eu era mais calado, mais metido comigo próprio.»
Ouço-o numa mistura de encantamento e desconforto. A história atrai-me, sinto que estou a cumprir um papel importante para ele e, todavia, não consigo deixar de me considerar um intruso — uma espécie de voyer emocional, degustando os sentimentos de um completo estranho. Então, com a precisão que usara antes — como se a exactidão das datas fosse importante para lhe manter as recordações sob controlo —, ele diz:
«Tinha doze anos quando morreu. Quase treze. Na altura ninguém me disse o que tinha causado a morte. Só vim a saber anos depois. Pneumonia. Era fraca, magrinha… Mas eu era ainda mais magro e nada me aconteceu. Os nossos pais andavam a tentar arranjar-lhe emprego desde por volta dos dez, quando ela acabou a quarta classe, mas ninguém a queria. Diziam que era muito fraca para aguentar um trabalho a sério. Tomava conta da casa desde antes dessa altura porque a nossa mãe andava doente.» Encolhe os ombros quase imperceptivelmente. «Andava sempre doente. Passava a maior parte do tempo na cama a queixar-se da nossa vida miserável. Nós os dois não a achávamos miserável. Sabíamos que não éramos ricos mas não sentíamos falta de grande coisa. Quando cresci, comecei a pensar que a nossa mãe era mesmo assim e que não tinha doença nenhuma. Estou convencido que foi assim que ela apanhou a pneumonia: a lavar o chão de joelhos e a nossa roupa no tanque. Só pode ter sido. Mas, na altura, eu nem sabia o que era pneumonia.»
Cala-se de novo. Permanecemos em silêncio durante muito tempo — minutos, talvez — mas eu já não sinto desconforto. Olhamos ambos para a fotografia na parede. Ele está provavelmente a lembrar-se de milhões de acontecimentos de há setenta e tal anos. Eu estou a pensar que, para mim, a imagem acaba de ganhar uma história. Uma história concreta, não apenas a sensação difusa que se consegue ao observar pessoas numa fotografia, seja esta recente ou antiga, tirada na cidade onde vivemos ou do outro lado do globo. De vez em quando, há fotos que sugerem histórias ainda mais definidas — verdadeiras ou falsas, não interessa — mas esta acaba de se guindar a um patamar diferente. Quase como se eu a tivesse tirado — ou vivido.
O velho diz:
«Nunca pensei que ia voltar a vê-la. Às vezes já tinha problemas em lembrar-me dela. Do aspecto que ela tinha. Isso deixava-me tão triste. E irritado.»
«Não sabia que existia uma fotografia?»
Abana a cabeça, devagar.
«Até ontem, a única imagem dela era na minha cabeça.» Tira o jornal de debaixo do braço. Segurando o chapéu pela aba com a mão direita, abre-o numa das últimas folhas. Mostra-me a notícia. O título anuncia a realização de uma exposição de fotografias de um dos maiores fotógrafos portugueses do século XX, agora que passam vinte e cinco anos sobre a sua morte. A foto da miúda sentada no muro de pedra com a boneca de trapos nos braços ilustra a notícia. «Nem imagina o que senti. Foi como se tudo tivesse parado. Não conseguia acreditar. Mas», sorri novamente para a irmã enquanto as lágrimas lhe deslizam outra vez pelas faces, «afinal há uma fotografia dela.»
Pago, recolho o invólucro com as fotografias de cima do balcão e procuro um banco onde me sentar. Acabo ao lado de uma mulher vestida com um fato de corte austero que balança um carrinho de bebé enquanto vigia meia dúzia de sacos de compras pousados no chão. Deita-me um olhar rápido e depois ignora-me. Tiro as fotos do invólucro e passo-as rapidamente até chegar à do velho em frente da imagem da irmã. De súbito, o ruído do centro comercial parece diminuir.
Apanhei-o praticamente de costas. A luz fraca do museu obrigou-me a usar uma abertura larga e ele encontra-se ligeiramente desfocado. A face quase não se vê. Mas o mais importante está ali. A rapariga, luminosa, etérea — um fantasma benigno e deslumbrante —, sorri para o velho com a alegria do reencontro.
Tecnicamente, não é uma grande fotografia. Encontra-se um tudo-nada subexposta, o enquadramento não é perfeito e a expressão dele mal se distingue. A focagem é o único aspecto técnico que me agrada: realça a miúda e aumenta o efeito de profundidade. Já a circunstância de ser uma imagem a cores não ajuda: distrai a atenção do essencial. Normalmente, considerá-la-ia banal, pouco acima de fracassada. Mas não hoje.
Regresso à loja e encomendo uma cópia. Fiquei com a morada do velho. Terá uma foto da irmã.
Tudo na boca dela – os lábios, a língua, os dentes, o sabor – lhe parece estranho e ameaçador. Repugnante, até. Há um instante em que julga ser incapaz de prosseguir com aquilo, em que sente ser mais fácil parar, empurrá-la, afastar aquele corpo com contornos, odores e comportamento estranhos. Mas o instante passa e ele está a corresponder ao beijo e a meter as mãos por baixo da blusa dela e a levantar-lhe a saia e a empurrá-la para o sofá que existe num dos lados do gabinete e a fazer sexo com ela e a pensar como é curioso que uma vagina perfeitamente normal possa parecer tão estranha, tão diferente e, um pouco mais tarde, que há muito tempo não tinha um orgasmo assim e que a culpa resulta ao mesmo tempo num factor de intensificação e de perturbação da experiência. E logo depois diz-se: foda-se, pára de pensar.
Afasta-se. Limpa-se com uma mão-cheia de lenços de papel. Compõe a roupa. Só então a olha. Ainda está a arranjar-se. Durante uns segundos, ele aprecia-lhe verdadeiramente as mamas e as coxas pela primeira vez mas a seguir pensa: e agora? Não sabe o que dizer. Não sabe se deve falar. Na verdade, não sabe o que foi aquilo. Trabalha com ela há anos mas conhece-a mal. Ao contrário dele, não é casada e isso assusta-o. Faz com que nada tenha a perder. Ele sabe que Marta não perdoaria a traição. É-lhe difícil pensar em Marta. Quase como se de repente também ela se houvesse transformado numa desconhecida. Ele e Marta não fazem sexo há quase dois meses e as coisas não andam propriamente bem entre eles. Ainda assim, ela não o perdoaria. Como qualquer mulher (como qualquer pessoa), Marta tem uma faceta de folia e inconsequência, dispara piadas sarcásticas quando o vê olhar para outras mulheres, faz comentários provocadores sobre alguns homens, mas é afinal muito séria em relação a certas coisas. Ou já não? Será possível que tenha mudado? Que isso fosse antes do casamento e logo depois deste? Quando pareciam não conseguir estar separados. Quando nunca precisavam de repetir frases para o outro as compreender. Quando pequenos gestos geravam emoções muito para além do razoável. Ele lembra-se de achar piada ao tempo que Marta demorava a experimentar roupa em frente ao espelho do quarto. Agora, isso irrita-o. Lembra-se de como ela se deixava cair de costas na cama, erguia os pés e pedia para ele lhe tirar os sapatos. Entretanto, deixou de o fazer. Lembra-se de como não havia discussões sobre dinheiro, visitas à família ou o que fazer no fim-de-semana. Actualmente, são regulares. É como se ele e Marta estivessem a desaprender aquilo de que o outro gosta. Ou – talvez seja mais isso – como se cada um deles recusasse aprender a lidar com as alterações de gosto do outro. Como se estas também constituíssem traições. Seja a verdade qual for, as coisas já não são iguais. Mas ainda assim ele nunca admitira a possibilidade de se envolver numa relação extraconjugal. Acha outras mulheres atraentes, claro, como Marta acha alguns homens. Mas sempre fora rápido a classificar qualquer fantasia como apenas isso: uma fantasia. Ainda por cima, uma mulher, especialmente uma mulher que não encara o sexo como negócio, traz problemas. Emoções, desejos, expectativas. Aquela mulher que acaba de se vestir à frente dele é um ser tão completo quanto ele e Marta. É uma pessoa. Uma pessoa que não entende bem. Que não quer magoar. Que lhe pode destruir a vida (ela está a dizer que ele lhe descoseu a blusa e ele está a pensar que ela tem o poder de lhe destruir a vida). Ele já tivera fantasias com ela, já se perguntara como seria nua, mas nunca verdadeiramente achara possível (bom, possível talvez; digamos exequível ou talvez desejável) que a relação deles ultrapassasse o plano profissional. Ele olha para aquela mulher e pensa que ela ficou de repente muito mais perto dele mas também muito mais longe. Antes ele conseguia prever o seu comportamento. Agora deixou de ser capaz de o fazer.
Ela aproxima-se, sorri, toca-lhe suavemente no braço esquerdo. Diz: «Não te preocupes. Fiz isto com perfeita consciência de que não passa daqui. Não estou à espera de nada.» É como se lhe adivinhasse os pensamentos mas ele não fica sossegado. A situação alterou-se. Agora estão conscientes de que podem foder um com o outro. Já não é apenas uma fantasia. Já o fizeram uma vez. Encontrar-se-ão frente a frente quase todos os dias e aquele acto estará ali, entre eles. Como evitar que seja um embaraço ou – o que lhe parece mais provável – como evitar que ocorra novamente e que, mais tarde ou mais cedo, acabe por ter consequências? Que ela – ou ele; será possível? – crie expectativas, que o sexo se lhes veja na face? Que Marta lho veja na face.
Tenta sorrir, especado em frente dela. Repara no pequeno sinal que ela tem junto ao lóbulo da orelha esquerda. Sabe agora que tem outro, quase exactamente igual, na face interior da coxa direita. Por que é que sabê-lo altera tanto as coisas? Pensa que deve retribuir o toque dela e responder ao que ela disse mas não o faz. É quase como se precisasse de lhe ser novamente apresentado. «Temos de ir», diz, e saem do gabinete e atravessam as áreas de open space desertas (o restante pessoal da empresa foi para casa há mais de uma hora) e durante todo o percurso até à rua, incluindo a parte em que descem no elevador, mantêm-se sempre a pelo menos um palmo de distância um do outro.
No quarto, ele examina o fato antes de o pendurar. Não detecta qualquer mancha. Roda em frente do espelho várias vezes até ficar convencido de que nos boxers também não há nada. Puxa o elástico e olha para o pénis, de alguma forma receoso de que esteja diferente. Parece-lhe igual. Não consegue evitar uma ligeira desilusão. Veste as calças de um fato de desporto e está a enfiar a cabeça numa t-shirt quando ouve o som da porta da rua sendo aberta e depois fechada. Pára um instante e a seguir acaba de vestir a t-shirt. Enquanto a ajusta ao corpo verifica-se no espelho. Esboça um sorriso e apaga-o de imediato. Demasiado falso. Mas continua a vê-lo, colado ao seu rosto, quando Marta entra. Trocam um beijo rápido. Ele atira um olhar rápido ao espelho. Não fica certo do que vê. Ela diz: «Estou estoirada, tive um dia horrível.» Deixa-se cair na cama. Permanece imóvel durante um par de segundos, com os olhos fechados. Ele observa-a através do espelho. Veste um fato preto constituído por saia e casaco, uma blusa branca, calça sapatos de salto alto. Tem um aspecto profissional, mesmo esparramada assim sobre a cama. Elegante. Parece segura de si mesma. Ele procura lembrar-se se ela já era assim antes. Tenta perceber se mudou com o acto dele. Se, agora, a vê de forma diferente. Marta abre os olhos. O olhar deles encontra-se no espelho e ele reprime um ligeiro sobressalto. Ela tem um sorriso que se transforma num esgar de cansaço. Ergue as pernas. Pede: «Tira-me os sapatos.»
Upa! Go.
O senhor Lima mora no quinto andar. Os vidros das janelas estão sujos. Do lado de fora da janela da sala um pombo levanta voo, esbaforido. O senhor Lima tem setenta e oito anos e, apesar de estar praticamente cego e surdo, não sai da frente da televisão. São sete e meia da tarde e lá está ele, assistindo ao Preço Certo. No fundo, é o programa adequado para o senhor Lima. Como o Fernando Mendes quase grita e, apesar de baixo, é bastante volumoso, o senhor Lima consegue facilmente perceber quando ele se encontra no ecrã. O senhor Lima está sozinho. A filha que o visitava de vez em quando foi para a Suiça embalar vegetais pelo triplo do que ganhava cá e, segundo se diz no prédio, o Sr. Lima não tem mais familiares vivos. Uma assistente social traz-lhe comida e uma senhora limpa-lhe a casa todas as semanas mas raramente qualquer outra pessoa sobe para falar com ele. Por seu turno, o senhor Lima também evita sair do apartamento. Põe o volume da televisão no máximo e fala com ela.
Considerando o barulho do televisor do senhor Lima, é uma sorte que o quarto andar esteja vago. O casal que lá vivia mudou-se há três meses. Terá arranjado melhor, ou pelo menos mais silencioso, ter-se-á separado e ido cada um para seu lado, terá desistido da cidade e regressado à vila de onde viera. As pessoas no prédio não conhecem a justificação porque mal tiveram tempo de conhecer os elementos do casal: um rapaz e uma rapariga de vinte e tal anos, com aspecto desmazelado, que pareciam estar sempre a fumar. Ocuparam o apartamento apenas durante oito meses e, embora saíssem e entrassem com frequência, não se punham com conversas quando se cruzavam com outros residentes. Bom dia e boa tarde e pouco mais. Apesar de nunca terem incomodado ninguém (nem sequer faziam festas em casa, ao contrário de outros ocupantes do quarto andar no passado), quase toda a gente no prédio ficou satisfeita quando eles se foram embora. Toda a gente menos Mónica, os estudantes do terceiro andar e o Sr. Lima, para quem eles lá estarem ou não é indiferente. (Enfim, isto não será inteiramente verdade: um dos estudantes teve uma certa pena, porque chegara a alimentar fantasias com a rapariga depois de uma noite a ouvir gritar durante um acto sexual que parecera interminável.)
Na sala do apartamento do terceiro andar também não se vê ninguém. Mas aqui, como já foi referido, moram estudantes universitários. Dois estudantes, para ser exacto. Um chama-se Pedro, nasceu em Baião e encontra-se neste momento na fila para uma das cantinas universitárias. Depois do jantar, tenciona ir ao cinema com a actual namorada. Ainda não sabe que filme ela escolherá mas ele está preparado para aguentar uma comédia romântica em troca de sexo. O outro estudante chama-se Rui. Nasceu em Vouzela, onde os pais e a irmã continuam a residir, e também não está em casa. Rui não tem namorada. Há meses que está apaixonado por Mónica, que vive no segundo andar, mas ela não lhe liga. Rui viu-a recentemente com um rapaz do seu curso — um tipo alto e atlético, que conduz um Honda Civic preto com jantes e ponteira de escape cromadas e dá sempre uma aceleradela antes de desligar o motor. Como os estudos também não correm bem a Rui e o pai foi despedido da fábrica onde trabalhava há quase vinte anos, circunstância que pode obrigar Rui a abandonar a universidade e a irmã, aluna brilhante, a nunca chegar entrar numa, ele anda deprimido e já nem tenta disfarçar. Mas ninguém lhe presta atenção. Nem sequer Pedro que, obtendo boas notas sem esforço aparente, nunca parecendo ter falta de dinheiro e sendo capaz de levar raparigas para a cama menos de cinco minutos depois de as conhecer, tem mais em que pensar do que nas dificuldades do colega de apartamento.
A mãe de Mónica está a aspirar o chão da sala. Aspirar a sala pode ser algo estranho de se fazer à hora do jantar mas a estranheza diminui se for a mãe de Mónica a fazê-lo. É uma mulher roliça, cujo maior prazer é disparar ordens e frases assassinas. Porém, negaria se lhe dissessem que tira prazer disso. Muito pelo contrário, garantiria, seria uma mulher feliz se pudesse não ter de andar sempre preocupada com as outras pessoas. Tem uma frutaria por onde passaram dezenas de empregados ao longo dos anos. A funcionária actual aguenta há quase três. Trata-se de um recorde que se deve ao facto de a rapariga ser praticamente surda. Como no caso do Sr. Lima e do Fernando Mendes, é uma combinação ideal: a mãe de Mónica insulta-a mas ela não reage (em parte, porque depressa aprendeu que é melhor assim) e, por ser surda, «coitada», a mãe de Mónica não a despede (no fundo, não é má pessoa). A mãe de Mónica não gosta de ver Rui, o estudante do piso de cima, andar atrás da filha. (Toda a gente no prédio está a par dos sentimentos de Rui, excepto – talvez – o senhor Lima.) A mãe de Mónica considera Rui um rapaz estranho, muito metido consigo próprio. Ainda por cima, nas poucas conversas que teve com ele, ficou a saber que estuda letras e que os pais são pobres. Mónica é demasiado nova e merece melhor, pensa ela – e também o diz. Rui ainda teve esperanças de que o pai de Mónica gostasse dele mas o pai de Mónica não se dá ao trabalho de arranjar opiniões quando a mulher já o fez. Claro que Rui sabe que o mais importante seria agradar à própria Mónica. Mas também aí falhou. Mónica é simpática com ele mas afastou-o de todas as vezes que ele tentou aproximar-se. Rui não percebe como pode ela gostar do idiota do Civic. Pergunta-se se será por causa do Civic mas depois recrimina-se – Mónica não é esse género de rapariga. A mãe de Mónica empurra o tubo do aspirador para a frente e para trás com um ar de cansaço e irritação. Tudo normal, portanto. E quanto à própria Mónica, não se encontra à vista, o que é sempre pena porque Mónica é uma rapariga bastante atraente.
Cá está ela, afinal, no primeiro andar, provavelmente ajudando a D. Alice que, além de vizinha, é tia de Mónica. Não sendo uma mulher feia, D. Alice nunca casou. Dizem que deixou de confiar nos homens quando, há mais duas décadas, se apaixonou por um que acabou por lhe roubar dinheiro e fugir para o estrangeiro. Mas D. Alice não se encontra na sala; estará na cozinha ou na casa de banho ou talvez no quarto. Mónica sim, está na sala. É alta, com mais de um metro e setenta. Tem cabelo castanho-escuro, comprido e quase liso. O rosto é largo, com um formato ligeiramente quadrado. Os olhos são grandes e o nariz pequeno. É um rosto que Rui, o estudante do terceiro andar, acha exótico e inebriante. Mas ele não acha isso só do rosto, claro. Da ponta da cabeça à ponta dos pés, Mónica é a rapariga mais atraente que ele alguma vez beijou. Ah sim, chegaram a beijar-se. Rui tomara a iniciativa e por instantes parecera que tudo daria certo, que ela corresponderia, que as fantasias dele estavam prestes a concretizar-se. Mas, de repente, Mónica afastara a cabeça e depois, com ambas as mãos, tentara afastar todo o corpo. Nessa altura Rui cometera um erro monumental. Prendera-a nos braços, tentara beijá-la de novo. Houve mais um instante em que tudo pareceu possível mas Rui sabia agora que tal se devera apenas à surpresa que Mónica sentira – surpresa não por ele a desejar mas por ser capaz de usar a força. Mónica empurrara-o violentamente, ele tentara mantê-la agarrada, assustado com a raiva que lhe via nos olhos, e ela dera-lhe uma bofetada. Isso parara tudo, fazendo cair sobre Rui a consciência não só da estupidez do acto que cometera mas também de quão ridícula toda a cena era – como se pertencesse a uma telenovela ou a um mau filme. Decorreram entretanto dois dias e Rui ainda não teve coragem de encarar Mónica novamente. De resto, para que o faria? Ficou claro que nada entre eles poderá alguma vez dar certo. Ela prefere o tipo do Honda. Mónica está de pé no meio da sala, com um pedaço de papel na mão. Provavelmente uma lista das compras que fará para a tia no dia seguinte, antes de regressar a casa. D. Alice deve ter ido buscar dinheiro para lhe dar. Subitamente, Mónica ergue os olhos para a janela e o seu rosto – belíssimo – mostra surpresa e susto. O que, de certa maneira, não deixa de constituir um bom sinal.
O rés-do-chão é ocupado pela senhora Fátima. É gorda e, desde a morte do marido, que a tratava abaixo de cão, vive com cinco gatos, todos tão gordos quanto ela. Dois estão deitados no parapeito da janela da sala. De repente, apesar da gordura, saltam como se tivessem molas sob o corpo. É incrível como ainda o conseguem fazer. Mas o rés-do-chão passa depressa.
Splat!
O último som que Rui ouve, enquanto se esmaga contra o passeio, é o grito agudo de uma mulher.