Genial compositor de música contemporânea, atingiu a fama através de obras como a Sinfonia Contrapuntística, em que metade dos trezentos executantes entrechocava garrafas de Coca-Cola enquanto, de forma assíncrona, a outra metade fazia o mesmo com latas de Pepsi, a cantata Sons da Exclusão, para soprano gaga, tenor fanhoso, barítono com dislalia, um coro de mudos, outro de pessoas afectadas por síndrome de tourette e uma orquestra de deficientes motores, e a sequência Ruídos Corporais, que inclui peças tão diversas como a Sinfonia de Tosses (composta após a morte do pai com tuberculose), o Concerto para Pigarreio e Três Espirros (Um dos Quais Contido) e o divertimento Arrotos e Manifestações de Gases. Maníaco da perfeição, discordava frequentemente da forma como as suas obras eram apresentadas, tendo mantido polémicas com vários maestros. Gostava de marcar presença nos concertos. Detestava ouvir o público tossir ou arrastar os pés.
Ele era médico legista e ela não conseguia deixar de pensar nisso enquanto faziam amor. Ele tocava-lhe de uma forma tão precisa, tão leve, tão cirúrgica que ela se sentia mais exposta do que alguma vez no passado. Sabia que ele conhecia em pormenor todos os músculos, todos os tendões, todas as artérias e todas as veias do seu corpo. Sentia-lhe os dedos deslizando pelos braços, em redor do peito, através do abdómen e não conseguia evitar um arrepio de temor. Como se, a qualquer instante, com um gesto suave e preciso, usando uma unha como bisturi, ele pudesse abrir-lhe um golpe na carne e entrar-lhe verdadeiramente no corpo. Estava consciente de que era uma estupidez pensar tal coisa: ele era amável, atencioso, até um pouco tímido (e trazia sempre as unhas bem curtas). Mas não conseguia evitá-lo. Na realidade, era forçada a admitir que não desejava evitá-lo. Que procurava a sensação. Que a transformara numa parte essencial do acto amoroso. As capacidades dele para ler o corpo humano, para identificar zonas frágeis, para o desmembrar, se fosse preciso, haviam-se tornado num elemento de excitação adicional.
Meses depois do início da relação abordou finalmente o assunto. Perguntou-lhe: «O meu corpo é muito diferente dos corpos com que lidas no trabalho?» Os olhos dele arregalaram-se de surpresa. Ela ponderou se teria sido a primeira mulher a colocar-lhe a pergunta. Depois pensou que talvez a surpresa dele resultasse não de ser a primeira vez que lhe faziam a pergunta mas de, tanto tempo decorrido após o início da relação, já não a esperar. Antes de ele responder, acrescentou: «O que quero dizer é: quando acaricias o meu corpo notas as semelhanças com os corpos que autopsias? No fundo, é só carne, não é?» As palavras soaram-lhe inadequadas e brutais e ela arrependeu-se de ter iniciado aquele diálogo. Mas ele recuperara a expressão de beatitude. Quase sorria, na verdade. Disse: «Não, não noto as semelhanças. Noto as diferenças.»
Foi nesse momento que a relação deles entrou numa nova fase.
O moralista disléxico chamava-se Erasmo Coina de Carvalho e não conseguia evitar enganar-se ao dizer ou escrever o nome.
Sempre o achei um tipo estranho. Na universidade tinha um quarto na mesma casa que eu mas era uma espécie de roda sobresselente no grupo em que eu me inseria. Teve um par de relações que não duraram. Fartava-se de falar no cão que os pais lhe haviam oferecido quando fizera doze anos – o canídeo mais inteligente do mundo, a acreditar nos relatos que nos impingia.
Depois da universidade passei a vê-lo mais raramente. Ainda assim, morando na mesma cidade, encontramo-nos de vez em quando. Casou há menos de um ano. Contou-me que conheceu a mulher, Paula, quando o cão dele, filho do que mencionava na universidade, se interessou pela cadela dela. Paula era simpática mas tão estranha quanto ele. Parecia viver para a cadela. Na realidade, apesar de casados, ambos pareciam continuar a viver para os respectivos cães. Demorei algum tempo a perceber que apenas o entusiasmo dos cães um pelo outro os unira. Fora uma espécie de osmose. A atracção dos cães fizera com que se sentissem atraídos. Percebê-los excitados provocara a sua própria excitação. Observá-los a ter relações sexuais levara-os a tomar consciência de que também o desejavam fazer. Evidentemente, durou pouco. O cão dele engravidou uma cadela do prédio em frente e Paula reagiu mal. Disse-lhe: «Isto já não faz sentido.» Não constituiu um grande choque para ele. No fundo, estava de acordo.
Agora encontra-se todos os dias com o dono da cadela (passam imenso tempo a debater com quantos cachorrinhos cada um ficará e o que fazer com os restantes) e começa a sentir-se atraído por ele. «A verdade é que Paula nunca me completou. Bom, talvez no início. Mas depois… Sabes, começo seriamente a pensar que sou gay.»
Obsessivo, sabia tudo sobre o amor. Lera imenso acerca do assunto. Vira centenas de filmes. Escrutinara a letra de inúmeras canções. Apesar disso, as relações nunca lhe duravam. Pensara e voltara a pensar e chegara a uma conclusão: a probabilidade de encontrar uma mulher com o mesmo grau de compromisso com a paixão enquanto objectivo de vida que ele tinha era infinitesimal. Inferior a ganhar o euromilhões. Provou-o começando a jogar no euromilhões e obtendo o primeiro prémio três anos depois, após mais um par de relações falhadas. Mas provou-o à justa, uma vez que logo a seguir começou finalmente a encontrar mulheres que pareciam dispostas a tudo para ficar junto dele para sempre.
Veste uma t-shirt preta com a frase Don't Give Up estampada na parte frontal. As letras, douradas, constituídas por pontos individuais, brilham ao serem atingidas pelas luzes do bar quando ela se move. Penso em Kate Bush mas apenas durante um instante. Aproximo-me. Meto conversa. Não se mostra interessada. Insisto. Adaptando uma frase de uma das melhores letras que Bono alguma vez escreveu, digo-lhe: «You lips say one thing, your t-shirt something else.» Sorri. Murmura: «A t-shirt é emprestada.» Mas deixa-me pagar-lhe uma bebida.
Três horas mais tarde, no meu quarto, junto à cama, tento despir-lhe a t-shirt mas ela impede-me. Aceita que lhe tire o soutien e o resto da roupa mas não a t-shirt. É-me indiferente. Tombamos na cama.
Minutos depois, estendidos de costas, recuperamos o fôlego. Ela puxa a t-shirt para baixo, cobrindo ancas e sexo, e diz: «Sabes, a frase?» Rodo a cabeça e releio-a. «Sim?» Larga a t-shirt, cujo extremo inferior sobe até acima do umbigo. «Afinal, é pena que nem sempre seja levada a sério.»
O meu avô Carlos era viciado em automedicação. Experimentava tudo ao mais leve sintoma. Ultimamente, por causa das hemorróidas – reais, creio –, andava a tomar Trifene 200. Dizia que os resultados eram espectaculares. O meu pai murmurava: «Só espero que aquilo não tenha efeitos esquisitos. Que não lhe faça crescer as mamas ou coisa parecida.» A minha mãe encolhia os ombros, suspirava e dizia: «É um analgésico, não lhe faz mal nenhum.» Mas o meu pai não ficava sossegado. «Por alguma razão o publicitam para o que publicitam», resmungava. No fundo, ainda que recusasse admiti-lo, o medo dele era que, em resultado do Trifene 200 e aos setenta e seis anos de idade, depois de uma vida de facadas no matrimónio (que o meu pai não conseguia deixar de invejar), o meu avô se tornasse subitamente homossexual.
Era francesa mas gostava tanto de beber chá que todos lhe diziam mais parecer inglesa. Tendo certamente ouvido o comentário milhares de vezes, ela sorria sempre. Falava com um sotaque que ele achava inebriante, misturando palavras em português com palavras em francês e fazendo pausas inesperadas, como se seguisse regras muito próprias acerca dos sítios onde encaixar as vírgulas. Quando, pela hora do lanche, sentada à frente dele, dizia, com um suspiro de prazer: «Eu amo thé», ele ficava sempre um instante em suspenso, tentando perceber exactamente o sentido das suas palavras.
O casal que arrendara o apartamento era simpático mas não se assustava com facilidade. A rapariga, faladora e de cabelo comprido, e o rapaz, alto e muito magro, riam-se sempre que objectos caíam sem motivo aparente, culpavam o vento quando, apesar de nenhuma janela se encontrar aberta, as portas se fechavam com estrondo, atribuíam, com um encolher de ombros e um trejeito de resignação, barulhos esquisitos nas paredes e no tecto à acção de ratos ou dos vizinhos. Mas isso não era o pior. O pior era que passavam horas a ver filmes de terror num televisor enorme. Ele tentava assistir, pairando atrás do sofá, mas nem sempre conseguia porque alguns eram demasiado assustadores. Detestava ficar paralisado de medo enquanto eles reagiam com gritos, risos e abraços aos actos de um louco homicida brandindo uma motosserra. Mas era pior quando os filmes metiam fantasmas. Não o assustavam tanto como os de mortos-vivos, lobisomens ou assassinos sádicos mas deprimiam-no como nada mais o conseguia fazer. Não há pior sensação para um fantasma do que perceber-se um cliché.