Em parte, também mato pessoas porque não posso – nem quero – fazer outras coisas que me permitiriam desafiar os limites do que é considerado normal. Abomino a conformidade mas também o espalhafato e a falta de inteligência. Se sabotasse o resultado do meu trabalho seria despedido após umas quantas advertências. Se me juntasse a uma claque de futebol para poder usar de violência de forma mais ou menos irrestrita teria de suportar a companhia de energúmenos – e de fingir ser um deles. Roubar não é opção – não desejo fazer algo apenas por ser ilegal. Na verdade, todos estes actos são ainda normais. Ninguém estranha que se torpedeie o trabalho ou que se roubem objectos. Ninguém estranha, ainda que procure convencer-se do contrário, que se exorcizem tensões destruindo o se apanha à frente. Não – já o escrevi: se um dia for apanhado, ninguém poderá dizer que fiz o que fiz por qualquer razão normal, mesquinha, compreensível. Hão-de coçar a cabeça, tentando perceber. E falharão, claro, porque as tentativas permanecerão tímidas, confinadas ao lugar-comum, balizadas pelo medo de entrar em áreas de onde talvez não se saia com facilidade. As pessoas não estão interessadas em chegar à verdade. Ouço-as até perguntando: que verdade? E sinto-me forçado a sorrir.
As pessoas horrorizam-se com o particular, com o específico. Se enviasse para os jornais estas considerações, poucas pessoas as leriam. Talvez nem fossem publicadas. Mas se descrevesse uma morte concreta, fornecendo pormenores sobre como tudo acontecera (as súplicas, os gritos, os familiares ou o Deus por quem a vítima – que termo impróprio – havia clamado, o pequeno sinal que tinha sob o seio esquerdo e o prazer que me dera cortá-lo, logo antes de lhe fazer o mesmo ao mamilo), nesse caso as pessoas leriam com fascínio. Duzentas mil mortes num tsunami no Extremo Oriente seriam nada sem imagens. Uma morte, com as imagens certas, ou até mesmo só com as palavras certas, causa mais horror. Imagino objecções: o tsunami tem causas naturais, não há maldade envolvida. Bom, talvez (a menos que se acredite em Deus, caso em que todo o horror devia ser dirigido para Ele, porque afinal mata muito mais e de formas mais variadas e criativas do que eu alguma vez terei hipótese de fazer). Mas uma pessoa que fica entalada sob os escombros de uma casa, que tem as pernas esmagadas e demora dias a morrer, passa por níveis de sofrimento tão intensos e bastante mais prolongados do que aqueles que eu tenho possibilidade de infligir (não por falta de esforço da minha parte, note-se). E nem sequer chega a ver o rosto do responsável pela sua morte. Eu mostro-me. As minhas vítimas (que termo irritante) vêem-me. Sabem sempre quem as mata. Como escrevi antes, as mais inteligentes chegam a perceber por que morrem.
Mas é possível que ainda venha a descrever alguns casos. Afinal, dizem que recordar é viver. Como, de resto, matar também o é. DeLillo escreveu-o em Ruído Branco (sim, gosto de ler): matar é uma forma de afastar o medo da morte. Quando é outro que morre, comprova-se a própria vida. Inteligente, apesar de ligeiramente presunçoso. E um tudo-nada teórico. Mas que experiência prática tem DeLillo?
Gostava de a ter matado. Teria sido preferível. Não precisaria agora de sentir, para além da dor da perda, o ferrão da cobardia. Ela ter-me-ia agradecido. Não de viva voz, porque no último par de meses já não conseguia falar, mas com um olhar. O último. Devia tê-lo feito logo que se tornou demasiado doloroso para ambos. Quando perdeu a capacidade de falar, talvez. De que serve um corpo que não se consegue exprimir a não ser pelo olhar? Fechado, contra vontade, em si mesmo. Sim, esse teria sido um bom momento para o fazer. Por que não mo pediu, antes, enquanto podia? Não por motivos religiosos, certamente, que nem naquela fase terminal ela acreditava em Deus e muito menos acreditava que a vida deve ser sempre suportada até ao seu fim natural. Só pode ter sido para me poupar. Para não colocar o peso da sua morte sobre os meus ombros – mais uma razão para eu agora sentir culpa.
Mas na altura eu amava-a. E ainda não matava ninguém.
Não duvido que as pessoas «normais» me consideram um monstro. Bom, na realidade não é bem assim. As pessoas «normais» que me conhecem (e «conhecer» também é o termo errado, claro) acham-me um tipo normal, provavelmente até mais simpático do que a maioria. Mas considerar-me-iam um monstro se soubessem o que faço a outras pessoas e, especialmente, o que lhes poderia ter feito a elas (uso o passado porque, obviamente, só o saberiam se eu tivesse sido apanhado). Isso não me incomoda. Não vou pôr-me aqui a discorrer sobre como, no fundo, as pessoas «normais» estão longe de serem assim tão normais nem sobre como as noções que têm na cabeça são preconcebidas, clichés absolutos implantados por pais e colegas, programas televisivos e jornais tablóides, mas sou incapaz de resistir a duas ou três linhas sobre o assunto. A «normalidade» é uma defesa contra o inesperado, contra dúvidas e medos e desejos inconfessáveis. O receio de sair da «normalidade» faz com que, mesmo entre «amigos» (a verdade exige tantas aspas…), raramente se discutam assuntos mais profundos do que o estado do tempo, a mais recente graça dos filhos ou a última polémica no futebol. Esta «normalidade» – que deveria antes chamar-se superficialidade – é alimentada pelos meios de comunicação social, necessitados dela para potenciar o efeito de choque nos momentos em que é quebrada. Notícia de Última Hora – Homem mata mulher e filhos à facada. E os telespectadores arrepiam-se e abanam a cabeça e murmuram «Como é possível?» e nem se atrevem a enfrentar a hipótese de que estranho é não acontecer mais vezes. As pessoas «normais» são pessoas «anormais» fortemente embrulhadas em insegurança e convenções. Tão embrulhadas que acabam por funcionar apenas ao nível do invólucro. Mas chega. Não quero ser presunçoso. Pelo contrário: gostaria até de salientar que matar não faz com que me sinta superior a essas pessoas «normais» – aos meus familiares, aos meus colegas de emprego. Não em termos absolutos, pelo menos. Quanto mais não seja por uma razão que já admiti: não gosto assim tanto de mim. Desprezo as pessoas «normais», é certo, mas também me desprezo com frequência, embora por uma razão ligeiramente diferente: desprezo-as por fecharem os olhos, desprezo-me por, sabendo o que sei, continuar a fingir. Não, matar não me faz sentir superior; matar faz-me sentir diferente. Diferente delas e de todas as outras, incluindo daquelas que fogem à normalidade mais comezinha lendo Ovídio ou biografias de Churchill, empreendendo viagens de auto-descoberta pela Patagónia, pesquisando curas para o cancro ou sendo declaradas oficialmente loucas. Em maior ou menor grau, tudo isto é normal. Não sacode os alicerces sobre os quais se constrói o mito do que é ser humano. Matar sem motivo aparente, sim. É diferente. É ter tomates para arriscar o impensável. É abandonar a espécie e entrar noutra categoria taxonómica. Sim, a fuga à normalidade é justificação mais do que suficiente.
Orgulho, apesar de tudo. Seja.
Tivemos uma conversa muito estimulante antes de o matar. É curioso como as pessoas ficam mais interessantes quando se sentem à beira da morte e têm de lutar pela vida. Têm de justificar a vida. Parecem raciocinar mais depressa, ter pensamentos mais profundos, ganhar dez ou vinte pontos de QI. Isto se lhes for dada oportunidade para falarem, claro. Mas não concebo as coisas de outra maneira. É preciso deixá-las falar. Permitir-lhes reavaliar a vida. Constatar como foi afinal tão melhor do que pensavam. Há egoísmo aqui, eu sei. Torna-as menos irrelevantes. Permite-me matar pessoas que, afinal, não eram uma completa nulidade. Mas também me faz começar a gostar delas. De certa forma, aprendo a gostar delas ao mesmo tempo que elas mesmas o fazem. Trata-se de uma aprendizagem em conjunto. Quando finalmente as mato, é frequente sentir que teria gostado de as ter como amigas. Mas não me permito ilusões. Não duraria. E há outro problema: no fundo, tirando uma ou outra que mato por merecerem ser mortas (mas não gosto de o fazer; sinto que isso me rebaixa, que me transforma numa personagem de série televisiva), mato-as precisamente por gostar delas. Deve ser bom morrer num instante de auto-apreciação. Sair em grande, redimido com o mundo e com as próprias falhas, não ter de mergulhar outra vez numa existência deprimente. Sim, mato-as por gostar delas. E talvez isto explique por que não me mato. Não consigo iludir-me durante períodos suficientemente longos para achar digno fazê-lo. Aliás, se um dia o fizer, será logo depois de matar alguém. Falta de originalidade, eu sei. Mas é o único momento em que o acto se torna fácil.