José António Abreu @ 23:31

Sab, 11/08/12

Em parte, também mato pessoas porque não posso – nem quero – fazer outras coisas que me permitiriam desafiar os limites do que é considerado normal. Abomino a conformidade mas também o espalhafato e a falta de inteligência. Se sabotasse o resultado do meu trabalho seria despedido após umas quantas advertências. Se me juntasse a uma claque de futebol para poder usar de violência de forma mais ou menos irrestrita teria de suportar a companhia de energúmenos – e de fingir ser um deles. Roubar não é opção – não desejo fazer algo apenas por ser ilegal. Na verdade, todos estes actos são ainda normais. Ninguém estranha que se torpedeie o trabalho ou que se roubem objectos. Ninguém estranha, ainda que procure convencer-se do contrário, que se exorcizem tensões destruindo o se apanha à frente. Não – já o escrevi: se um dia for apanhado, ninguém poderá dizer que fiz o que fiz por qualquer razão normal, mesquinha, compreensível. Hão-de coçar a cabeça, tentando perceber. E falharão, claro, porque as tentativas permanecerão tímidas, confinadas ao lugar-comum, balizadas pelo medo de entrar em áreas de onde talvez não se saia com facilidade. As pessoas não estão interessadas em chegar à verdade. Ouço-as até perguntando: que verdade? E sinto-me forçado a sorrir.




José António Abreu @ 13:44

Qui, 09/08/12

«No fundo, não és assim tão diferente de outras pessoas. Também sonhas com uma relação perfeita.»

«Não.»

«Então?»

«Não existe tal coisa. Foi o que te acabei de dizer. Pelo menos entre duas pessoas de carne e osso.»

«Sim, já sei: só entre uma pessoa e coisas

«Pelo menos estiveste a ouvir. Mas não só. Também é possível entre uma pessoa e uma imagem. Pensa na Charlize Theron. Agora pensa que estás na cama com ela. Que fantasia fantástica, hã? E podes tê-la milhares de vezes, durante anos, sempre perfeita. Sabes porquê? Porque não conheces a Charlize Theron.»




José António Abreu @ 20:20

Qui, 10/05/12

Pergunto-lhe: «Posso ser sincero?»

«Pensei que estávamos a ser sinceros.»

«Isso tudo, essas tuas teorias, são só fachada.»

Desta vez sorri abertamente. «Fachada? Lá no fundo, sou um romântico, é isso que queres dizer»

«Nem mais

«Sabes o que é o romantismo?»

Suspiro. «Nem vou tentar responder. O que é?»

«Querer o impossível. A perfeição, eternamente. Ora eu quero a perfeição. Mas sei que a perfeição é frágil. Que é impossível mantê-la eternamente.»

«Então és um quê? Um mezzo-romântico?»

Solta uma gargalhada. Diz: «Boa.» Mas depois fica sério e parece considerar seriamente a questão. «Não se deixa de ser romântico por saber que o impossível é, por definição, impossível. Ponhamos as coisas da seguinte maneira:  não acreditando que seja possível amar para sempre, acredito que é sempre possível amar.»

«Vai-te foder.»

Ri-se.




José António Abreu @ 20:49

Ter, 01/05/12

As pessoas horrorizam-se com o particular, com o específico. Se enviasse para os jornais estas considerações, poucas pessoas as leriam. Talvez nem fossem publicadas. Mas se descrevesse uma morte concreta, fornecendo pormenores sobre como tudo acontecera (as súplicas, os gritos, os familiares ou o Deus por quem a vítima – que termo impróprio – havia clamado, o pequeno sinal que tinha sob o seio esquerdo e o prazer que me dera cortá-lo, logo antes de lhe fazer o mesmo ao mamilo), nesse caso as pessoas leriam com fascínio. Duzentas mil mortes num tsunami no Extremo Oriente seriam nada sem imagens. Uma morte, com as imagens certas, ou até mesmo só com as palavras certas, causa mais horror. Imagino objecções: o tsunami tem causas naturais, não há maldade envolvida. Bom, talvez (a menos que se acredite em Deus, caso em que todo o horror devia ser dirigido para Ele, porque afinal mata muito mais e de formas mais variadas e criativas do que eu alguma vez terei hipótese de fazer). Mas uma pessoa que fica entalada sob os escombros de uma casa, que tem as pernas esmagadas e demora dias a morrer, passa por níveis de sofrimento tão intensos e bastante mais prolongados do que aqueles que eu tenho possibilidade de infligir (não por falta de esforço da minha parte, note-se). E nem sequer chega a ver o rosto do responsável pela sua morte. Eu mostro-me. As minhas vítimas (que termo irritante) vêem-me. Sabem sempre quem as mata. Como escrevi antes, as mais inteligentes chegam a perceber por que morrem.

Mas é possível que ainda venha a descrever alguns casos. Afinal, dizem que recordar é viver. Como, de resto, matar também o é. DeLillo escreveu-o em Ruído Branco (sim, gosto de ler): matar é uma forma de afastar o medo da morte. Quando é outro que morre, comprova-se a própria vida. Inteligente, apesar de ligeiramente presunçoso. E um tudo-nada teórico. Mas que experiência prática tem DeLillo?




José António Abreu @ 13:42

Qui, 29/03/12

O Sr. Marques aprecia centros comerciais. Raramente lá compra alguma coisa mas gosta de deambular pelos corredores e de sentar-se nas zonas de restauração, observando as pessoas. Na verdade, é mais as mulheres mas ele considera que está a observar «as pessoas». Às vezes pensa que o interior dos centros comerciais é o local onde melhor se analisa a vida moderna. Um local onde toda a gente se encontra no mesmo plano e pode cobiçar e tocar em milhares de coisas. A vida actual é feita de cobiça, pensa o Sr. Marques enquanto suspira perante a visão de uma mulher de traseiro empinado parada em frente à montra de uma sapataria, e os centros comerciais são o local onde ela pode ser expressa de forma mais subtil e democrática. São também um local onde exemplares díspares do ser humano podem ser vistos sem parecerem assim tão diferentes entre si. Hoje, por exemplo, o Sr. Marques ficou igualmente encantado ao ver uma quarentona de fato justo, saltos altos e colar de pérolas movendo-se em passo saracoteado e uma rapariga mal saída da adolescência com um vestido leve, umas botas pesadas e três piercings no nariz esparramada num dos sofás. Há ambientes em que tanto uma como outra pareceriam deslocadas. Num centro comercial, ambas se podem sentir à vontade.

O Sr. Marques encontra-se agora sentado na zona dos restaurantes, cansado de tanto raciocínio – mas não de observar as pessoas. Numa mesa próxima, uma pessoa do sexo feminino com cerca de vinte e cinco anos de idade troca mensagens no telemóvel. Veste uma blusa fina e decotada e um soutien que deve ser de um número abaixo do adequado porque lhe deixa um mamilo quase inteiramente à vista. O Sr. Marques olha e pondera se deve tentar não olhar. Procura também imaginar a reacção dela se, simpaticamente, a avisar do descuido. Está absorto a elaborar uma lista mental de prós e contras quando uma segunda mulher chega junto da primeira, se inclina para a beijar e, enquanto se senta, diz: «Tens a mama à mostra.» A outra encolhe os ombros. «Ora, sempre alegra a vida a alguns coitados.» Primeiro o Sr. Marques sente-se ofendido. Chega mesmo a pensar: «Cabra!» Mas depois percebe que a rapariga acaba de lhe dar autorização para continuar a olhar. E assim, já sem disfarces, o Sr. Marques deixa-se ficar entretido a olhar para o mamilo, que é largo e pouco saliente e está rodeado por uma auréola rosada e ligeiramente granulosa. A certa altura, o olhar dele cruza-se com o da rapariga e o Sr. Marques permite-se mesmo sorrir com descontracção. Só então ela parece incomodada. Empurra a mama para dentro do soutien, pega na mala com a mão que o telemóvel deixa livre e diz para a outra: «Olha, vamos mas é andando.» O Sr. Marques observa-lhe o movimento das ancas enquanto ela se afasta e depois fica lá, sorrindo de vez em quando ao relembrar o acontecimento.




José António Abreu @ 13:42

Qua, 29/02/12

«Já te apaixonaste?»

«Muitas vezes.»

«Como é que consegues, com essas teorias? Afinal, sabes que a coisa está condenada ao fracasso.»

«'Fracasso' é o que tu lhe chamas. A paixão é um estado transitório sem prazo definido. Eu limito-me a aceitar que tem prazo.»

«Convém que elas também o aceitem.»

«Comigo, aceitam sempre. Aliás, com frequência são elas quem chega à conclusão de que o prazo foi atingido. As mulheres não são más nessas coisas. Mas na maioria das vezes nem me apaixono por uma mulher completa e sei imediatamente que aquilo vai durar pouco.»

«O que diabo queres dizer com isso?»

«Apaixono-me por um sorriso, uma frase, um par de mamas. As mulheres são sempre menos interessantes do que as suas melhores partes.»




José António Abreu @ 21:18

Ter, 28/02/12

Gostava de a ter matado. Teria sido preferível. Não precisaria agora de sentir, para além da dor da perda, o ferrão da cobardia. Ela ter-me-ia agradecido. Não de viva voz, porque no último par de meses já não conseguia falar, mas com um olhar. O último. Devia tê-lo feito logo que se tornou demasiado doloroso para ambos. Quando perdeu a capacidade de falar, talvez. De que serve um corpo que não se consegue exprimir a não ser pelo olhar? Fechado, contra vontade, em si mesmo. Sim, esse teria sido um bom momento para o fazer. Por que não mo pediu, antes, enquanto podia? Não por motivos religiosos, certamente, que nem naquela fase terminal ela acreditava em Deus e muito menos acreditava que a vida deve ser sempre suportada até ao seu fim natural. Só pode ter sido para me poupar. Para não colocar o peso da sua morte sobre os meus ombros – mais uma razão para eu agora sentir culpa.

Mas na altura eu amava-a. E ainda não matava ninguém.




José António Abreu @ 23:11

Ter, 07/02/12

Digo-lhe: «Não admira que não sejas casado.»

«Por acaso, até admira.»

«Com essas ideias?»

«Precisamente. A maioria das pessoas casa na ilusão de que, fazendo-o, pode escapar a ideias como estas. Depois passa a vida a escondê-las do parceiro.»

«Ora.»

«As ilusões românticas duram pouco. Olha para o lado – o que vês? Casamentos de fachada. Idas ao shopping e uma quinzena no Algarve em Agosto. E montes de ideias como as minhas, escondidas na rotina e nas convenções. O casamento é uma tentativa, ingénua ou estúpida (se é que uma coisa não equivale à outra), de não as enfrentar.»

«Caramba, não consegues ter um pensamento optimista?»

«Consigo.»

«E?»

«Nada. Consigo.»




José António Abreu @ 13:14

Qua, 14/12/11

O Sr. Marques aprendera tarde a navegar na Internet. E durante uns tempos limitara-se a aceder ao Sapo, à Wikipedia e a sites de notícias. Não a usava para compras por achar todo o processo muito complicado e ter medo de indicar o número do cartão de crédito e nem sabia o que eram blogues. Só depois, quase por acaso (lera que a palavra mais pesquisada na Internet era «sexo» e resolvera experimentar), descobrira os sites de sexo. A mulher ainda estava viva quando isso sucedera mas tornara-se óbvio que já não duraria muito – ainda assim, o Sr. Marques sentia alguns remorsos quando, a meio da noite ou nas ocasiões em que ela estava no hospital em tratamentos, acedia àqueles sites. Mas depois, respeitando de forma escrupulosa as previsões dos médicos, ela morrera e tudo se tornara mais fácil. O Sr. Marques já não precisava de esconder o que fazia. Mesmo assim, durante muito tempo ainda sentira vergonha e até um certo receio de que alguém estivesse a observá-lo ou pelo menos a registar todos os seus passos através dos sites da Hustler, da Private ou da Vivid. A passagem de meses e depois anos sem que nada de especial acontecesse (excepto ter passado a receber dezenas de mensagens por semana na sua caixa de correio electrónico propondo-lhe métodos para aumentar o tamanho do pénis) acabaram por dar-lhe alguma tranquilidade. A certa altura, o Sr. Marques decidira usar o cartão de crédito mas depressa chegara à conclusão de que não compensava: o que se obtém de graça na Internet é mais do que suficiente. Na realidade, é ainda melhor do que o que se obtém pagando porque o Sr. Marques percebera entretanto que preferia sexo amador e este encontra-se facilmente de borla (quem faz as coisas por prazer, pensa o Sr. Marques, nem sempre tem noção do que elas valem). O sexo entre amadores parece-lhe mais real – logo, mais profissional – do que o sexo entre profissionais. De resto, já quase não se encontram profissionais (mulheres, entenda-se) sem implantes de silicone ou com vestígios de pêlos nas zonas íntimas e o Sr. Marques, nada tendo contra a evolução das preferências estéticas, apoiadas ou não em avanços tecnológicos, aprecia variedade. Consegue-a com os vídeos de sexo entre amadores, que só têm o defeito de serem frequentemente filmados em plano fixo e a uma distância que não permite distinguir pormenores. Mas não faz mal. É uma questão de ir procurando até encontrar os melhores  – o Sr. Marques tem tempo e, após uma distracção que lhe saíra cara, mudara o tarifário de acesso à Internet para uma opção sem limites de downloads. Para sua surpresa, descobrira existirem tantos vídeos de sexo entre amadores na Internet como de sexo entre profissionais. Mais, até. Milhares e milhares deles. Parece ao Sr. Marques que toda a gente que faz sexo (não é o caso dele, infelizmente, pelo menos sexo acompanhado) coloca um vídeo do acto na Internet. E isto cria-lhe um problema inesperado. Ao caminhar pelas ruas, observando as mulheres com quem se cruza, o Sr. Marques não consegue deixar de pensar, especialmente quando se depara com uma vestida de forma provocante, se terão vídeos na Internet – ou até, como complemento de salário, um daqueles sites pessoais Olá, Kátia está online neste momento. Sabe que é errado mas às vezes, seguindo-as com o olhar, sentindo um frémito por todo o corpo com incidência especial numa área específica, acaba a disparar mentalmente: «Cabra!» Depois vai para a ginástica. Esforça-se particularmente nessas sessões. Transpira e arfa, de dentes cerrados, consciente como nunca da presença de todos aqueles corpos femininos, bem torneados e tonificados, à sua volta.




José António Abreu @ 23:08

Ter, 13/12/11

 «Então não acreditas no amor eterno?»

«Por uma mulher, não. Acredito no amor eterno por outras coisas.»

«Outras coisas

«Por coisas, pronto. És muito sensível, tu.»

«Só junto de ti. Exactamente o que é que queres dizer com isso?»

«É possível gostar de um livro ou de um filme ou de um carro para sempre. Fazê-lo só depende de nós; eles não mudam.»

«Preferes então que não te questionem?»

«Não. Os livros e os filmes colocam questões» Afaga o copo de cerveja. «Mas prefiro coisas que me deixem responder.»




José António Abreu @ 22:40

Seg, 21/11/11

Diz: «E houve a minha prima.»

«Fizeste sexo com a tua prima?»

«Arlete. Era bastante feiinha. Na verdade, ainda é mas agora já não fazemos sexo. O marido que trate do assunto, coitado.»

«E tens uma explicação?»

«Éramos miúdos. No início da vida sexual, a regra é só uma: arranja-se o que se pode. Aliás, muita gente nunca se liberta dela.»




José António Abreu @ 13:44

Qua, 16/11/11

Não duvido que as pessoas «normais» me consideram um monstro. Bom, na realidade não é bem assim. As pessoas «normais» que me conhecem (e «conhecer» também é o termo errado, claro) acham-me um tipo normal, provavelmente até mais simpático do que a maioria. Mas considerar-me-iam um monstro se soubessem o que faço a outras pessoas e, especialmente, o que lhes poderia ter feito a elas (uso o passado porque, obviamente, só o saberiam se eu tivesse sido apanhado). Isso não me incomoda. Não vou pôr-me aqui a discorrer sobre como, no fundo, as pessoas «normais» estão longe de serem assim tão normais nem sobre como as noções que têm na cabeça são preconcebidas, clichés absolutos implantados por pais e colegas, programas televisivos e jornais tablóides, mas sou incapaz de resistir a duas ou três linhas sobre o assunto. A «normalidade» é uma defesa contra o inesperado, contra dúvidas e medos e desejos inconfessáveis. O receio de sair da «normalidade» faz com que, mesmo entre «amigos» (a verdade exige tantas aspas…), raramente se discutam assuntos mais profundos do que o estado do tempo, a mais recente graça dos filhos ou a última polémica no futebol. Esta «normalidade» – que deveria antes chamar-se superficialidade – é alimentada pelos meios de comunicação social, necessitados dela para potenciar o efeito de choque nos momentos em que é quebrada. Notícia de Última Hora – Homem mata mulher e filhos à facada. E os telespectadores arrepiam-se e abanam a cabeça e murmuram «Como é possível?» e nem se atrevem a enfrentar a hipótese de que estranho é não acontecer mais vezes. As pessoas «normais» são pessoas «anormais» fortemente embrulhadas em insegurança e convenções. Tão embrulhadas que acabam por funcionar apenas ao nível do invólucro. Mas chega. Não quero ser presunçoso. Pelo contrário: gostaria até de salientar que matar não faz com que me sinta superior a essas pessoas «normais» – aos meus familiares, aos meus colegas de emprego. Não em termos absolutos, pelo menos. Quanto mais não seja por uma razão que já admiti: não gosto assim tanto de mim. Desprezo as pessoas «normais», é certo, mas também me desprezo com frequência, embora por uma razão ligeiramente diferente: desprezo-as por fecharem os olhos, desprezo-me por, sabendo o que sei, continuar a fingir. Não, matar não me faz sentir superior; matar faz-me sentir diferente. Diferente delas e de todas as outras, incluindo daquelas que fogem à normalidade mais comezinha lendo Ovídio ou biografias de Churchill, empreendendo viagens de auto-descoberta pela Patagónia, pesquisando curas para o cancro ou sendo declaradas oficialmente loucas. Em maior ou menor grau, tudo isto é normal. Não sacode os alicerces sobre os quais se constrói o mito do que é ser humano. Matar sem motivo aparente, sim. É diferente. É ter tomates para arriscar o impensável. É abandonar a espécie e entrar noutra categoria taxonómica. Sim, a fuga à normalidade é justificação mais do que suficiente.

Orgulho, apesar de tudo. Seja.




José António Abreu @ 08:42

Ter, 08/11/11

«Nunca tiveste relações com mulheres pouco atraentes?»

Sorri. «És um portento de correcção, tu: nem és capaz de dizer ‘feias’.»

«Talvez. Mas então? Tiveste ou não?»

«Poucas. Mas sim, tive.»

«O que te atraiu nelas, se não foi o corpo nem a mente?»

«Aconteceu quase sempre em circunstâncias especiais.»

«O que queres dizer com isso? Não havia outras disponíveis?»

«Boa! Estás a melhorar. Mas não. Digamos que, no momento, elas não estavam feias, pelo que admito que também conseguissem transmitir alguma inteligência.»

«Desculpa?»

«Eu estava bêbado.»




José António Abreu @ 18:30

Sex, 04/11/11

O Sr. Marques é viúvo e está prestes a reformar-se. Tem sessenta e quatro anos, um metro e setenta e três de altura e setenta quilos de peso. Desde que, há cinco anos, a mulher morreu, vai quatro vezes por semana a um ginásio. Faz musculação, dança, localizada. Os efeitos são evidentes. O Sr. Marques emagreceu (desde os quarenta anos, nunca pesara menos de setenta e cinco quilos e chegara a rondar os oitenta) e tem os músculos mais definidos do que em alguma outra fase da sua vida (sim, mesmo do que na adolescência). Passou a usar pólos um número abaixo do que era habitual, de modo a destacar os peitorais, e adora a forma como os bíceps retesam a zona terminal da manga curta.

A maioria dos frequentadores do ginásio é do sexo feminino. Na dança e na localizada, o Sr. Marques costuma ser mesmo o único homem presente (e o outro que surge com alguma frequência tem aspecto de ser homossexual). Discretamente, o Sr. Marques vai apreciando os corpos tonificados das mulheres. Elas percebem mas tentam não ligar. Consideram-no inofensivo e isso desagrada-lhe. Afinal, o Sr. Marques tem fantasias com elas e acredita que, apesar da idade, conseguiria satisfazê-las sexualmente. A experiência (costuma pensar na idade como experiência, evitando assim ter de encarar o número tristemente reduzido de mulheres com que manteve relações ao longo da vida) e o novo vigor obtido no ginásio mais do que compensariam os efeitos da idade. Chegou a convidar duas (em alturas diferentes, bem entendido) para irem beber um copo depois de saírem do ginásio mas, apesar do cuidado que teve em escolher de entre as menos novas e também de entre as que não usam aliança, ambas recusaram. O Sr. Marques lembra até vislumbres de horror e de pena nas faces de uma delas e, apesar de dizer a si mesmo que deve estar a exagerar o que viu, ou mesmo a imaginá-lo por completo, não consegue evitar uma sensação de dor e humilhação sempre que recorda o momento. Quanto à outra mulher, sorrira, fora simpática, mas nem por isso se mostrara mais disponível para aceitar o convite. O Sr. Marques ficara de tal modo desiludido com os falhanços que não voltara a tentar. Compreendera que nenhuma daquelas mulheres com corpos tonificados lhe liga. Sabe, aliás, que mesmo fora do ginásio ninguém lhe liga. Com excepção da vizinha D. Alzira, que tem mais três anos de idade do que ele, é gorducha e possui uma verruga na cara. É a única mulher que se apercebeu das mudanças no corpo do Sr. Marques (ou, pelo menos, que as mencionou – em tom inegavelmente apreciativo) e que parece disposta a dormir com ele. Há dez ou quinze anos, quando ainda era casado, o Sr. Marques chegou a ter fantasias com a D. Alzira (era muito mais magra, na altura, embora já tivesse a verruga) e, em desespero de causa, um dia destes vai acabar por levá-la para a cama mas, agora que possui aquele corpo, a hipótese parece-lhe um completo desperdício.




José António Abreu @ 08:09

Qua, 26/10/11

Pergunto-lhe: «Não há então mulheres que permaneçam interessantes após muito tempo de relação?»

«Não.»

«Nem que pareçam chatas quando ainda não se dormiu com elas?»

«Isso há.»

«A sério?»

«Claro que sim: as feias.»




José António Abreu @ 13:36

Seg, 24/10/11

Tivemos uma conversa muito estimulante antes de o matar. É curioso como as pessoas ficam mais interessantes quando se sentem à beira da morte e têm de lutar pela vida. Têm de justificar a vida. Parecem raciocinar mais depressa, ter pensamentos mais profundos, ganhar dez ou vinte pontos de QI. Isto se lhes for dada oportunidade para falarem, claro. Mas não concebo as coisas de outra maneira. É preciso deixá-las falar. Permitir-lhes reavaliar a vida. Constatar como foi afinal tão melhor do que pensavam. Há egoísmo aqui, eu sei. Torna-as menos irrelevantes. Permite-me matar pessoas que, afinal, não eram uma completa nulidade. Mas também me faz começar a gostar delas. De certa forma, aprendo a gostar delas ao mesmo tempo que elas mesmas o fazem. Trata-se de uma aprendizagem em conjunto. Quando finalmente as mato, é frequente sentir que teria gostado de as ter como amigas. Mas não me permito ilusões. Não duraria. E há outro problema: no fundo, tirando uma ou outra que mato por merecerem ser mortas (mas não gosto de o fazer; sinto que isso me rebaixa, que me transforma numa personagem de série televisiva), mato-as precisamente por gostar delas. Deve ser bom morrer num instante de auto-apreciação. Sair em grande, redimido com o mundo e com as próprias falhas, não ter de mergulhar outra vez numa existência deprimente. Sim, mato-as por gostar delas. E talvez isto explique por que não me mato. Não consigo iludir-me durante períodos suficientemente longos para achar digno fazê-lo. Aliás, se um dia o fizer, será logo depois de matar alguém. Falta de originalidade, eu sei. Mas é o único momento em que o acto se torna fácil.




José António Abreu @ 13:07

Seg, 17/10/11

 Diz: «A inteligência feminina é uma questão hormonal. Epidérmica, até.»

«Desculpa?»

«No início de uma relação, enquanto o sexo é bom, ou enquanto se espera que haja sexo, quase tudo o que as mulheres dizem é interessante. Mais tarde, ainda que continuem a dizer o mesmo, já são apenas chatas.»

«Uau. E os homens? Não há homens a quem reconheças inteligência? Isso deve-se a quê?»

Deixa escapar um sorriso, antecipando a piada.

«Provavelmente ao facto de nunca ter mantido relações com eles.»