José António Abreu @ 14:52

Sab, 04/07/15

«Só tu é que me vens visitar.»

Há seis camas na enfermaria. Desde a primeira visita de Jorge, há cerca de dois meses, o número das ocupadas variou. Hoje são quatro. A tia encontra-se na primeira à esquerda da porta de entrada. Ao lado tem uma senhora com mais de setenta anos, rodeada pela filha e por duas netas. A terceira cama encontra-se vazia. Na outra fila de três, a vazia é a do meio. Já lá teve uma rapariga, vinte e cinco anos, talvez nem tanto. Morreu há uma semana. Nas outras encontram-se duas senhoras de idade. Apenas uma tem companhia – do marido, pelo aspecto.

Jorge tem dificuldade em perceber as palavras da tia. A voz dela é fraca e arquejante. Não admira. Basta ver como está magra e fraca. De tal forma que lhe custa a acreditar que se trata mesmo da sua tia Helena, irmã mais nova da mãe dele. O elemento da família que, em criança, ele preferia. Simpática e sempre disponível mas cuidadosa para não o sufocar com beijos e abraços, como faziam outras mulheres da família. Uma vez (lembra-se sempre daquilo, quando pensa nela), estando Jorge doente (já não recorda qual a doença), passou horas na cama ao lado dele, jogando às cartas e às damas (a cama é um péssimo sítio para jogar damas: a maioria das partidas terminara com peças deslizando pelo tabuleiro e perdendo-se nos lençóis, por entre risos e acusações de batota). A tia era muito mais nova, então (teria pouco mais de vinte anos) e bastante mais atraente. Ainda se pode detectar parte dessa beleza na cara dela, hoje emagrecida pela doença. Desapareceu, contudo, toda a vivacidade que possuía, bem como toda a inconsequência que advém da juventude, de raramente se sentir dor física, do conceito de morte ser tão estranho e distante como a composição da atmosfera de outro planeta (em miúdo, os planetas e as estrelas eram um dos temas favoritos de Jorge). Hoje, a expressão da tia mostra não apenas desespero – expectável – mas um grau de surpresa que deixa Jorge perturbado e lhe torna difícil encará-la.

Sabe que ela fala verdade e que só ele a visita regularmente. Isso sucede porque outros elementos da família já morreram (a mãe dele, por exemplo), porque alguns emigraram (o enteado que ela criou desde muito novo), porque, encontrando-se no país, estão suficientemente longe para que a distância possa servir como desculpa (o ex-marido, o irmão, vários sobrinhos).

«Não precisas de vir tantas vezes. Tens a tua vida.»

«Não me custa nada. Faço-o com prazer.»

Prazer? Jorge fica envergonhado assim que a palavra lhe sai dos lábios.

Como sempre, tem dificuldade em manter a conversa. Esgotadas as frases ocas e, em alguns casos, falsas («Como se sente hoje?»; «Está com melhor aspecto.»; «Não tarda nada sai daqui.»), é-lhe complicado pensar em temas sobre os quais possam conversar. O passado, evidentemente, constitui a excepção. A tia parece apreciar relembrá-lo (até mesmo aquelas épocas nas quais Jorge mal a via e que – pensa ele – não devem ter sido particularmente felizes) mas ele fica desconfortável. Parece-lhe uma solução fácil, cobarde, que implica o reconhecimento de que ela morrerá em breve.

Mas morrerá. É uma questão de semanas, dois meses no máximo. Até já resistiu mais tempo do que os médicos previam no início.

«Cada vez tenho menos razões para permanecer viva.»

Não é a primeira vez que ela diz aquilo. A frase perturba-o. Coloca-lhe sobre os ombros uma responsabilidade à altura da qual teme não se encontrar. Já em várias ocasiões pensou em não vir com tanta frequência. As visitas deixam-no esgotado e, para mais, reside a uma centena de quilómetros, o combustível e as portagens não ficam baratos. Mas como pode fazê-lo? Sabe constituir uma dessas poucas razões – à medida que se torna evidente o desinteresse de outros membros da família, talvez a única. Se estivesse outra pessoa naquela cama, se não soubesse que, de facto, quase mais ninguém a visita, a frase poderia irritá-lo. Fazê-lo sentir-se chantageado. Mas aquela é a tia Lena. A sua tia preferida. Que sempre esteve disponível para ele. Que talvez apenas se mantenha viva para ele. (Valerá a pena? Deverá sentir-se mal por isso?)

Fica com ela até ao fim do horário para visitas. Faz-lhe perguntas sobre as companheiras de enfermaria mas descrever as doenças das outras mulheres e como várias já morreram também é deprimente. Torna claro que daquelas camas apenas se sai para o cemitério. Procura outros assuntos. Inevitavelmente, regressa ao passado.

No final, diz-lhe: «Volto em breve.»

A tia responde que não é preciso mas Jorge sabe que mente. Quando lho disse, perpassou-lhe pelos olhos um indício da antiga vitalidade. Um sinal de prazer.

«Faço-o porque quero.»

Inclina-se e beija-a. As faces encovadas perturbam-no. Difusamente, pensa que já devia estar habituado.

Olha para trás à saída e diz-lhe adeus. Segue pelos corredores e desce as escadas tentando não olhar para os outros visitantes. Não se quer rever neles. Na rua, inspira fundo. Mas o ar está quente e cheira a asfalto e gases de escape.

Estacionara o carro fora do perímetro do hospital. O horário das visitas terminou mas os passeios ainda estão atravancados com veículos. Passa entre uma carrinha branca e um furgão e começa a atravessar a rua. Apercebe-se de uma comoção difícil de definir, depois ouve um ruído de travagem e logo a seguir o automóvel atinge-o do lado esquerdo. Voa meia dúzia de metros. Ao cair, bate com a cabeça no asfalto. Sente o sabor do sangue. Antes da escuridão o envolver, pensa que a tia acabou de morrer.